Por: Jonas | 04 Março 2013
Felicísimo Martínez (foto) é um grande teólogo, mas humilde. Dominicano, professor catedrático do Instituto Superior de Pastoral da Pontifícia, em Madri, e com uma extensa obra. Seus últimos livros versam sobre antropologia teológica e sobre a missão da Igreja em tempos de crise. É um homem profundo, crítico, lúcido e ponderado, o que endossa seu itinerário.
Sobre a renúncia de Bento XVI, comenta que “para nós parecia que o Papa tinha que ser papa até a morte por dogma, agora sabemos que não é por dogma, mas por tradição ou disciplina”, e acrescenta que “oxalá cardeais e bispos começassem também a renunciar, porque a liderança da Igreja precisa diminuir a idade”.
Em relação à sociedade atual, o padre Felicísimo aponta: “tenho a impressão de que a solidão está se tornando uma verdadeira enfermidade social”, e conclui afirmando que “se esquecemo-nos dos pobres, não há Evangelho na Igreja”.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada no sítio Religión Digital, 25-02-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Para você, o que aparentou a renúncia papal?
Não me pareceu um estrondo tão grande. Já no final do pontificado de seu predecessor, João Paulo II, houve uma espécie de debate público sobre o seu sofrimento, se era bom para o magistério da Igreja e para o testemunho ou não. Ele, então cardeal Ratzinger, já adiantou que não seria incorreto que um papa pudesse renunciar por motivos de saúde.
No momento em que se fazia o panegírico e o louvor do sofrimento da cruz?
Exatamente. Fez isso quando alguns acreditavam que o sofrimento (patente diante das câmaras) de João Paulo II era o grande testemunho da Igreja para o mundo, enquanto que outros tentavam distinguir claramente o que é um testemunho do que é um governo, a administração da Igreja.
É necessário distinguir entre governar e reinar? Porque está claro que João Paulo II não pôde governar durante seus cinco últimos anos.
Claro.
No entanto, Bento XVI decidiu governar e não reinar.
Neste sentido, em minha opinião, estou sumamente impressionado, positivamente, pela renúncia de Bento XVI. Acredito que é um gesto com muitas vantagens, porque é um gesto testemunhal dele (no sentido de que para governar a Igreja é necessária certa qualidade, inclusive física), e por outra parte demonstra a coragem e a valentia que teve em desmistificar certas tradições que não são Tradição, embora carreguem seis séculos de acúmulo. E me parece que isto é extraordinário, um símbolo de saúde para a Igreja. E, em terceiro lugar, parece-me que é muito importante distinguir o testemunho pessoal daquilo que é o governo. O governo requer lucidez, força, domínio da situação... E o testemunho também tem valor quando um papa renuncia, com um gesto de humildade.
Duas saídas completamente diferentes?
Sim. E as duas tem seu lado positivo, mas, do ponto de vista do governo, eu concordo mais com esta do que com a anterior. O testemunho é sempre um valor enorme na Igreja, mas do ponto de vista daquilo que é um governo (porque o Papa é aquele que, de alguma forma, tem atrás de si o governo da Igreja), requer-se lucidez. Se junto isto acrescentarmos que a Igreja, como qualquer grupo, também tem seu componente institucional, sociológico, com seus conflitos e forças de poder interno, com maior razão, quem governa a Igreja precisa estar em condições de administrá-la.
Foi a Cúria que o tirou? Acredita que foi determinante o fato de ter sido traído de tão perto?
Não me atreveria a dizer nada disso, porque para isso falta estar dentro. Não sei. O que me parece é que as características deste papa eram mais intelectuais, de pensamento, mas no governo existem duas coisas: as ideias e os conflitos de poder. Eu acredito que este Papa estava muito mais ligado com a reflexão, pautas teológicas da Igreja... E é possível que, no âmbito interno da Cúria, não tivesse tudo sob controle.
Numa instituição “humano-divina”, esses conflitos de poder podem ser evitados?
Não. Sempre existirão. Eu sou dominicano e, portanto, movimento-me no campo comunitário, em microescala, e tenho que dizer, sem nenhum pudor, que em nossas pequenas comunidades a esfera do conflito está sempre presente. Às vezes se processa evangelicamente, e então poderíamos dizer que o conflito é motivo de crescimento cristão; e às vezes não tão evangelicamente, e é isto o que preocupa. Em absoluto, não me preocupa que exista conflito na Igreja, mas a forma como eles são processados. O Evangelho está repleto de conflitos, e Jesus não é alheio, nem um pouco, ao conflito. A questão é como se administra. Eu penso que existem duas formas de administrar o conflito. Nos conflitos de fidelidade, não há mais remédio a não ser seguir adiante, apesar do conflito. Depois, existem os conflitos de poder, e estes, sim, acredito que são anti-evangélicos. A questão está no por que existe conflito, e de que dimensão é.
E, neste caso, você não acredita que o Papa se deparou com um conflito de fidelidade e, também, com um conflito de poder?
Sim, esta é a situação, embora eu não esteja dentro da Cúria e sempre necessite apresentar como uma hipótese. Contudo, esta foi sua decisão, e me parece que é muito digna. Acredito que Bento tinha clareza de que é necessário depurar certos borrões e pontos sombrios da Igreja, neste momento: assuntos econômicos, abuso sexual, manipulações na Cúria... E que, por motivos de saúde ou por quaisquer motivos que sejam, acredita que não está em condições de enfrentá-los. Parece-me algo lógico que ele queira que venha alguém mais jovem, com mais força e com melhores condições físicas e mentais para essa tarefa.
Ele falou de cansaço físico, mas também de “cansaço espiritual”. Como você interpreta isso?
Provavelmente, interpretaria no sentido de que há um momento em que o esgotamento no governo é enorme, sobretudo, quando alguém procura insuflar o espírito evangélico ou a categoria cristã na gestão, e vê que forças externas (ou internas) se opõem. Então, acredito que, nesse momento, aparece a expressão “não posso mais, que o faça quem possa”, na opção pelo retiro e oração pela Igreja, sem fazer interferência.
Será o Papa da renúncia ou deixa um legado a mais?
Não sei o que permanecerá deste Papa, pois há um grande contraste entre a imagem do cardeal da Congregação da Fé (que não desapareceu, nem sequer o papado a apagou) e a figura de um papa que não corresponde (em sua atuação, em sua posse, em sua postura...) àquele estereótipo. Então, não sei o que irá prevalecer.
O papado dulcificou sua imagem?
Sim, dulcificou o estereótipo do homem prepotente da ortodoxia, perseguidor de hereges, etc. O resultado é que, depois, em suas poses midiáticas e em seu discurso, parece que não apareceu este estereótipo, mas apresentou-se a imagem de um homem humilde. Então, acredito que vão prevalecer alguns apontes frente aos grandes problemas que a Igreja possui no âmbito da política, da economia e da moralidade, pois, diante destas três áreas, ele fez declarações de coragem. Se depois, no governo, pôde enfrentá-las ou não, eu não sei. Acredito que a renúncia permanecerá como um grande bem oferecido.
Irá marcar um antes e um depois?
Sim. Não ficará apenas a renúncia, mas, sem dúvida, será “o papa que renunciou”.
Pode ser que o gesto descenda na hierarquia? Ou seja, que muitos bispos e cardeais comecem a renunciar também.
Oxalá, pois é um clamor generalizado que a liderança da Igreja diminua a idade. Não é um clamor somente dos não-crentes, agnósticos ou ateus, e não é um simples agravo comparativo com a sociedade civil, que possui um governo com idades muito mais baixas; é um clamor também interno, em nível de Igreja. Neste sentido, acredito que a renúncia pode ser um grande respaldo para que a própria Igreja considere que não é questão de resistir até a morte (essa expressão que se sacralizou muito), mas de resistir enquanto se é útil ao Evangelho.
Após a continuidade de João Paulo II e Bento XVI (que foi seu ideólogo), começa uma nova época no papado? Poderia ser o momento de um papa africano, latino-americano ou asiático?
Não acredito que comece uma nova época. Geralmente, quando chega um Conclave, surgem os eleitores que configuram a etapa anterior.
Porque foram nomeados pelos dois anteriores?
Claro. Neste sentido, é difícil pensar que na Igreja apareça uma ruptura da noite para o dia. Outra questão é que mude um pouco a direção.
Você se contentaria com uma mudança assim?
Eu não. Eu me contentaria com uma decisão como a de João XXIII, que da noite para o dia convocou um Concílio e surpreendeu o mundo todo. Porém, estou falando daquilo que costuma acontecer, não do que eu gostaria.
Isso, sim, foi uma absoluta ruptura?
Sim, surpreendente. Uma ruptura que não foi preparada baseada em nomeações, mas uma ruptura que saiu de um ancião profeta que atuou com o Espírito Santo. Nesse sentido, acredito que há uma diferença notável entre o que pode acontecer num Conclave, no qual chegam eleitores que foram nomeados pelo período anterior, e o que aconteceu com João XXIII, que, para surpresa do mundo inteiro, convocou o Concílio.
A Igreja está preparada para assumir um papa latino-americano ou um papa negro?
Acredito que sim, que a Igreja está totalmente preparada para que o papa não precise ser italiano, nem precise saber latim. O que não estou seguro é do fato de que um papa, caso seja branco ou negro, condicione notavelmente a natureza do papado. Como também não estou convencido do fato de que um papa, caso seja da África ou dos Estados Unidos, condicione totalmente o papado. Hoje em dia, dentro do episcopado, em muitos cardeais prevalece a lealdade institucional acima de sua condição nativa.
Ou seja, o problema não é o papa, mas o papado?
Sim, o papado da forma como está pensado e o tom em que o papa desenvolve esse ministério (que, certamente, estará condicionado por todas as pequenas tradições que influem nele). Por isso, parece-me tão positivo que este papa tenha quebrado uma dessas pequenas tradições, a de que o papa não podia renunciar, em liberdade e publicamente.
Nas Conferências Episcopais, a colegialidade pedida pelo Vaticano II foi desinflada?
Está a meio mastro, sim. Acredito que é uma das questões pendentes do Vaticano II, que não conseguiu amadurecer. É uma fruta ainda verde.
Nem o Sínodo dos bispos conseguiu mudar um pouco isso?
É algo pendente, como é a maior parte dos corpos, ao invés de ser decisivos e deliberativos, são consultivos, sendo que a decisão sempre fica dependente da cabeça. A promessa do Vaticano II, para as igrejas locais, também ficou pendente.
Tem acontecido algo parecido nas ordens religiosas ou continuam funcionando com a mesma democracia interna?
Eu sou dominicano e estou muito feliz por isto, como suponho que os demais também são muito felizes por serem jesuítas ou claretianos. Certamente, uma de nossas características é a agilidade na qual os governos mudam ou que as pessoas renunciam, e a facilidade na qual as instituições se movem. Neste sentido, é verdade que não há tanta sacralidade dos cargos como acontece na Igreja institucional. Por exemplo, tivemos um mestre geral que terminou e foi cuidar de sua mãe na Irlanda.
Em seu livro, você reflete sobre como a Igreja pode voltar a se conectar com o mundo moderno?
Sim. O livro foi pensado não apenas para a comunidade cristã, mas para qualquer homem ou mulher de boa vontade. Neste sentido, hoje em dia, a grande pergunta não é somente a respeito de como a Igreja dirige o trabalho com suas assembleias e grupos, mas como conduz o trabalho pastoral com os distanciados, não-crentes... pessoas que estão buscando sentido nas religiões, a sabedoria ou o que seja. O livro foi pensado nessa direção. Nesse sentido, uma das preocupações está em saber se a Igreja tem ouvido suficiente para escutar o mundo. Escutar o mundo não significa nem aplaudir, nem persegui-lo inquisitorialmente, mas se colocar de forma neutra para perceber o que dizem as pessoas, a cultura, o mundo. Por que dizem e quais são os valores que propõem, etc. Não ver seus erros ou quais são suas heresias.
A hierarquia católica não se encontra como se estivesse encapsulada, sem muito contato com a realidade para poder escutar? Às vezes, não parece, inclusive, que os párocos vivem em outro mundo?
Se nos deixamos encapsular completamente, é impossível escutar, pois a única coisa que escutaremos, em todo caso, serão os ecos do mundo transmitidos pelas pessoas que nos rodeiam, e que normalmente tem para conosco certa lealdade, e não se atreverão a nos dizer as arestas e estridências que vêm de fora.
Aduladores?
Sim, em muitas situações. Contudo, também há outra forma de ser pároco ou ser bispo. Por exemplo, tenho a sensação de que quando Carlos Amigo fala, responde a algo que o mundo disse e não que escutou no palácio episcopal ou na catedral. O que isto nos mostra é que depende claramente das atitudes pessoais. A quem se ouve.
Falta-lhes ir ao mercado, ir ao metrô, falar com seus sobrinhos... e esse tipo de coisas que são as que fazem viver a experiência dos mortais comuns?
Efetivamente. Falta-lhes escutar. Acredito que há duas formas de estar na família, duas formas de presença dos sacerdotes em sua própria família: os que modestamente se colocam e escutam os sobrinhos, e os que magisterialmente vão para ensiná-los. Esta segunda postura é a que provoca, logicamente, a reação negativa. Escutar significa ficar calado e deixar que o outro fale. E, caso não se entenda bem, ao invés de condenar, perguntar.
Em seu livro, você também diz que necessitamos de conversão. O que precisamos converter: estruturas, pessoas, tudo?
Tudo. Eu tenho um companheiro sociólogo que sempre me diz que sou muito espiritual e que não completo sociologicamente a leitura dos problemas. Por exemplo, quando eu falo do individualismo na vida religiosa, não é que fale de pecado, mas sempre o atribuo um pouco à falta da dimensão teologal. Ao contrário, para ele é um traço cultural. Nesse sentido, pode ser que eu exagere algo, mas me parece que, hoje, os problemas de fundo da Igreja continuam sendo um problema teologal. O grande problema é a falta de experiência diretamente evangélica, de fé em profundidade. Sem confundir a fé com a piedade, nem com o sentimento religioso. A fé como uma leitura crente do mundo, da vida e da história.
Neste sentido, acredito que a fragilização da fé é o grande problema da Igreja. Não dos ateus ou dos agnósticos, mas da própria Igreja. Dentro disto, satisfaz-me uma ideia que apareceu no recente Sínodo dos bispos e que de alguma forma ressaltava isto: que a Nova Evangelização deve ser dirigida, antes de qualquer coisa, à própria Igreja. A própria Igreja tem que anunciar a si mesma o Evangelho. Se as conversões estruturais maiores não são enfrentadas, é porque faltam maiores experiências teologais (em nível pessoal e de vida religiosa).
Eles têm medo de afundar, e por isso se enroscam?
Sim. O Evangelho deixa muito claro a consciência entre a falta de fé e o medo. Chama-me a atenção que no Evangelho Jesus quase nunca reclama aos discípulos outra coisa a não ser o “por que vocês têm medo, homens de pouca fé?”. Parece-me que isto é chave. Que é uma lição de sabedoria humana e de antropologia. E mais: acredito que, às vezes, a prepotência e as atitudes ditatoriais são o disfarce que o medo assume, pois nunca se atreve a se apresentar de peito aberto. Então, na medida em que a Igreja e todos nós que a formamos estivéssemos sustentados num fé profunda, provavelmente não teríamos medo das mudanças, nem em romper tradições. Estou convencido disso.
O terceiro passo que você aponta é a colaboração, como oferta de sentido e de comunidade.
Sim. Existem três núcleos que cada vez me parecem mais urgentes a respeito da contribuição que a Igreja, em definitivo, precisa dar para o mundo atual, que cresceu em democracia, em pensamento crítico, em ilustração... Cada vez estou concentrando mais a minha atenção em torno destes três núcleos, que correspondem a três demandas fundamentais do mundo atual. Uma é a demanda de sentido, neste mundo em que, apesar da crise econômica, a maioria das pessoas possui condições materiais suficientes para não lamentar, nem se queixar. Certamente, eu me pergunto por que tantas pessoas, com as condições materiais próprias para ser felizes, acabam não sendo. O que acontece? Por que a felicidade não aumenta? O sentido da satisfação, no sentido mais sadio da palavra, também não cresce. Eu defendo que o problema do sentido é o problema central do ser humano, e a este respeito parece-me que o Evangelho de Jesus é uma oferta de sentido extraordinário.
E por que, neste momento, tanta gente busca esse sentido vital em outras coisas? Busca-se espiritualidade, mas não religião?
Provavelmente, porque o Evangelho ficou preso por aderências, escórias ou cascas institucionais que não permitem ir até o fundo. E pode ser, também, que existam cascas institucionais que por dentro não possuem nada. Eu sou rural, e sempre utilizo imagens muito rurais, e uma boa noz por fora é igual a uma que não tem nada por dentro. Isto pode acontecer em determinados rituais ou tradições religiosas que por dentro não possuam o Evangelho.
Por isso, nossos filhos buscam espiritualidade, mas rejeitam a Igreja?
Sim. No entanto, quando somos capazes de testemunhar o Evangelho numa conversa, num diálogo tolerante, compreendendo e sem censurar, acabam dizendo: deste modo sim, assim dá gosto! Quando aparece o Evangelho, mesmo que seja pouquinho.
E também diante do testemunho direto, por exemplo, da entrega de um missionário?
Sim. Neste sentido, eu entendo perfeitamente que hoje em dia existem ofertas muito mais imediatas e, às vezes, muito mais vitais ou existenciais, mais próximas da sensibilidade das pessoas. E, então, talvez uma celebração com cantos alegres seja melhor do que todos os domingos juntos, como irmãos. Escutar o mundo significa, precisamente, entender o que é o que está pedindo quando se pede sentido. O Evangelho é capaz de modificar todas as nossas perguntas, retificá-las e colocá-las no verdadeiro sentido. Eu tenho a impressão de que a solidão está se convertendo numa verdadeira enfermidade social. Se você sentar próximo de alguém num parque e se atrever a cumprimentá-lo, você pode se encontrar uma pessoa que fale com você toda a manhã. Então, alguém diz: “talvez esta pessoa vive sozinha”. Entretanto, não, esta pessoa tem parceiro formal, filhos, família... e, no entanto, sente uma solidão enorme. Nesse sentido, parece-me que na sociedade atual faltam microambientes ou microclimas comunitários. As instituições se fortaleceram em nível político, econômico e bancário, temos tudo regulamentado... Porém, faltam comunidades cálidas (não no sentido frouxo, de se sentir à vontade, mas de saber com quem conto e quem conta comigo).
Isso não implica numa revolução em nossas paróquias, que têm se funcionarizado?
Totalmente. Isto supõe afirmar que dizer “comunidade paroquial” é frequentemente um autoengano, porque é um grupo, uma instituição, mas não uma comunidade.
Se o diagnóstico já está feito, por que não começamos a modificar essa dinâmica?
Em alguns setores falta convicção, aceitação de que isto é verdade. A capacidade que nós, os seres humanos, temos de nos cegar é enorme. Por isso, os milagres dos cegos nos Evangelhos me encantam (não naquilo que tem de espetacular, mas de meta mensagem: o abrir os olhos como tema fundamental). Então, há muitas pessoas convencidas de que a paróquia é uma comunidade, e de que somos todos irmãos e irmãs (sem sabermos os nomes, sem nos conhecermos, e dando-nos a paz sem nos olharmos no rosto). Pode ser que não cheguemos a criar estes espaços comunitários, pois não estamos convencidos. E há outras pessoas que igualmente estão convencidas, mas que não tem capacidade, ou tem medo. É muito mais fácil funcionar com a rotina do que com a criatividade.
De fato, todo agente pastoral começa com ilusão, com fervor, com trabalho, criando grupos... até que chega o momento de cansaço, também espiritual, como dizíamos antes. E, depois, parece-me que a Igreja tem uma grande hipoteca em suas costas, no sentido de que leigos e mulheres, especialmente, foram por muito tempo um elemento passivo. E o elemento passivo normalmente não é considerado como sujeito comunitário, mas como sujeito paciente. Então, isto requereria, na Igreja e no trabalho pastoral, uma recomposição completa do que é a comunidade cristã: todos iguais, horizontalmente, e cada um com seu ministério, pois ninguém é mais do que ninguém.
A dinâmica dos padres jovens não vai precisamente em direção contrária?
Isso é o que dizem alguns membros de algumas paróquias e eu, é claro, que gostaria que fossem em outra direção, na do Espírito do Concílio. Porque acredito que um dos ministérios que a Igreja tem que oferecer às pessoas e ao mundo atual seria, precisamente, espaços de comunidade, onde as pessoas pudessem se sentir como em casa (em todo o Novo Testamento a palavra casa é fundamental) e à vontade. Essa seria uma oferta extraordinária. Um grande testemunho, não de perfeição moral, mas de qualidade solidária.
E a oferta de justiça e compaixão com as vítimas?
Na ONU, Paulo VI disse que a Igreja deveria ser perita em humanidade. E a experiência da humanidade, nós aprendemos somente a partir do sofrimento. Eu me entusiasmo muito com o fato de que uma parábola tão evangélica, como a do samaritano, esteja se tornando uma espécie de lema aconfessional. Porque esta parábola aparece em debates atuais entre pessoas que não são crentes, que pensam que ela simboliza a chave do que significa crescer em humanidade. E que fora do sofrimento não há possibilidade de humanização. Quando se exclui o sofrimento, excluem-se os pobres e à injustiça.
Já em suas cartas aos gálatas, São Paulo contava que em razão de ter sido perseguidor da Igreja, alguns duvidavam dele como testemunha de Jesus, e até ele próprio começava a duvidar se estaria pregando o Evangelho de verdade. Diante disto, foi se certificar com Pedro, em Jerusalém, que lhe disse que sim, que ele pregava o Evangelho, mas acrescentou um detalhe impressionante: que não se esquecesse dos pobres. Dando a entender que, em definitivo, este é o critério para verificar a autenticidade do Evangelho. Se esquecemo-nos dos pobres, não há Evangelho na Igreja. Hoje em dia, entre tantos descréditos que a Igreja padece, o que a credita sempre são aqueles setores em que os pobres não são esquecidos. A Cáritas e o trabalho que está fazendo nestes tempos de crise e desemprego, os missionários que ficam até quando todos se vão... Ou, simplesmente, a quantidade de voluntários, leigos e leigas, religiosos e religiosas, que estão atendendo aqueles que necessitam.
E por que este discurso é visto dentro da Igreja como algo “progre” que ronda o marxismo, que esquece a verticalidade pela “demasiada” horizontalidade?
Acredito que há dois critérios para avaliar as coisas: um é o que é “franciscanamente evangélico”, e outro que está muito contaminado ideologicamente. E o tema dos pobres, que é tão franciscanamente evangélico, é um desses temas que foi enormemente contaminado ideologicamente, não somente por parte daqueles que o julgam de fora, mas também, às vezes, por parte daqueles que enaltecem a imagem dos pobres. Porque aproximar-se evangelicamente do pobre não é a mesma coisa que utilizá-lo. Acredito que esta contaminação ideológica é a que favorece o fato de ter sido criado tantas suspeitas em relação ao tema dos pobres, o que é muito triste, pois se existe algo patente no Evangelho, é que os pobres são os privilegiados, os primeiros que tem direito a aderir ao Evangelho e se beneficiar dele. A contaminação ideológica levou a se armar toda uma série de argumentos fictícios, como se a opção pelos pobres levasse à exclusão dos ricos, como pensam as pessoas mais tradicionais. Os pobres são os preferidos, mas não os únicos. O Evangelho abarca a toda a humanidade. Porém, a verdade é que, se você se coloca onde os pobres estão, pode abarcar toda a humanidade; enquanto que, se você se coloca acima, você pode abarcar apenas a cúpula.
Essa contaminação ideológica atingiu também a imagem pública da Igreja?
Tristemente sim. O fator mais visível sempre é o da instituição, o das cúpulas. E o menos visível são as bases, os/as milhares de irmãos leigos, voluntários, mulheres... que estão espalhados pelo mundo fazendo um trabalho eclesial extraordinário em favor da justiça. Isso nunca aparece na tela.
Entretanto, isso não responsabiliza mais as cúpulas, que talvez não saibam lidar com essa dinâmica midiática inescapável, para que realmente transmita a imagem de toda a instituição?
Sim, é claro que a responsabilidade não é apenas dos meios de comunicação, mas também de quem se apresenta aos meios de comunicação e sabe o que precisa guardar e o que tem que ensinar. E isto dá uma imagem deformada da Igreja, que é mais evangélica do que, às vezes, aparece na imprensa.
Em seu livro, você faz um alarme sobre a linguagem e sobre as mulheres. Sobre o que quer alertar?
A linguagem me parece fundamental porque sou dominicano, e o nome de nossa ordem é “ordem de pregadores”, assim, estou muito identificado com a causa e parte de meu tempo dedico para isso. Eu, que me considero uma pessoa de boa vontade, sinto os limites de minha própria linguagem, e sou consciente também de que é um alarme para a Igreja não ter uma linguagem para se comunicar. Quando se bloqueia a comunicação, bloqueia-se a evangelização e a pregação.
Você se refere à ausência de uma linguagem que se conecte com as pessoas de hoje?
Sim, com as pessoas jovens e não tão jovens, com as pessoas ilustradas e críticas, com as pessoas modernas e pós-modernas. Para que todos possam saber o que está dizendo. Um dos problemas que se adverte, quando se põe a pregar o Evangelho nos domingos, é que parece que é preciso sair do vocabulário da rua, da calçada, e entrar no da Igreja.
Ou seja, teríamos que traduzir termos como “sacramento”, por exemplo?
Claro. Esse termo não existe na rua. Quando, depois do Concílio, tornou-se moda a vigília pascal e a páscoa como centro da liturgia, eu fiz o teste para ver como isso ressoava para as pessoas. E a páscoa, aqui na Espanha, reflete em fazer a páscoa. Ou seja, uma expressão absolutamente transmutada em seu sentido. E há outras que não significam nada. Confesso que um exercício enorme, que faço antes da pregação, é preparar as palavras, expressões que não sejam condicionais, que não já não sejam dadas como conhecidas... Porque acredito que temos um problema enorme de linguagem.
Contudo, há tempo os pastoralistas vem fazendo isto. Por que não tem frutificado?
Acredito que não se alcançou plenamente porque há certa preguiça nos evangelizadores. Pregar o Evangelho sempre de novo requer um esforço enorme, enquanto que repetir a mesma parábola todos os anos não requer nenhum. Então, embora tenham sido criadas condições para uma nova linguagem (ao menos 50%), o que resta é cada indivíduo fazer um exercício prático para superar convencionalismos, expressões feitas, etc. E, depois, acredito que a questão não é somente com a linguagem oral ou escrita, mas também visual. Assim como, por exemplo, durante os séculos as paredes das igrejas foram uma catequese extraordinária, neste momento as paredes ficaram desnudadas. Alimenta-se somente o ouvido (mal, como acabamos de dizer) e a visão fica órfã. E o corpo todo também fica um pouco órfão, quando não existe um ambiente celebrativo que complemente a liturgia. Acredito que a liturgia também ficou um pouco órfã de significação.
Bento XVI não incidiu muito nisso, em dignificar o mistério, o que significa o retábulo?
Sim, muito. E em recuperar um pouco a dimensão estética como uma parte da experiência religiosa.
Não lhe dói reconhecer estas coisas, não é verdade?
Não, para mim não. Você pode estar na Igreja diante dos que não pensam como você, e pensar que essa “outra linha” é equivocada, e que é pior para eles (ainda que o mundo inteiro vá por outro caminho, “eu estou na verdade”). Porém, outra forma de estar é a que pensa que se todo o mundo questiona e pergunta algo, alguma dúvida teremos de processar. Parece-me que as pessoas abertas são as que sempre estão dispostas a repensar as coisas. Assim como, num momento determinado, esse setor mais aberto da Igreja eliminou santas e santos dos altares, agora podemos pensar que, da mesma forma, não estávamos totalmente certos, pois as pessoas também se alimentam com a visão e com o tato.
Parece-lhe um pecado a situação da mulher na Igreja?
É que, ultimamente, tenho medo da palavra pecado, soa-me forte, mas, sim, acredito que é um dos temas pendentes na Igreja, que se torna mais escandaloso porque a sociedade civil possui uma velocidade muito superior naquilo que é a reivindicação do estatuto igualitário da mulher em relação ao homem. Quanto mais nos prosperam pela direita, mais escandaloso é. Parece-me que é preciso ir desfazendo certos argumentos para os quais se deu um caráter dogmático, e que possui um caráter meramente disciplinar. Da mesma forma que nos parecia que o Papa tinha que ser papa até a morte, por dogma, agora sabemos que não é por dogma, mas por tradição ou disciplina. O mesmo acontece com o fato das mulheres não poderem aderir ao ministério presbiteral.
Nesse momento, a Igreja ganhará muito?
Sim, muito. Estamos vendo isto em diferentes âmbitos, por exemplo, na teologia, onde já se iniciou a presença da mulher. Alguém lê a teologia feita por uma mulher e se depara com uma riqueza diferente, não porque o homem fosse mais inteligente ou menos, simplesmente porque ela é mulher e ele homem. Também começaram a estarem presentes no âmbito da espiritualidade, e disto resulta que a espiritualidade cristã cresce e se enriquece; ou na evangelização direta, onde de pronto há comunidades que dizem “que bonito o sermão da irmã!”. É muito interessante a forma como está sendo experimentado um enriquecimento da experiência cristã. O tema institucional é outro, o muro é mais forte.
Há esperança para o homem moderno em crise?
Em curto prazo, para meus sobrinhos que estão desempregados, eu não me atrevo a falar de esperança alegremente, porque é quase um insulto quando se veem presos e sem saídas nesta crise. No entanto, apesar de tudo, existe uma família que está lhe abrigando, e isso é um mundo de sentido impressionante. Ou seja, há esperança, apesar da crise, quando há uma concepção da vida que vai além do mercado, além da economia ou das necessidades materiais. Essas esferas que podem vir em sua ajuda, inclusive quando esta problemática imediata falha. Eu acredito que o Evangelho aponta para que, nessas situações, apareçam outras concepções da humanidade que tornem possível que, inclusive, os problemas mais imediatos não sejam tão absolutos.
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A colegialidade ainda é uma fruta verde. Entrevista com Felicísimo Martínez, teólogo e frei dominicano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU