06 Janeiro 2014
Oficialmente, o Vaticano não faz muito esforço para marcar o aniversário de um papa. Celebram-se festas para o santo daquele dia e para o aniversário de sua eleição, refletindo uma preferência sobre o cargo e não sobre a pessoa.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicado pelo National Catholic Reporter – NCR, 30-12-2013. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
No entanto, não oficialmente o Papa Francisco caracterizou os dias que envolveram o seu 77º aniversário, em 17-12-2013, com uma série de gestos e decisões impressionantes que, tomados em conjunto, representam um ponto de inflexão em direção a sua campanha por reformas.
Num espaço de quatro dias, o papa estendeu a mão ao mundo com mais uma entrevista reveladora, lançou as bases para uma geração nova e moderada de “bispos ao estilo Francisco”, viu uma comissão de reforma – criada por ele em julho – contratar duas empresas globais de consultoria para reorganizar as operações de relações públicas do Vaticano e para reforçar seus procedimentos contábeis, além de ter fornecido um novo visual para a imagem de uma “Igreja pobre para os pobres”, ao convidar três sem-teto, e mais o animal de estimação deles, a se juntar para um café da manhã no dia de seu aniversário.
Dado o ritmo calmo típico do Vaticano na época do Natal, este frenesi ofereceu mais um exemplo do “efeito Francisco”. Ao que parece, este é um papa que não tem um “botão de desligar”.
A sequência se iniciou no dia 15 de dezembro com uma longa entrevista conduzida pelo reconhecido jornalista italiano Andrea Tornielli, publicada no jornal La Stampa. Entre outras coisas, o papa respondeu a críticas recentes ao documento Evangelii Gaudium feitas pelo comentarista conservador americano Rush Limbaugh, o qual descreveu sua crítica da injustiça econômica aí presente como “marxista”.
“A ideologia marxista é errada”, respondeu Francisco. “Mas, na minha vida, conheci muitos marxistas que são boas pessoas, então não me sinto ofendido”.
E continuou, repetindo sua crítica à economia.
“A promessa era de que, quando o copo estivesse cheio, iria transbordar, beneficiando os pobres”, falou. “Pelo contrário, o que acontece é que, quando o copo está cheio, ele magicamente fica maior ainda, sem nunca virar-se para os empobrecidos”.
A entrevista também apresentou reformas em outro sentido, ao fornecer informações apuradas sobre as intenções do papa. Até então, especulações poderiam ser propostas indefinidamente sobre o que o papa faria a respeito de uma questão qualquer, já que era impossível tirar um SIM ou NÃO do pontífice propriamente.
No entanto, nesse caso Francisco respondeu a uma pergunta direta sobre se ele nomearia cardeais mulheres, dizendo que não sabia de onde havia saído essa ideia e afirmando que alguém que espera por algo assim “sofre um pouco de clericalismo”.
Como resultado, a vida útil desta hipótese chegou ao fim.
Quanto à questão da comunhão para católicos divorciados e recasados, Francisco deixou escapar a possibilidade de que decisão alguma será tomada tão cedo, ao dizer que este assunto será examinado durante o Sínodo dos Bispos sobre a família, a ocorrer em outubro de 2014 e novamente em 2015. Com isso ele deu a entender que sua resolução irá esperar por mais dois anos no mínimo.
Parte das críticas mais vorazes do pontífice foram feitas à violência contra cristãos cometida em várias partes do mundo. Entre outras coisas, o religioso sustentou que a experiência comum de perseguição contra várias denominações cria um “ecumenismo de sangue”.
Esta foi a quarta sessão de perguntas e respostas concedida pelo papa, sendo a primeira uma conferência de imprensa dada a bordo do avião papal que retornava do Brasil (em 28-07-2013); a segunda, uma entrevista concedida em setembro à Civiltà Cattolica e a outras publicações jesuítas; e a terceira uma conversa travada em outubro com o jornalista italiano Eugenio Scalfari, liberal e não crente. Um alto nível de acessibilidade à mídia parece ser uma das marcas deste papado.
Reestruturando a Congregação
Apenas 24 horas depois, o Papa Francisco surpreendia novamente, agora na forma de uma reestruturação da toda-poderosa Congregação para os Bispos, organismo responsável por recomendar ao papa nomes de padres que serão nomeados bispos.
Francisco confirmou o cardeal canadense Mark Oullet, de 69 anos, como o prefeito da Congregação, cujo nome foi proposto já em 2010 pelo Papa Bento XVI. Ao mesmo tempo em que isso representou, sem dúvida, uma escolha pelo continuísmo, o Papa Francisco também mudou significativamente as regras do jogo dentro da Congregação para os Bispos, ao nomear novos membros e remover alguns antigos.
Para os católicos norte-americanos, a mudança mais notável foi escolher o cardeal Donald Wuerl, de 73 anos, como novo membro da Congregação e remover o cardeal Raymond Burke, 65, presidente da Assinatura Apostólica, a mais alta corte do Vaticano. Dada reputação de Dom Wuerl como sendo a de um religioso moderado e dada a reputação de Dom Burke como a de um religioso de linha dura frente, à cultura de guerra a combinação pareceu ser uma indicação clara da preferência do papa por lideranças mais centristas. O papa também não confirmou como membro da Congregação para os Bispos o cardeal Justin Rigali, de 78 anos, que deixou o cargo de arcebispo da Filadélfia em 2011.
O mesmo ocorreu com as outras nomeações para a Congregação – 30 ao total –, incluindo 12 novos membros e 18 confirmações. Em geral, Francisco parece preferir religiosos moderados com o amplo apoio de seus companheiros bispos e de um compromisso com o evangelho social.
Do México, Francisco nomeou como cardeal Francisco Robles Ortega, de Guadalajara, proveniente de uma família da classe trabalhadora e que tem boas relações com setores progressistas da Igreja mexicana.
Da Colômbia, nomeou como cardeal Rúben Salazar Gómez, que, de vez em quando, recebe críticas por supostamente deflagrar os ensinos morais da Igreja. Em 2011, foi criticado por expressar apoio qualificado à legalização de drogas, e em 2012 a Secretaria de Estado do Vaticano o obrigou a refazer comentários que implicavam na aceitação da legalização do aborto em três casos garantidos pela legislação colombiana, incluindo estupro, incesto e ameaças à vida da mãe.
Do Reino Unido, Francisco nomeou Dom Vincent Nichols, de Westminster, geralmente considerado moderado em termos doutrinais e políticos e que tem recebido críticas por seu suposto apoio à Missa Latina e à nova estrutura criada sob o pontificado de Bento XVI para acolher ex-anglicanos dentro da Igreja Católica.
O Papa Francisco fez cardeais também duas autoridades herdadas de Bento XVI, incluindo o brasileiro João Bráz de Aviz, prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica. O cardeal vem recebendo críticas por supostamente estar agindo de forma muito leve em algumas ocasiões, entre outras na investigação em curso pelo Vaticano das Irmãs/freiras americanas.
Se compreender os sofrimentos das pessoas comuns for uma das marcas de um “bispo ao estilo Francisco”, então Dom Bráz de Aviz pode ser considerado um bom exemplo. Quando ainda era um jovem padre, certa vez estava indo rezar uma missa quando se deparou com um assalto a carro forte. Foi atingido durante a troca de tiros com balas perfurando seus pulmões, intestino e um olho. Embora os cirurgiões tenham conseguido recuperar seu olho, ele ainda carrega fragmentos das balas em seu corpo.
Por outro lado, Francisco igualmente manteve um grau de equilíbrio ao confirmar vários defensores de uma perspectiva mais conservadora na Congregação para os Bispos, tais como o cardeal George Pell, de Sydney (Austrália), que também é membro do Conselho de Cardeais, assim como o cardeal espanhol Antonio Cañizares Llovera, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, conhecido nos arredores de Roma como o “Pequeno Ratzinger” – não só por causa de sua estatura diminuta, mas também por sua afinidade com as opiniões doutrinais de Bento.
Ao todo, sem dúvida estas ações representam um dos mais importantes movimentos de reforma feitos por Francisco, visto que moldam os critérios pelos quais mais de 5 mil bispos católicos ao redor do mundo serão escolhidos.
Contratando consultores
Em 29-12-2013, o Vaticano anunciou que uma comissão criada pelo papa em julho para realizar um estudo de suas estruturas econômicas e administrativas contratou duas empresas globais de consultoria para reorganizar as operações vaticanas de comunicação e garantir que suas práticas contábeis estejam alinhadas com padrões internacionais.
A McKinsey & Company, empresa de consultoria no ramo de gestão fundada nos EUA, irá lidar com questões relativas às comunicações do Vaticano, enquanto que a KPMG, uma das quatro maiores empresas de auditorias em nível internacional, irá abordar as práticas de contabilidade. O Vaticano disse que os contratos foram firmados após um “processo competitivo de licitação”, mas não especificou quanto está sendo pago pelos serviços.
Por muito tempo, a natureza fragmentada das comunicações do Vaticano tem sido fonte de consternação, possuindo um setor de relações públicas multifacetado, formado por diversas frentes: a Sala de Imprensa da Santa Sé; o jornal L’Osservatore Romano; a Rádio Vaticano; o Centro Televisivo do Vaticano; o Conselho Pontifício para as Comunicações Sociais; e ainda a casa publicitária do Vaticano, a Libreria Editrice Vaticana.
Em junho de 2012, o Vaticano também criou um novo cargo, o de assessor de comunicação, dentro da Secretaria de Estado, pondo o jornalista Greg Burke para o papel. Cada um desses departamentos opera por conta própria, o que muitos analistas acreditam contribuir não só para a duplicação desnecessária de recursos, mas também para, às vezes, embaralhar notícias ou comunicados oficiais.
No fronte financeiro, tanto o Instituto para as Obras da Religião, chamado de banco do Vaticano, como a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica – APSA, que lida com as propriedades e os investimentos do Vaticano, estão engajados em análises internas recolhendo informações. Tais análises foram também confiadas a uma empresa de consultoria externa, a Promontory Financial Group.
Provavelmente, estes dois departamentos irão também estar sujeitos a uma inspeção pela Autoridade de Informação Financeira, a nova unidade de vigilância criada sob o papado de Bento XVI e liderada pelo especialista em antilavagem de dinheiro, o suíço René Brülhart.
Numa entrevista concedida ao site National Catholic Reporter – NCR, em 18-12-2013, Brülhart disse que uma inspeção do banco irá acontecer no “início de 2014” e que uma decisão final não foi feita no que diz respeito à APSA. Todavia, algum tipo de mudança, revisão, é “provável” ocorrer.
Presumivelmente também, uma função das análises da empresa KPMG será garantir que os mesmos padrões sejam aplicados a outros departamentos do Vaticano, em especial aqueles que lidam com quantias significativas de dinheiro, tais como o governo da Cidade do Vaticano e o “Óbolo de São Pedro”, uma coleta anual para bancar as atividades papais.
As finanças vaticanas emergem como um teste crítico para o compromisso do Papa Francisco com as reformas, em parte devido a uma série de escândalos que abalaram a instituição, tanto antes quando depois de sua eleição.
Uma investigação italiana sobre transações supostamente suspeitas feitas pelo banco do Vaticano está em curso, e dois de seus altos funcionários deixaram o cargo em julho, embora autoridades negam qualquer irregularidade. Ainda em 2012, o banco central italiano forçou a paralisação dos serviços de cartão de crédito do Vaticano, fato relacionado com questões de lavagem de dinheiro, obrigando o próprio Vaticano a negociar novo acordo com um fornecedor suíço não sujeito às regras da União Europeia.
Entretanto, em junho o monsenhor Nunzio Scarano, um ex-contador da APSA, foi preso em um esquema de caixa-dois envolvendo 30 milhões de dólares. Reportagens da mídia italiana indicam que, em interrogatórios feitos após sua prisão, Scarano disse que o APSA opera ao modo de um “banco paralelo”, permitindo certos cidadãos VIPs italianos colocarem dinheiro em fundos de investimento, em parte para evitar pagamento de taxas sobre o rendimento.
Scarano falou ainda que funcionários da APSA rotineiramente aceitam presentes de bancos que buscam capturar parte dos ativos do Vaticano, incluindo “viagens, cruzeiros, hotéis cinco estrelas, massagens, etc.”.
Em sua entrevista ao NCR, Brülhart negou ter enfrentado qualquer resistência à reforma por parte da velha guarda do Vaticano.
“Acho que há um grande apoio para o que estamos fazendo”, disse ele.
Por fim, o Papa Francisco mais uma vez mostrou a sua especial afeição pelos pobres ao convidar três moradores de rua a partilhar um café da manhã no dia de seu aniversário, 17 de dezembro. Os três sem-teto trouxeram seu animal de estimação – um cão –, explicando ao pontífice que o animal recebeu um nome em homenagem ao ícone do reggae, Bob Marley.
Os moradores de rua eram três homens, um da República Checa, outro da Eslovênia e outro da Polônia. Eles estão entre os muitos sem-teto que passam suas noites na área próxima à Praça de São Pedro dormindo em caixas de papelão. Foram convidados a se juntar na celebração de aniversário do papa pelo arcebispo polonês Konrad Krajewski, conhecido em Roma como “Don Corrado”, religioso responsável pelas iniciativas pessoais de caridade do Papa Francisco.
“O Papa disse que nunca devemos desistir, que precisamos ter esperança”, afirmou um dos convidados. “Ele é gente boa”.
Em outras palavras, o aniversário do papa foi um sucesso, tanto substantiva quanto simbolicamente.
Tomado em conjunto, a correria fora de época pareceu ser uma outra confirmação da energia incansável do Papa Francisco, bem como um sinal de que as impressões de mudança sob o seu olhar podem estar muito além de mera retórica.
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Aniversário do Papa: ponto de inflexão na campanha por reformas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU