20 Junho 2013
Dissonância cognitiva é a forma como os psicólogos descrevem a ansiedade gerada quando a experiência de uma pessoa entra em conflito com o seu modelo de mundo. Ou os fatos precisam ser remodelados para se ajustar ao modelo, ou o modelo precisa dar lugar à luz dos fatos, porque as pessoas simplesmente não podem viver muito tempo em um estado de confusão perpétua. Com efeito, essa é precisamente a encruzilhada em que o mundo católico se encontra após os primeiros 100 dias da era Papa Francisco.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 17-06-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Pelos padrões tradicionais, a situação tem sido tranquila no fronte vaticano. Até hoje, Francisco anunciou apenas uma medida política verdadeiramente ousada – a nomeação em meados de abril de um grupo de oito cardeais de todo o mundo para servir como a sua "despensa de cozinha". A sua primeira reunião, no entanto, não irá ocorrer antes de outubro, e ainda não está claro o que ele poderá fazer.
Por outro lado, Francisco nomeou 48 novos bispos e um punhado de autoridades vaticanas de segunda linha. A maioria dessas nomeações estavam sendo trabalhadas antes da sua eleição. Ele aprovou algumas causas de canonização, erigiu algumas novas dioceses e se encontrou com alguns chefes de Estado – de forma alguma um desvio da normalidade. Ele não emitiu nenhum grande documento do magistério, nem deu nenhum passo substancial em direção a uma reforma muito discutida da Cúria Romana.
Pelo fato de ter havido pouca ação substantiva, houve pouca polêmica. Mesmo uma declaração do dia 15 de abril de que Francisco tinha confirmado uma reorganização ordenada pelo Vaticano da Leadership Conference of Women Religious nos Estados Unidos realmente não turvou as águas, exceto em círculos ativistas restritos, em que a reação mais comum foi: "Vamos esperar para ver".
No momento, Francisco está se preparando para a viagem no fim de julho para o Rio de Janeiro, para a Jornada Mundial da Juventude, e depois disso o Vaticano entra em seu marasmo de verão. É provável que sejam reveladas somente depois de setembro quaisquer decisões consideradas significativas, como a nomeação de um novo secretário de Estado.
Os modelos usuais, assim, diriam que, até agora, Francisco é um cão que ladra mas não morde. No entanto, na base, há uma sensação palpável de que algo sísmico está em curso.
As multidões de Francisco têm sido enormes, forçando a polícia a fechar a área em torno da Praça de São Pedro para o tráfego, como se a Madre Teresa ou o Padre Pio estivessem sendo canonizados. Os vendedores de toda Roma relatam um boom nas vendas da parafernália papal, sempre um termômetro confiável para o entusiasmo popular.
Em todo o mundo, existem relatos de picos de participação nas missas e de procura por confissão, que muitos atribuem a um "efeito Francisco". Pesquisas, como a realizada em meados de abril nos Estados Unidos pelo Pew Forum, mostram índices de aprovação esmagadores, e os meios de comunicação globais continuam fascinados muito além do período habitual de lua de mel. Todas as indicações são de que a viagem ao Rio irá se definir como a maior festa católica do início do século XXI.
Em outras palavras, a Vaticanologia e a vox populi estão em desacordo.
Talvez, a chave para resolver o conflito se resuma a isto: Francisco parece determinado a agir como pastor, e o menos possível como um primaz ou um político, de forma que o modelo certo pode não ser o utilizado para avaliar diretores executivos. Ao contrário, é como os católicos tendem a pensar em um pároco. A pergunta básica deles geralmente não se refere a quais são as suas posições políticas, mas sim se ele é inspirador.
Talvez a lição básica dos primeiros 100 dias de Francisco é que, quando se trata de liderança espiritual, às vezes o estilo é realmente a substância.
Dom Jorge Eduardo Lozano, bispo de Gualeguaychú, Argentina, diz que é um erro esperar que o papa real surja debaixo dos floreios largamente simbólicos dos seus primeiros dias. Em vez disso, esses floreios são o papa real, insiste Lozano, que é um amigo próximo do ex-cardeal Jorge Mario Bergoglio, que trabalhou com ele como auxiliar em Buenos Aires durante seis anos.
"Eles são uma expressão do seu magistério", disse Lozano em meados de abril.
"Ele está enviando uma mensagem aos outros cardeais, bispos e padres de que é isso que nós precisamos fazer – ir ao encontro das pessoas, não nos contentando em esperar que elas venham até nós", disse Lozano. "Mais amplamente, ele está enviando a mesma mensagem a todos os católicos de todas as partes".
