Por: Jonas | 26 Junho 2013
Com Lula e Dilma, o equivalente a uma Argentina inteira saiu da pobreza. Por que o Brasil assistiu, nos últimos dias, protestos de um tamanho inédito? O alvo é a injustiça ou a corrupção? Qual é a razão pela qual a Copa do Mundo irrita um país do futebol?
A reportagem é de Martín Granovsky, publicada no jornal Página/12, 24-06-2013. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/CFy96 |
Os protestos populares no Brasil, como em qualquer outro lugar do mundo, contam com uma característica: foram inesperados. E com mais uma: são imprevisíveis. Por isso, é benéfico se aproximar da realidade com modéstia e em busca de pistas, sabendo que ninguém, antes, tinha clareza dos mesmos.
Velocidades
As primeiras manifestações do Movimento Passe Livre pediam uma política popular de transporte público. Rui Falcão é o presidente nacional do Partido dos Trabalhadores, que encabeça a coalizão de governo desde o dia 1º de janeiro de 2003. Em meio à crise concedeu uma reportagem para o Carta Capital. Ao analisar o transporte público nas grandes cidades, sobretudo em São Paulo, disse que nos últimos oito anos aumentou a quantidade de carros. Explicou que a última prefeita pelo PT, Marta Suplicy, deixou uma velocidade média de transporte coletivo de 20 quilômetros por hora. “Hoje é de 12”, contou. E disse que a aposta do prefeito do PT, Fernando Hadadd, é investir no metrô e na ampliação de linhas, de vias e de novos corredores. Haddad assumiu há seis meses e nos protestos, que começaram na semana passada, foi um dos alvos preferidos.
Preços e lucros
A distribuição da renda está na agenda das novas discussões. No blog Carta Maior, o economista Víctor Leonardo de Araújo estudou as tarifas de transporte. Chegou à conclusão de que, entre 2000 e 2013, em São Paulo, o índice de preços para o consumidor subiu 133%, enquanto que o aumento do transporte chegou a 197%. Em relação aos passes, os governos subsidiaram as empresas e cortaram gastos de outros setores. Como os salários dos empregados do setor não foram os mais favorecidos pela economia, desse modo, parece claro que boa parte da renda foi apropriada pelas empresas de transporte.
Tema para discutir: o protesto atual é contra a corrupção, contra a injustiça ou contra os dois fenômenos ao mesmo tempo? Há, ou pode existir, um ponto de vista derivado do conhecimento de causa ou é um estereótipo com raízes verdadeiras, mas impreciso e, portanto, difuso e politicamente perigoso, inclusive para os membros e setores não corruptos da política?
Reivindicações
Em seu blog Contrapuntos, em que escreve para a edição digital de El País, o argentino Pablo Gentili disse que “as gigantescas manifestações não reivindicaram apenas em razão do aumento indevido de 20 centavos no transporte público”, mas “expressaram uma crítica veemente às péssimas condições de mobilidade numa cidade como São Paulo, onde as pessoas pobres gastam em média 3 horas por dia para ir e vir de seus empregos, e o fazem isto, ademais, apertadas, maltratadas, humilhadas”. Trata-se de “um transporte caro e ruim, onde o gigantesco lucro empresarial convive com a tolerância de governos indiferentes e corruptos”.
Gentili, secretário executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais, e há 20 anos residente no Rio de Janeiro, disse que poderia se afirmar, com razão, que “isso acontece e aconteceu sempre”. E reflete: “Sim, mas não poderia continuar acontecendo numa cidade em que a esquerda havia recuperado o governo seis meses atrás”. Gentili disse que as mobilizações foram “inesperadas”, inclusive para o governo de Dilma. Constata a contradição com a qual o governo deverá lidar: “Um descontentamento produzido após uma década de conquistas democráticas profundas, caracterizadas por uma significativa ampliação dos direitos e as oportunidades sociais, especialmente promovidos entre os setores mais pobres”. Ou seja, simultaneamente, o avanço e o protesto. A ascensão social a que milhares chegaram, não apenas emprego, mas em maior consumo, e em alguns casos contando com eletricidade e água pela primeira vez na vida, unido à sobrevivência de práticas ou visões elitistas, que vêm de uma tradição escravocrata.
Gentili destaca, entre os temas do protesto, as reivindicações contra a repressão da polícia. Enumera as reivindicações: “Por melhores condições de vida, educação, mais e melhores hospitais, transporte público digno (e gratuito), contra a corrupção, contra a violência (especialmente, contra a violência policial), pelo respeito à diversidade sexual, contra o uso espalhafatoso de recursos públicos em uma Copa do Mundo, cujos benefícios não parecem muito visíveis para o conjunto da população”.
Sem telenovela
O Brasil tem uma grande cadeia de televisão, com alcance nacional, a Rede Globo. À noite, cedo, meio país para. É a hora da telenovela. Qualquer um sabe que não deve se meter com ela. Os noticiários vêm depois. Na campanha, os políticos programam atos e horários na televisão antes ou depois da novela. Nunca durante. Sabem que ninguém prestaria atenção neles. No início das manifestações, quando não estava nítida sua grandiosidade, a Globo se concentrou na violência. Logo, os vândalos passaram a ser cidadãos. E quarta-feira, dia 20, segundo contou o estudioso Laurindo Leal Filho, no portal Carta Maior, produz um fato histórico: substituiu a novela pela transmissão ao vivo das mobilizações. Laurindo interpreta que depois de uma primeira etapa de direção por parte do Movimento Passe Livre, a Globo passou a conduzir as manifestações.
Autor de “A TV sob controle”, o estudioso escreveu: “Açoitado nas ruas e nos cartazes, para responder, o governo precisa se valer da própria televisão que o ataca. Assim como outros governos, pensou que isso seria possível e, por isso, não constituiu canais alternativos de rádio e TV capazes de equilibrar a disputa informativa”.
Laurindo destacou que Cristina Fernández de Kirchner tomou uma atitude diferente. Lembrou que se o projeto de regulação dos meios eletrônicos, formulado no final do governo de Lula, tivesse sido enviado ao Congresso e sido aprovado, “outras vozes estariam no ar”. O PT, como partido, continua pedindo formalmente um regime regulatório dos meios audiovisuais. O governo, que não é apenas do PT, mas uma coalizão com aliados, entre outros, com os líderes estaduais do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, declinou em efetivá-lo.
Particularmente, os representantes davam dois tipos de motivos. O primeiro, de impossibilidade: a regulação não seria apenas nacional, mas atingiria interesses dos aliados em cada Estado. O segundo, de conveniência: a guerra pela regulação teria um resultado particularmente incerto, quando, diziam, o PT e seus aliados vinham vencendo, desde as eleições de 2002, com os grandes meios audiovisuais e gráficos na oposição, de maneira sistemática e tenaz. A política de regulação dos meios de comunicação não é, nem de longe, a única limitação que impõe a política de alianças com as estruturas estaduais realmente existentes. E tampouco, neste caso, a opção poderia se apresentar em branco ou preto. Sem essas alianças do PT, que é apenas o segundo bloco entre os 513 deputados, talvez fosse possível vencer as eleições, mas não governar. E as alianças não apenas trazem votos e governabilidade, mas obstáculos e, muitas vezes, nichos de corrupção.
Gasto público
André Singer foi porta-voz de Lula. Escreveu uma coluna no jornal Folha de São Paulo na qual apresenta a legitimidade das demandas por melhor saúde, educação e segurança. Em todo caso, para ele a discussão é como fazer isto, porque os setores conservadores querem resolver com ajuste e corte de gastos e empregados do setor público. “Caberá à esquerda, que teve o mérito de começar a luta, ter a coragem de mostrar a cara e propor um programa que, sem deixar de ser republicano, aposte na ampliação do gasto público para construir o bem-estar que as massas exigem”.
Escalas
O Brasil carece de uma suspeita pertinaz sobre as obras públicas. Ao contrário, o desenvolvimentismo é uma boa palavra para todos. Até a ditadura foi desenvolvimentista, e muitos velhos nacional-desenvolvimentistas, como o economista Delfim Neto, apoiaram os governos de Lula e Dilma. O industrialismo versus a financeirização. As grandes obras contra o mero negócio dos bancos. A épica das barragens, as estradas, agora os estádios. Porém, essa épica não crepita em algum ponto?
Desde o final de maio, o canal History coloca no ar a série de documentários “Homens que construíram a América”. É claro, trata-se daqueles que construíram os Estados Unidos. E, mais precisamente, dos grandes industriais que, nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, dedicaram-se às ferrovias, ao petróleo ou ao aço. John D. Rockefeller, Andrew Carnegie, Cornelius Vanderbilt, Henry Ford, J. P. Morgan. Fizeram isto com força e sem reparar em nada. Queriam construir uma fortuna, um nome, uma política ou tudo isso junto no interior da construção de uma potência mundial. Procuravam assegurar um modelo de cartelização que vencesse o poder emanado da presidência, caso um presidente não os resultassem próprio, e também a qualquer desafio de justiça social. O Brasil do crescimento, após anos de estancamento neoliberal, foi, ao mesmo tempo, o país das empresas de tamanho global e dos negócios de escala planetária. O país da Vale e Odebrecht, das estatais Banco Nacional de Desenvolvimento e Petrobras. As manifestações colocaram em dúvida essa escala? Ou se deram conta da distância que vai da escala global do Brasil às tantas injustiças que ainda persistem na vida cotidiana?
Nem tudo é a mesma coisa. Por um lado está a transnacionalização das empresas privadas que, às vezes, trabalham com o Estado e, às vezes, procuram ser servidas pelo Estado. Por outro, a realidade surgida da decisão política tomada por Lula e Dilma de que as novas reservas marinhas, descobertas pela Petrobras, sejam asseguradas para a saúde e educação. Essa diferença se tornará suficientemente conhecida? A pergunta não sugere apenas um problema de comunicação, mas de política concreta, pública e, no caso do PT, partidária. Após os planos que tiraram 40 milhões de pessoas da pobreza, estaria sendo encarnada a visão estratégica de um Brasil mais justo, com novas políticas micro que possam ser percebidas todos os dias?
Ritmos
Valter Pomar, dirigente nacional do PT e ex-secretário de Relações Internacionais do partido do governo, escreveu na web Página 13 que a agricultura familiar estava sendo destratada pelo governo. E sobre as manifestações destacou: “Esses milhões de famílias, muitas das quais se beneficiam com as políticas de aumento do salário mínimo, de crescimento do emprego e de transferência de renda para propiciar educação e saúde, também começaram a se dar conta das disparidades existentes nos investimentos. A rapidez dos investimentos em parques esportivos para atender compromissos como a Copa e as Olimpíadas é flagrante. Como evidente é a lentidão dos investimentos em saneamento básico, na construção de moradias, na reforma e construção de ferrovias, portos e aeroportos, na melhoria dos transportes urbanos, na instalação de novas fábricas, que mantenham o ritmo de criação de emprego, e na reestruturação da educação e a saúde”.
Romário
O título da página da web www.romario.org é “um campeão a serviço do povo”. O campeão mundial pela seleção brasileira, em 1994, é deputado federal pelo Rio de Janeiro, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB, aliado do PT), e preside a Comissão de Esporte e Turismo da Câmara dos Deputados. Em boa medida, Romário conquistou a cadeira por seu compromisso e sua fama como goleador e, em boa medida, em razão de sua campanha em favor dos portadores de necessidades especiais. Tem uma filha com síndrome de Down. Ele lembrou que apresentou um projeto para que a FIFA fosse obrigada a investir 10% de seus lucros no futebol brasileiro e em esportes praticados por pessoas com necessidades especiais, mas que sua ideia não teve impacto. Nos últimos dias, cunhou uma frase de grande nitidez: “A FIFA é o verdadeiro presidente do Brasil”. Disse que o Brasil investiu 28 bilhões de reais e que a FIFA ficará com 4 bilhões, livres de impostos, sem ter feito nada.
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