Por: André | 03 Novembro 2012
O antropólogo peruano Lurgio Gavilán, de 39 anos, apresentou no México, na segunda-feira passada, sua autobiografia, Memórias de um soldado desconhecido: autobiografia e antropologia da violência, uma história que começou a escrever em 1996 e que demorou para ser publicada em seu país por causa das sensibilidades em torno do conflito armado entre o Exército e o grupo terrorista Sendero Luminoso entre 1980 e 2000.
A reportagem é de Jacqueline Fowks e está publicada no jornal espanhol El País, 31-10-2012. A tradução é do Cepat.
O autor nasceu em uma comunidade camponesa de Ayacucho, departamento da serra ao sul do país onde surgiu o Sendero Luminoso em 1980. Esta região concentra as maiores sequelas da violência. Atualmente, Gavilán está fazendo o doutorado em Antropologia na Universidade Ibero-americana do México, com bolsa da Fundação Ford. Um dos antropólogos peruanos mais proeminentes – e que investigou a violência do Sendero Luminoso –, Carlos Iván Degregori, leu o rascunho inicial do seu livro e recomendou sua publicação. Quando este morreu em 2011, a edição peruana ficou suspensa. No México houve grande interesse por esta história, explica o autor, que viveu mais da metade de sua vida em três espaços chaves da história contemporânea de seu país: o Sendero Luminoso, o Exército e a Igreja católica.
O autor mudou o nome de sua comunidade e de algumas pessoas
Sendo criança, em 1982, entrou no Sendero Luminoso, seguindo os passos de seu irmão maior; dois anos depois, foi o único sobrevivente após um combate com o Exército: “Me perdoaram a vida porque eu era uma criança, esquálido, desnutrido”, relatou em uma entrevista por Skype com o El País. Estes fatos ocorreram durante o Governo de Fernando Belaúnde, o período mais sangrento do conflito, segundo o relatório da Comissão da Verdade e Reconciliação. Os militares o levaram a um quartel: preso primeiro, acolhido, depois; ao chegar à maioridade fez o serviço militar e dois anos depois virou sargento. Então combateu do outro lado da trincheira: “Antes procurava militares, agora procurava o Sendero Luminoso”.
À pergunta de se foi difícil adaptar-se à mudança, responde: “Pouco a pouco o Exército começou a me educar, por isso gostei. Tomei isso como parte da minha vida, nunca senti que fosse tão difícil. Não me obrigaram a entrar no Sendero Luminoso. Caí prisioneiro no Exército e fiquei. Sempre vivi com muito gosto, talvez os quéchuas, os camponeses, vivemos dessa maneira. Nesse momento era tão natural, e um pouco melhor, porque quando cheguei ao Exército, eram pobres, mas tinha um copo de Quaker (aveia), roupa, no fundo estava agradecido”, explica com voz sossegada.
Enquanto realizava patrulhas, algumas religiosas que os acompanhavam levando a comunhão às comunidades, o animaram a ser sacerdote “para fazer o bem”. Deixou o Exército e se formou como frei franciscano: “Não me fizeram perguntas sobre onde havia estado antes”, comentou. Estudou no instituto dos franciscanos em Lima e passou um ano no convento de sua ordem em Puerto Ocopa (Junín, selva central), uma zona na qual o Sendero Luminoso dizimou a etnia asháninka. “No convento tínhamos muitos momentos de silêncio. Entre 1996 e 1998 comecei a escrever a minha história de vida para mim, por sugestão de uma tutora”, diz.
A obra ainda não foi publicada no Peru por conta da sensibilidade diante do conflito
Quatro anos depois de iniciado este novo caminho, e tendo aceitado já os hábitos de frei, abandonou-o. “É um pouco difícil contar, tive problemas familiares, acabei criando o meu filho”. Em 2000, comecei a estudar Antropologia na Universidade San Cristóbal de Huamanga, em Ayacucho. Depois ganhou um concurso para ser professor, e ali ensinou durante dois anos. Gavilán conta que seus ex-alunos lhe perguntam quando vai dar aulas novamente, “mas não conhecem esta história”. “Um dos meus medos é que me estigmatizem como Sendero Luminoso. Meus familiares não conhecem muito disto, com meu filho falei pouco sobre isso, mas o livro já saiu”.
Uma das precauções que o autor tomou foi mudar o nome de sua comunidade e de algumas pessoas, dado que referir-se aos autores do conflito no Peru é delicado, não apenas pelas dificuldades de diálogo sobre o tema, mas pela imputação fácil de “terrorista” a quem não o é.
O Peru vive as disputas da memória histórica sobre a violência do Sendero Luminoso e do Estado entre 1980 e 2000, mas, além disso, um restante do grupo terrorista fundado por Abimael Guzmán, em associação com o narcotráfico, segue provocando mortes em uma zona da serra sul. Por outro lado, manifestações públicas do Sendero fazem propaganda e reclamam a anistia de Guzmán através de um grupo que quiseram transformar em partido político oficial, o Movimento pela Anistia e Direitos Fundamentais (Movadef).
“Este livro não defende o Sendero Luminoso, não defende o Exército, não defende o convento, é um pouco imparcial. Não sei como será interpretado no Peru, mas no México foi bem acolhido, lhes causa curiosidade que tenha sobrevivido a esse tipo de guerra, e perguntam como é possível que um quéchua venha estudar aqui”, acrescenta. Gavilán conta que um dos líderes do movimento político pró-senderista Movadef, Alfredo Crespo, deu uma conferência em uma instituição acadêmica do México onde ele tem aulas. “Falava como fanático, pedia a liberação de Guzmán. Muitas pessoas fizeram perguntas”. Ele tinha sua versão: “Contei que uma vez em Aranguay, o Sendero Luminoso atou uma corda ao pescoço de uma camponesa, arrastaram-na até a praça de armas, chegou morta. Dizem que lutam pelos mais pobres e os amarram até matar? Nem os animais se comportam dessa maneira com seus semelhantes”.
Gavilán fez sua dissertação de mestrado sobre as formas como a comunidade de Aranguay (Ayacucho) tentou recuperar sua saúde física e mental depois das sequelas do conflito.
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Terrorista, militar, padre e professor. Uma biografia resume 30 anos de Peru - Instituto Humanitas Unisinos - IHU