Essa mensagem pode ser decodificada em termos de quatro características que definem o estilo de liderança de Francisco: simplicidade, humildade, manter-se em grande parte apolítico e ser extremamente acessível às pessoas comuns.
Antes da sua eleição, uma das poucas coisas que o mundo realmente sabia sobre Bergoglio era a sua propensão pela simplicidade. Ele era um príncipe da Igreja que pegava o metrô para ir ao trabalho, ao invés de usar um carro e um motorista, e que morava em um apartamento modesto em vez da opulenta mansão arcebispal.
(Os seus aposentos em Buenos Aires eram tão espartanos que ele tinha que deixar o forno aceso nos finais de semana durante o inverno para se manter aquecido, porque a direção desligava a calefação.)
Francisco levou essa abordagem para o papado. Ele geralmente caminha pelos espaços vaticanos, em vez de entrar nas habituais Mercedes pretas de placas "SCV-1", que indicam a limusine do papa, e ele mora em uma modesta suíte na residência Domus Sanctae Marthae, em vez do cavernoso Apartamento papal.
A simplicidade de vida muitas vezes conota uma preocupação especial pela pobreza e pelos pobres, e essa é claramente uma pedra angular da agenda Francisco. Durante um encontro no dia 16 de março com os jornalistas em Roma para cobrir o conclave, Francisco expressou o seu anseio por uma "Igreja pobre para os pobres".
Francisco levou esse espírito de solidariedade ao nível da política. Por exemplo, durante uma audiência no dia 16 de maio, em que ele recebeu as credenciais de quatro embaixadores junto à Santa Sé, ele alertou que, "enquanto a renda de uma minoria cresce de maneira exponencial, a da maioria vai se exaurindo".
A equipe de comunicação vaticana disse aos repórteres que Francisco chamou-os antes do discurso para exortá-los a prestar atenção, o que sugere que o papa pensava que o que ele tinha a dizer era especialmente importante.
"Esse desequilíbrio deriva de ideologias que promovem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira, negando assim o direito de controle aos Estados, que têm precisamente a responsabilidade de prover ao bem comum", disse o papa. "Instaura-se uma nova tirania, invisível e às vezes virtual, que impõe, unilateralmente e sem recurso possível, as suas leis e regras".
Uma semana depois, Francisco visitou uma cozinha popular vaticana mantida pelas Missionárias da Caridade e se pronunciou contra o que ele chamou de "capitalismo selvagem [que] tem ensinado a lógica do lucro a qualquer custo, do dar para obter, da exploração sem considerar as pessoas... e podemos ver os resultados na crise que estamos vivendo!".
Como prova de que as pessoas estão tomando conhecimento, a augusta revista de negócios Forbes, em um editorial de meados de maio, sentiu-se compelida a admoestar o papa. "Não é o lucro que impulsiona a pobreza", afirmou o editorial; ao contrário, "o lucro é o que supera a pobreza".
Certamente, os discursos em nome dos pobres têm sido um item básico da retórica papal. O que parece dar vigor aos apelos de Francisco é a percepção de que eles são sustentados pelo compromisso pessoal.
A simplicidade também resplandece através da confiança de Francisco nos gestos, ao invés dos pronunciamentos elaborados, para passar a sua mensagem. Em vez de pregar sobre o sacerdócio como serviço durante a sua missa na Quinta-feira Santa, por exemplo, ele visitou a prisão juvenil Casal del Marmo, no noroeste da Roma, e lavou os pés de 12 presos, incluindo duas mulheres e dois muçulmanos.
A inclusão das mulheres, tecnicamente, foi uma violação a um decreto de um édito de 1988 da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos do Vaticano, que afirmava que, como o rito reencena Jesus lavando os pés dos seus apóstolos, somente homens deveriam participar. O padre jesuíta Federico Lombardi, porta-voz do Vaticano, justificou a decisão precisamente com base na simplicidade.
"Essa comunidade entende as coisas simples e essenciais. Eles não eram liturgistas", disse Lombardi à época. "Lavar os pés era importante para apresentar o espírito de serviço e de amor do Senhor".
Se os católicos fossem entrevistados sobre as virtudes que eles associam à ordem dos jesuítas, sem dúvida, eles marcariam muitas qualidades admiráveis – brilho, zelo, uma capacidade de pensar fora do padrão, um impulso para ir às fronteiras missionárias e assim por diante. Tradicionalmente, no entanto, a "humildade" pode não acabar perto do topo da lista, com base em grande parte na experiência pessoal de jesuítas que muitas vezes têm um senso bastante forte das suas próprias aptidões.
Ironicamente, é o primeiro papa jesuíta que parece estar acentuando a humildade como uma qualidade que define a liderança eclesiástica.
Em sua estreia no palco mundial na noite do dia 13 de março, Francisco humildemente pediu que a multidão na Praça de São Pedro lhe desse uma bênção e curvou-se para recebê-la, antes que ele dissesse qualquer coisa. Era um prenúncio do que estava por vir.
De formas grandes e pequenas, Francisco rejeitou muitos dos habituais modos pelos quais os papas se separam da "gentalha". Ele faz os seus próprios telefonemas, geralmente começando as conversas simplesmente dizendo "É o Jorge". O novo papa telefonou para Buenos Aires para cancelar a sua assinatura de jornal e para fazer um pedido ao seu sapateiro de um novo par de sapatos.
Como em Buenos Aires, Francisco não nomeou um padre secretário para ser seu assessor-chave, ou seja, não há nenhum Stanislaw Dziwisz nem um Georg Gänswein deste papado – secretários de João Paulo II e de Bento XVI, respectivamente, que atuavam como gatekeepers e intérpretes, e que ocasionalmente eram vistos quase como vice-papas.
Em parte, isso é um reflexo do estilo prático de gestão de Francisco, mas também é uma expressão de humildade, de não estar acima fazendo as suas próprias tarefas de rotina.
Agora, sempre que Francisco se encontra com um grupo no Vaticano, ele normalmente não se senta no trono papal, esperando que os VIPs venham para a frente. Ao contrário, ele desce do tablado, encontrando os seus visitantes ao nível dos olhos, e os cumprimenta como iguais – outro floreio humilde que o antigo correspondente vaticano Andrea Tornielli observou recentemente e que, segundo ele, fez com que mais de um veterano "torcesse o nariz".
A humildade também se tornou um traço definidor do papado em nível teológico e eclesiológico. Por exemplo, a maioria dos observadores vê a sua decisão de formar um corpo de cardeais para ajudá-lo a governar como um compromisso a uma forma mais colegiada e colaborativa de exercer a autoridade.
Essa abordagem, obviamente, não agrada a todos. O liturgista italiano Mattia Rossi disse que isso representa um passo em direção à "demolição do papado", porque substitui a noção de uma autoridade divinamente instituída por um conceito difuso de colegialidade – transformando o papado, assim, segundo Rossi, de "primeiro acima de iguais" a "primeiro entre iguais" (Rossi ironicamente perguntou se os cardeais que deverão reformar a Cúria saberão encontrar os seus banheiros dentro dela).
Em um veio similar, Francisco prefere se referir a si mesmo não como "papa", mas como "bispo de Roma", o que a maioria vê como um reflexo de uma concepção menos imperial do papado, mais próxima das suas raízes históricas.
Alguns especialistas ecumênicos acreditam que a humildade de Francisco poderia pavimentar o caminho para o progresso rumo a uma maior unidade entre os cristãos, uma vez que os ressentimentos em torno da perceptível arrogância papal têm sido um pedra de tropeço há muito tempo.
"Na época feudal, nós desenvolvemos essa noção dos bispos como príncipes", disse o padre capuchinho William Henn, veterano ecumenista que leciona na Universidade Gregoriana de Roma. "Com Francisco, eu acho que outros cristãos podem ver o ministério episcopal de forma mais clara como um serviço à comunhão e vão se tornar mais aberto a isso".
Por mais que tentem, mesmo os líderes religiosos menos propensos ao ativismo político muitas vezes têm dificuldade para ficar acima das disputas. Isso é especialmente verdade para os papas, já que a Igreja Católica tem um vasto corpo de doutrina social com consequências políticas.
Francisco já disse muitas coisas com uma óbvia relevância política. Além de seus comentários sobre a economia, ele também falou sobre a proteção do meio ambiente, rotulou a guerra como o "suicídio da humanidade" e, dirigindo-se no dia 12 maio à Marcha pela Vida em Roma, disse que a proteção legal de cada vida humana deve ser garantida "desde o primeiro momento da sua existência".
Em outras palavras, não há nenhuma indicação de que Francisco pretende levar a Igreja para longe das suas tradicionais preocupações políticas. No entanto, muitos observadores acreditam que este não é um papa que pula da cama de manhã pensando em política. A evidência dos seus primeiros 100 dias parece sustentar essa intuição.
Nenhum comentário quer do papa, quer de seus principais assessores vaticanos se seguiu a uma votação no dia 10 de abril no Uruguai para legalizar o casamento gay, apesar do fato de que o país faça fronteira com a terra natal do papa, a Argentina. O Uruguai se tornou o terceiro país da América Latina a adotar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, depois de Brasil e Argentina, e muitos analistas definiram-no como um ponto de inflexão que sugere que o restante do continente acabará seguindo o mesmo caminho.
Aparentemente, a medida equivaleu a um convite para que o primeiro pontífice latino-americano da história se pronuncie, mas Francisco não mordeu a isca.
Mais uma vez, isso acompanha o seu histórico. Aqueles que acompanhavam Bergoglio na Argentina dizem que ele geralmente preferia ficar fora das disputas políticas, agindo principalmente nos bastidores. A única vez que ele investiu contra uma briga foi na corrida pela legalização do casamento gay na Argentina em 2010, e os observadores dizem que isso se deveu em grande parte ao fato de que ele era presidente da Conferência Episcopal e se sentiu compelido a articular a linha dura da sua maioria.
Especialmente na Itália, onde as pessoas estão acostumadas a pensar nos prelados como pesos pesados políticos, a mudança de tom causou perplexidade.
Após um discurso de Francisco no dia 23 de maio à Conferência Episcopal Italiana, Tornielli definiu o evento como o "fim de uma era". No discurso de 12 minutos (o mais curto desses discursos na história, aliás), Francisco nunca se referiu à política ou a qualquer questão relacionada ao Parlamento italiano, que normalmente são o núcleo dessas sessões.
Tornielli escreveu que o evento lançou uma "revolução copernicana", longe de pensar a Igreja como uma mediadora política e rumo a um retorno ao essencial pastoral.
Um sinal notável surgiu quando Francisco disse aos bispos, "O diálogo com as instituições políticas [da Itália] é coisa de vocês". Isso foi visto como uma censura indireta ao secretário de Estado sob Bento XVI, o cardeal Tarcisio Bertone, que tentou reivindicar um lugar de destaque no cenário político italiano para o Vaticano.
Após a sessão, Dom Luigi Negri, arcebispo de Ferrara-Comacchio, resumiu o que vivenciou. Seus comentários são especialmente reveladores, já que Negri vem do movimento Comunhão e Libertação, tradicionalmente visto como um dos atores mais politicamente ativos da cena italiana.
"Eu não acredito que seja necessário se abster de se pronunciar quando certos valores estão em jogo", disse Negri; mas, à luz do novo tom de Francisco, "nós poderemos ter que mudar a nossa forma de fazer isso".
Negri disse: "Precisamos formar leigos para defender os valores inegociáveis. Assim como com relação a tudo o que diz respeito à vida política, seria melhor para nós, bispos, nos mantermos fora disso. A autonomia dos leigos deve ser respeitada".
O sociólogo italiano Luca Diotallevi ecoou a avaliação.
Francisco, disse ele, representa "uma abordagem fortemente inovadora no que diz respeito ao modelo de exercer o ministério episcopal durante as duas últimas décadas", que promete "reabrir um espaço enorme para os leigos" no sentido de assumir a liderança na interseção entre fé e política.
Nos primeiros dias após a eleição de Francisco, a piada em Roma dizia que as únicas pessoas que não se encantaram com o novo papa foram os seus agentes de segurança, que se esforçavam para acompanhar um pontífice determinado a escapar da bolha protetora em que os grandes líderes mundiais geralmente se movem.
"Esperamos que, depois desses primeiros dias, as coisas voltem ao normal", disse um dos oficiais de segurança ao jornal italiano La Stampa no dia 18 de março. "Senão ele vai deixar todo mundo louco!".
De todas as imagens da sua primeira semana no cargo, talvez a mais marcante foi quando Francisco visitou a pequena igreja vaticana de Santa Ana para rezar a missa do domingo, 17 de março, antes do seu primeiro discurso no Ângelus. Administrada pela ordem agostiniana, a Igreja de Santa Ana é onde os cerca de 400 empregados que vivem nos Jardins Vaticanos participam da sua vida paroquial normal.
Depois da missa, Francisco foi para o lado de fora da igreja e cumprimentou as pessoas enquanto elas iam embora, acariciando as crianças na cabeça e beijando-as, apertando as mãos e trocando abraços, com uma breve palavra trocada e um sorriso para todos. É uma cena que ocorre todos os domingos nas paróquias católicas de todo o mundo, mas raramente se vê um papa fazendo isso.
Os jornais italianos logo o apelidaram de "pároco do mundo".
Esse desejo de não se separar da experiência comum tem sido uma marca dos primeiros dias de Francisco. Ele fala ao telefone com prazer, telefonando para os amigos e fontes em várias partes do mundo para medir a temperatura da Igreja em suas vizinhanças.
O compromisso com a acessibilidade também envolve o uso de uma linguagem espontânea e improvisada, mesmo que ela leve os seus assessores à distração e provoque palpitações cardíacas entre os puristas teológicos, que normalmente preferem um quilo de verborragia a uma grama de imprecisão.
Como parte dessa imagem, Francisco adotou o costume de celebrar a missa todos os dias às 7h na Domus Sanctae Marthae, ao invés de celebrá-la em uma das capelas privadas do Palácio Apostólico. Um grupo de cerca de 50 pessoas participa dela, compostas por uma mistura de quem quer que esteja hospedado na residência naquele dia, convidados e funcionários vaticanos.
Assim como ele faz em outros ambientes, Francisco geralmente se confia a uma linguagem caseira para fazer as suas reflexões. No dia 10 de maio, por exemplo, ele comparou os cristãos excessivamente sombrios a "pimentas em conserva". No dia 18 de maio, ele disse que a fofoca na Igreja é como comer mel – o gosto é doce no início, mas comer muito dá "dor de barriga".
Pelo fato de não serem tratados sistemáticos, essas homilias são abertas a interpretações muito divergentes. Às vezes, elas parecem funcionar como um teste de Rorschach eclesial, revelando a agenda dos eleitorados ansiosos para enquadrar o novo papa.
Os liberais, por exemplo, pularam de alegria diante de uma homilia no dia 16 de abril dedicada ao 50º aniversário do Concílio Vaticano II, na qual Francisco criticou "aqueles que querem voltar atrás" nas reformas do Concílio. Os conservadores celebram todas as vezes em que ele usa o jargão tradicional, como suas referências surpreendentemente frequentes ao diabo. Eles também aplaudiram a homilia do dia 6 de abril em que Francisco advertiu: "Quando começamos a cortar a fé (...) tomamos o caminho da apostasia".
As homilias também podem desencadear frissons teológicos. No dia 22 de maio, Francisco disse que Deus redimiu a todos, "todos, não apenas os católicos. Todos! 'Padre, os ateus?'. Até eles. Todos". A frase provocou uma enxurrada de manchetes e de posts em blogs sobre se o papa estava, ou não, adaptando a doutrina católica estabelecida sobre os limites da salvação (aliás, um longo esclarecimento vaticano longo insistiu que ele não estava).
Francisco é conhecido como uma figura conectada, bem ciente das realidades in loco. Presumivelmente, ele sabe que as suas homilias se tornaram uma fonte diária de interpretações concorrentes. Até agora, porém, ele parece determinado a não deixar que o risco da má interpretação o impeça de agir como pastor.
Por enquanto, vários porta-vozes e autoridades-chave vaticanos parecem destinados a acordar todas as manhãs pensando se o dia de hoje irá trazer outra comoção instantânea provocada por esse notável papa do improviso.
Se Francisco está tentando moldar uma nova cultura da liderança na Igreja, como Lozano sugere, há alguma evidência de que isso está funcionando?
No sentido mais profundo, sem dúvida, levará algum tempo até que a resposta fique clara. A Igreja Católica é lendária por pensar em séculos, e o Vaticano, em particular, tende a responder às pressões pela mudança rápida da mesma forma pela qual os abstêmios reagem a uma oferta de uísque com soda – com uma mistura de terror e repugnância.
No aqui e agora, no entanto, há pequenos, mas reveladores indícios de que algo pode estar acontecendo. Uma recente anedota de Roma é um exemplo.
No fim de abril, um veterano cardeal italiano entrou em um restaurante no bairro de Trastevere, frequentado por funcionários vaticanos que trabalham na vizinha Piazza San Calisto. Com bem mais de 80 anos, esse cardeal geralmente se veste como um peso-pesado eclesiástico, usando enfeitados paramentos carmesins e exibindo elaboradas insígnias de ofício. Nesse dia, porém, ele estava vestido com modestas vestes clericais pretas, sem os refinamentos habituais.
Questionado sobre a sua aparência, o cardeal deu uma resposta epigramática.
"Com este papa", declarou, "o simples é o novo chique!"
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Os 100 dias de Francisco, o ''pároco do mundo'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU