Por: Jonas | 01 Fevereiro 2013
Guerra é guerra. No combate cotidiano contra o processo bolivariano, as direitas concederam um papel preponderante à artilharia midiática, assunto abordado nos ensaios e documentários como o revelador “A revolução não será televisionada”. Curiosamente, é menos abundante a reflexão sobre o componente militar, “que é fundamental em toda luta verdadeira pelo poder. Levemos em conta que apesar da Venezuela estar construindo uma revolução pacífica, é uma revolução que é armada. Hoje, podemos dizer com muita certeza que na Venezuela as armas estão em poder do povo, as armas estão conosco”. Assim avaliou, por meio de uma conversa telefônica, o pesquisador Adrián Padilla, da Universidade Simon Rodríguez, reduto da intelectualidade bolivariana.
Responsável por um centro de estudos, Padilla, que tem um doutorado na Universidade de São Paulo, explanou sobre a questão militar, relacionando-a com o futuro de uma revolução cujo líder, o presidente Hugo Chávez, permanece internado em Cuba, após ser operado de um câncer, no último mês de dezembro. O acadêmico venezuelano considera que os focos golpistas não foram totalmente extirpados e que poderiam ressurgir, mas mencionou mudanças introduzidas nas forças armadas, a partir do golpe de Estado midiático-castrense, em 2002, quando altos oficiais se somaram à sublevação, apesar jurarem lealdade a Chávez.
A entrevista é de Darío Pignotti, publicada no jornal Página/12, 31-01-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Recentemente, circulou um comunicado golpista, assinado por militares aposentados. Você pode garantir que a cúpula dos generais, almirantes e brigadeiros em atividade, é confiável?
Não podemos ser categóricos em afirmar que já não existem focos de conspiração militar, é possível que haja alguém dentro da estrutura das forças armadas que tenha sido seduzido materialmente para colaborar com a direita em algum plano desestabilizador, isso pode existir. Contudo, após 2002, nós enxergamos que se conquistou um terreno importante em favor do processo. Chávez colocou os militares como membros de algumas forças armadas do povo. Eles os exortam como homens que devem responder as demandas da causa bolivariana, anti-imperialista e socialista. Isso não ocorria até poucos anos atrás.
Chama a atenção o fato de que o ministro da Defesa, Diego Molero Bellavia, um almirante, começou a se mostrar mais publicamente, fazendo declarações, tornando-se uma referência do poder e alguém que está manifestando suas convicções sobre algumas forças armadas bolivarianas e anti-imperialistas.
Na Venezuela, como em muitos países latino-americanos, em geral, a Marinha foi uma força de concepções mais reacionárias, com menos base popular do que o Exército, por exemplo, mas o almirante Molero Bellavia é alguém que tem a confiança do presidente Chávez, eles possuem uma relação histórica, anterior aos anos 1990. Nós diríamos que ele é um homem leal ao projeto. Além disso, de um modo geral, o alto comando militar teve gestos de um forte compromisso com o projeto bolivariano, quando ficou conhecido qual era o estado de saúde do presidente, antes de ir a Cuba para sua operação, no dia 11 de dezembro.
Em razão da promoção de novos oficiais que estão comprometidos com o processo de transformação, no qual participam lado a lado com o povo, acreditamos que ocorreu processo de depuração das forças armadas. Nós temos uma Universidade das Forças Armadas, onde se administram várias carreiras e estudam 200 mil alunos não militares, com os quais os militares trabalham. Isto é muito rico, já que instalações militares funcionam como salas de aula, em todo o país, e permite que pessoas de áreas distantes estudem. Vemos que é importante o fato de ter surgido uma interação entre os militares e as pessoas do povo, fazendo com que vá acontecendo uma tomada de consciência de que a questão da defesa nacional não é somente coisa das forças armadas.
Em que ponto está o programa de modernização do armamento e qual é o nível de desenvolvimento das milícias?
No ato do dia 10 de janeiro (foto), em Caracas, diante de vários presidentes e representantes de governos latino-americanos, houve uma exibição dos aviões Sukhoi, russos, que são um armamento muito importante da força aérea venezuelana. Eles voaram sobre a multidão que estava nas ruas de Caracas. Foi algo muito significativo porque está dizendo que este processo de mudança, conduzido por meios legais, possui armas poderosas para se defender. Por meio da exibição de aviões Sukhoi foi dito à direita, ao mundo, aos poderes desestabilizadores, que esta é uma revolução pacífica, democrática, mas que está bem armada. Estão presentes as armas e o conhecimento de como utilizá-las. Há pessoas treinadas em número suficiente para o uso deste equipamento.
Neste momento, contamos com um fator completamente novo, que não existia no golpe de 2002: são as milícias que compõem as forças armadas, sem que sejam totalmente dependentes delas. São centenas de milhares, eu não poderia precisar quantos são exatamente. São pessoas que quiseram se alistar pela própria convicção. É preciso ver como o povo se voltou para estas formações, na qual recebem adestramento militar. Quando perguntam qual seria uma singularidade deste processo de transformação na Venezuela, nós mencionamos as milícias porque são algo muito próprio e muito surpreendente. As milícias são parte do exército, seu alto comando pertence ao exército, mas os destacamentos de combatentes são integrados por trabalhadores de fábricas, por professores, por trabalhadores do campo, por camponeses que ocuparam terras no interior, estudantes e empregados públicos.
Vocês trabalham cenários políticos possíveis diante de um eventual falecimento de Chávez?
Pela informação que temos recebido, nos últimos dias, a situação estaria mostrando uma melhora. Em todo caso, nós somos realistas, consideramos todos os cenários possíveis, como também o do desaparecimento físico do presidente. E quando se pensa no melhor cenário, no qual Chávez tenha solucionado sua enfermidade, nós acreditamos que mesmo assim o presidente não deveria voltar ao governo, ele deveria assumir um lugar de líder, como Fidel Castro em Cuba, saindo dos problemas cotidianos da administração. Nós dizemos que há chavismo depois de Chávez, e que há muita revolução depois de Chávez. Levamos em conta dados da realidade, como o ato do dia 10 de janeiro, o dia em que o presidente tinha que ter assumido. A participação foi massiva, por exemplo, em Caracas haviam várias avenidas cheias, como também a Avenida Urdaneta (principal) que conduz até o Palácio do Governo em Miraflores. E não eram apenas pessoas de Caracas, vieram grupos dos estados do interior e se tivéssemos contado com uma logística maior, mais pessoas teriam vindo.
No quantitativo foi uma multidão, e no qualitativo foram homens e mulheres assumindo-se como sujeito povo, sujeito histórico, tomando as ruas para dar respaldo ao presidente Chávez e à Constituição bolivariana de 1999, que é o marco jurídico deste processo de transformação. Com esta Constituição foi possível mudar as regras do jogo, no interior do jogo de uma democracia participativa fora dos moldes da democracia liberal.
As pessoas têm consciência de que Chávez está presente hoje, mas que poderá não estar, e isso se vê na legenda que diz que Chávez não é apenas ele, que Chávez é o povo. Assim, ocorre um jogo simbólico no qual Chávez é todos e todas do povo. A outra clara mensagem foi é a de que seja qual for o futuro do estado de saúde do presidente, o povo continuará unido. E na direção do governo continuará o vice-presidente Maduro, que está incumbido de decidir alguns temas da caminhada do governo. No dia 8 de dezembro, quando o presidente anuncia ao país sua situação de saúde e a necessidade de ser operado e enfrentar a possibilidade de não assumir, disse que deverá ser Nicolás Maduro o candidato, caso haja novas eleições por ele estar impossibilitado.
Qual valor diplomático é conferido pela visita de Lula a Havana, embora se trate de uma viagem pessoal?
Vemos a relação com Brasil dentro das mudanças geopolíticas ocorridas nos últimos tempos, em nosso continente, com o avanço de sua autonomia em relação aos Estados Unidos. Dizemos que é muito importante a forma como mudou a posição brasileira e latino-americana diante da hegemonia dos Estados Unidos. Para nós, foi muito importante para a Revolução Bolivariana a atitude dos governos do PT e, principalmente, os avanços que houve durante os dois governos do presidente Lula. Nós damos muito destaque ao que significa e ao que significou Lula para Venezuela. Inclusive, antes de assumir em 2003, foi importantíssima a intermediação de Lula, em dezembro de 2002, para que o ex-presidente Cardoso enviasse combustível, quando enfrentávamos uma greve petroleira. Valorizamos muito a viagem de Lula para Havana, pois sabemos que ele possui uma liderança no Brasil, no PT e que não é apenas um ex-presidente.
É claro que algumas coisas poderiam ser mudadas com o governo da presidenta Dilma. Nós sentimos que há companheiros venezuelanos que talvez estejam esperando mais de Dilma, talvez um posicionamento mais claro sobre o atual momento em que estamos vivendo. Por exemplo, tiveram companheiros que esperavam alguma presença forte do Brasil, no ato do dia 10 de janeiro, junto a outros presidentes latino-americanos que vieram até Caracas. É evidente que foi sentidaa ausência do Brasil nesse dia. Também temos uma ótima relação com os movimentos sociais brasileiros, com os companheiros Sem Terra, com quem realizamos a escola agroecológica que funciona no interior da Venezuela e outros projetos importantes de integração com eles.
A imprensa hegemônica lastimou a internação de Chávez em Cuba e montou o relato sobre a suposta tutela cubana na transição venezuelana. Qual leitura você faz dessa tese?
Ninguém tutela a Revolução Bolivariana e Cuba não tem a intenção de fazer algo assim. É verdade que o vínculo entre Cuba e Venezuela é muito próximo. É claro que a relação que temos com Cuba não é igual a que temos com o Brasil, pois acreditamos que embora tenha havido uma melhora a partir de Lula, a política externa do Brasil está submetida a uma particular relação de forças internas, onde influem fatores de poder insatisfeitos com nossa revolução. Em Cuba isto não acontece, seu governo está integralmente comprometido conosco, para o desgosto da direita que divulga uma campanha desqualificadora, falsa, por meio da imagem de que Cuba está manipulando a transição venezuelana. Isso é um absurdo. Transmitem a ideia de que Chávez é uma marionete de Fidel e outras espécies de coisas inexistentes.
Isto é uma caricatura que é desmentida no cotidiano, no qual Venezuela e Cuba estão unidas intensamente por um vínculo de ida e volta. O presidente Chávez tem uma inter-relação intensa com Fidel e o presidente Raúl, e isso não isenta que Chávez tome decisões que Cuba não teria tomado. E no cotidiano, com os milhares de médicos, mas não apenas eles, como também com os desportistas que vieram, os educadores, as pessoas que estão na realidade cotidiana do povo, onde os cubanos e os venezuelanos se relacionam diariamente, como na Missão Bairro Adentro, onde os médicos cubanos demonstram que não faz sentido a medicina ser comercial, que não tem que ser curativa, mas preventiva.Estamos falando de 30.000 médicos que atendem a população, vivendo dentro da comunidade. Isto estimulou que muitos de nossos jovens começassem a estudar a medicina com esse enfoque, que é o enfoque integralmente comunitário. E a direita diz que isso não é medicina, que os cubanos não são médicos, mas bruxos.
É correto, temos que assumir que nessa relação surgem diferenças. Isto é algo lógico porque cada país tem sua independência, sua autonomia, suas particularidades, pois a experiência que estamos construindo na Venezuela é bastante singular. Para concluir, ponderamos que a relação com Cuba adquire outra dimensão, muito profunda, que é a de valorizar a resistência cubana como marco para todo o continente. É uma relação que não se concretiza em busca de um benefício econômico ou militar, é parte do internacionalismo onde se enquadra nossa colaboração, em matéria energética, permitindo que Cuba tenha hidrocarbonetos a preço acessível.
Meios de comunicação privados globais acusam Caracas de se sujeitar ao jogo “expansionista” da China, na América Latina. Qual é a opinião que essa leitura merece?
Primeiro, nós sustentamos que a revolução é um projeto histórico e político que se encarna numa realidade multidimensional. Há um governo da revolução, há um Estado, existe a frente econômica e existe uma política que precisa atuar numa frente internacional, que possui aspectos múltiplos: o geopolítico, o comercial, o ideológico. Entre nossos aliados comerciais existem alguns que são de muita importância para que a revolução possa ser uma realidade que se concretiza diariamente. Entre esses sócios comerciais, a China é um país muito importante. Nós podemos comprar e vender ao mercado chinês, e isto está fortalecendo nossa independência em relação aos Estados Unidos e nossa luta contra-hegemônica. Com a Rússia temos outro tipo de relação, porque é de grande ajuda receber seu armamento, como os aviões Sukhoi, uma vez que de outra forma não poderíamos possuir aviões de combate, pois os Estados Unidos boicotaram a venda de seus caças e de suas peças para a nossa força aérea.
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As armas nas mãos do povo venezuelano. Entrevista com Adrián Padilla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU