08 Janeiro 2013
Por acaso, alguém incluiu em sua lista de presentes de Natal um pedido de uma TV Samsung 3D de tela plana de 65 polegadas? Que sorte a sua! A free shop do Vaticano tem um aparelho assim à venda por € 2.899 (R$ 7,8 mil), uma bela economia, em relação aos € 3.799 (R$ 10,2 mil) na Euronics, principal rede de lojas italianas de aparelhos eletrônicos. Ou, que tal uma nova mala para as férias?
A reportagem é de Nicole Winfield e publicada pelo jornal Valor, 07-01-2013.
A loja do Vaticano tem uma variedade de malas Samsonite Cordoba Duo, com rodinhas por € 123 (R$ 332), um desconto razoável em comparação com € 135 (R$ 364) no site da Samsonite. Mas se irromper um impulso consumista de última hora, o Vaticano também poderá atendê-lo: leve um baú revestido com couro da "The Bridge", de Florença, com suas cinco gavetas, interior axadrezado, seis compartimentos de madeira e acabamento em metal reluzente. Custando € 5,9 mil (R$ 15,9 mil), combina com um saco para tacos de golfe de couro, exatamente o que todo monsenhor precisa ao pé de sua árvore de Natal.
Há um falso segredo pouco conhecido nos jardins do Vaticano, poucos passos atrás da Basílica de São Pedro e alojado no interior da velha estação ferroviária do Vaticano: uma ampla "free shop" de três andares que rivaliza com qualquer loja de aeroporto isenta de impostos ou loja de departamentos de base militar com estoques de praticamente qualquer coisa: de sapatos da Church (€ 483 o par) a relógios Baume et Mercier (femininos, €1,5 mil, ou da coleção masculina Capeland € 5 mil).
Há um pequeno problema, porém. A loja não é aberta ao público em geral, apenas aos cidadãos do Vaticano, a empregados da instituição e a seus dependentes, a diplomatas acreditados junto à Santa Sé e (não oficialmente) seus felizardos amigos que, depois de se abastecerem em meio às inescapáveis compras durante as festas de fim de ano, passam pelos caixas acompanhados de seu contato no Vaticano portando o cartão de identificação que os autoriza a lá comprar.
Certamente, não são raros, em Roma, estabelecimentos de consumo isentos de impostos. Embaixadas, bases militares em suas proximidades e escritórios da FAO, organismo da ONU, têm, todos, "free shops" para seus funcionários, onde as importações de qualquer produto - de sorvetes americanos a vinhos franceses - podem ser adquiridos com isenção do pagamento dos 21% de imposto sobre vendas incluído em preços de lista na Itália. O Vaticano goza tudo isso e tem muito mais, uma vez que é seu próprio Estado soberano - o menor do mundo - em funcionamento no centro de Roma.
Ocupando uma área de 44 hectares, a cidade Estado do Vaticano é a base física da Santa Sé - o papa, a estrutura governante e a administração da Igreja Católica. Os Museus do Vaticano, onde fica a Capela Sistina, são o principal empreendimento com fins lucrativos na cidade Estado do Vaticano, com um faturamento de € 91,3 milhões (R$ 246,5 milhões) apenas no ano passado.
Mas outros pequenos empreendimentos empresariais também beneficiam os cofres do Vaticano, entre eles a loja de departamentos, o posto de gasolina isento de impostos, a loja de cédulas e moedas para colecionadores, a farmácia do Vaticano e seu supermercado. E nestes dias de austeridade, seus lucros e resultados financeiros são cada vez mais importantes para o Vaticano.
O Vaticano tem o direito de operar esses empreendimentos em seu território sem pagar impostos devido ao Tratado de Latrão, pacto firmado em 1929 que regularizou e regulamentou as relações do Vaticano com a Itália. Mas esses regulamentos também limitam a clientela do Vaticano, evitando, assim, que Roma inteira compareça ao supermercado para adquirir Gordon's Gin (€ 8,50 o litro, em comparação com € 15 que pode custar em lojas de bebidas alcoólicas nas imediações) ou charutos cubanos Montecristo Nº 3 (caixa com 25 unidades por € 84 (US$ 110), em comparação com US$ 164,95 na www.bestcigar prices.com.
Cerca de 4,7 mil pessoas são empregadas pela Santa Sé e pela cidade Estado do Vaticano; o corpo diplomático do Vaticano - a Santa Sé tem relações com cerca de 175 países - ampliam ainda mais a base de clientes.
Poucas pessoas fora de Roma sabem que a loja de departamentos existe, não há nenhum sinal dela em qualquer site do Vaticano, não há fotos de suas mercadorias, nenhuma publicidade fora dos muros do Vaticano. As pessoas que efetivamente sabem da existência da loja parecem querer fingir que ela não existe, pois os itens de alto luxo à venda não estão, necessariamente, em sintonia tanto com a sobriedade como com os salários do funcionalismo do Vaticano.
De fato, numa recente manhã de quinta-feira, nenhum religioso à vista havia, enquanto pessoas laicas comuns caminhavam pela espaçosa loja durante o "horário extraordinário de funcionamento", em dezembro, ampliado para acomodar a caça as pechinchas da clientela natalina que foi recompensada com uma degustação de vinhos no átrio central e pilhas de camisas que não amassam da Brooks Brothers e mochilas Burberry.
"Mais do que os preços, o que conta é o material", disse Luciano, um romano atarracado que se recusou a dar seu sobrenome, enquanto procurava um sobretudo para comprar, e sua mulher e um prestativo amigo do Vaticano o esperavam no caixa. "Deste aqui não gosto, fico parecendo um padre", resmungou, ao colocar o casacão azul-marinho de volta.
Ao cardeal Edmund Szoka, o americano que tentou pôr alguma ordem nas finanças do Vaticano como maior autoridade da cidade-Estado do Vaticano, é atribuído o mérito de ter feito da loja de departamentos o que ela é hoje, ao mudá-la para a subutilizada estação ferroviária do Vaticano, uma versão em miniatura da estação Union de Washington com uma ampla escadaria dupla e uma janela de fachada de vidro que emoldura a cúpula da Basílica de São Pedro, localizada a poucos metros dali.
Szoka disse tê-la transferido do porão do edifício sede do governo do Vaticano para a estação de trem devido ao maior espaço, já que a estação não era mais usada para passageiros e diante do espaço aberto perfeito, arejado, que uma loja desse tipo exige. "Nosso principal motivo para transformar a estação ferroviária numa loja de departamentos foi principalmente a praticidade para os nossos funcionários, e também para os que podem vir ao Vaticano e fazer compras ali", disse ele em e-mail enviado de sua casa em Michigan. "Naturalmente, prevíamos um lucro, mas essa não foi a principal motivação."
Szoka se aposentou em 2006, bem antes do advento da crise econômica mundial. A atual direção do "Governorato", como é chamado o governo da cidade-Estado, recentemente pediu a todos os diretores de departamentos que apresentassem suas medidas de contenção de custos ou de ampliação de lucros para ajudar o Vaticano a contornar o atual período difícil. "Todo bom administrador quer economizar o que puder ser economizado", disse o monsenhor Giuseppe Sciacca, o número dois do "governorato". "Parece óbvio, necessário."
O Departamento de Filatelia e Numismática, por exemplo, começou recentemente a vender um selo especial de edição limitada para ajudar a custear a restauração, de € 14 milhões (R$ 37,8 milhões), da colunata de Bernini da Praça de São Pedro, após o patrocínio das empresas ter estancado em meio à recessão. A Rádio Vaticano anunciou em julho que economizaria "centenas de milhares de euros" em custos com energia ao suspender as transmissões em ondas curtas e médias para a Europa e as Américas, empregando, em seu lugar, outras tecnologias.
Talvez ainda mais que a loja de departamentos, o supermercado do Vaticano é um benefício muito disputado pelos funcionários do Estado, e um impulso às cifras do lucro líquido do país. Na época de Natal, ele fica tão lotado quanto a loja de departamentos, com filas serpenteando pela loja e carros tomando preciosas vagas de estacionamento dentro da Cidade do Vaticano, já que os consumidores enchem seus carrinhos de panetone, presente culturalmente obrigatório nas festas de fim de ano italianas. O panetone pode custar € 25 (R$ 42,50) cada nas padarias romanas; no supermercado do Vaticano, uma marca sofisticada custa quase metade desse valor.
"A Nutella daqui é simplesmente melhor", disse Maria Grazia Mancini, funcionária do governo municipal de Roma que fazia suas maciças compras pré-natalinas com o pai, um funcionário do Vaticano. "Os produtos daqui são tipo exportação - as mesmas marcas, só que para exportação, e por isso são de melhor qualidade."
Embora Sciacca esteja satisfeito demais em ver o Vaticano economizando dinheiro onde pode ser economizado e ganhando dinheiro onde pode ser ganho, ele foi inflexível em sustentar que não há planos para expandir a base de clientes das pouco conhecidas lojas de desconto do Vaticano. Acordos com a Itália não permitem isso. "Não faremos isso. E não podemos fazer", disse ele, paralelamente à apresentação do Presépio 2012 do Vaticano, lançado na segunda-feira à noite e doado pela primeira vez.
O Vaticano aceitou satisfeito a doação da cena da natividade, originária da região italiana de Basilicata, depois que sua instalação de Natal de 2009, que custou € 550 mil (R$ 1,48 milhão), ficou em evidência, meses atrás, durante o escândalo em torno do vazamento de documentos do Vaticano.
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As boas compras escondidas atrás do altar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU