29 Outubro 2012
O "espírito do Concílio" não era uma vaga atmosfera utópica e romântica. Ele tocou o sentido da fé cristã.
Publicamos aqui a primeira parte do artigo do vaticanista italiano Giancarlo Zizola, falecido em 2011, que começou a sua carreira de jornalista escrevendo suas crônicas sobre o Concílio Vaticano II por indicação do próprio Papa João XXIII e de seu secretário, Loris Capovilla.
O artigo póstumo – originalmente uma conferência proferida em Assis, em 2004 – foi publicado na revista Rocca, n. 20, 15-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Falar do Concílio Vaticano II (1962-1965) significa empreender uma viagem, viagem na memória, mas também na profecia. E não só na história da Igreja contemporânea, mas também e ao mesmo tempo na história da civilização humana, na qual as mudanças de paradigma na ordem espiritual constantemente induziram reflexões na ordem cultural e política, embora só perceptíveis nos longos ciclos históricos .
Gostaria de iniciar esta viagem a partir de outra viagem. Eu a fiz perto do fim de outubro de 1961, quando o Papa João XXIII me fez chamar a Roma porque desejava que a rede dos oito jornais católicos italianos tivesse um jornalista que se ocupasse do Concílio Ecumênico por ele convocado em 1959. Nessas publicações, a informação religiosa habitualmente era feita cortando as notícias do L'Osservatore Romano.
A viagem durou quase toda a noite, no caminhãozinho de um amigo, porque a autoestrada Del Sole ainda não estava terminada. Por algumas horas, tivemos que seguir atrás de um caminhão muito grande e lento, que na parte de trás tinha a frase: "Freios poderosos". Forçado a uma marcha tão baixa, tive a liberdade de refletir sobre o fato de que a minha Igreja também era muito grande e lenta, e tinha freios poderosos. Eu não tinha dúvida de que eles eram necessários. Mas o meu jovem motorista de caminhão me fez notar que, quando se tenta viajar com os freios pressionados, eles se superaquecem e se corre o risco de uma catástrofe. Então eu pensei que a Igreja também, que continuava vivendo com os freios pressionados ao menos pela infeliz repressão da crise modernista no início do século XX, estava à beira do superaquecimento, e que o Papa João XXIII tivera uma inspiração ao oferecê-la a possibilidade de mudar de marcha.
A metáfora dos freios fortes evoca de modo bastante apropriado a situação da Igreja do primeiro tempo do Concílio, no início dos anos 1960: quem poderia negar que os freios são necessários? Mas, à época, a Igreja, que vivia freando, começou a entender, na sua máxima instância de autoridade e abertamente, que há emergências da Graça para as quais o uso desmedido do freio poderia se tornar temível, pois poderia impedir ou conter as exigências da missão no caminho da Igreja no século.
Naqueles primeiros tempos, sem dúvida havia uma parte de empirismo. João XXIII dizia que, no início, ele era atormentado pelos bispos, cada um dos quais lhe colocava sobre a mesa os próprios problemas e propunha reformas. Ele tinha uma fé dos olhos abertos, como deveria ser para toda a fé de um cristão, e concluiu: "Por que vocês não vêm a Roma todos juntos e discutem a respeito?".
Quando eu preparava a primeira biografia dos cinco anos do Papa João XXIII (A Utopia do Papa João, 1973), eu pus as mãos nos documentos que provavam que, para ele, a ideia do Concílio era uma fixação intelectual desde jovem padre. Quando ele era delegado de Pio XII em Istambul, a todo amigo que ia a Roma ele pedia que lhe trouxesse livros sobre os Concílios Ecumênicos, os primeiros oito dos quais haviam ocorrido em terra turca, em Niceia, Éfeso, Constantinopla, uma terra – ouso acreditar que não seja totalmente inútil lembrar nestes tempos em que se trata da integração da Turquia à União Europeia – onde as dioceses eram miríades e que foi, por 12 séculos, não só sede do império cristão do Oriente, mas também a terra de origem do Credo Niceno-Constantinopolitano que todos os cristãos, de Oriente e de Ocidente, recitam durante a celebração eucarística.
Mas podemos muito bem supor que o que, para a cultura do Papa Roncalli, era natural, a ponto de lhe repugnar até mesmo o vocábulo "cruzada", era, e continua sendo, menos natural para alguns polemistas inclinados a moldar os dados da cultura histórica e religiosa segundo as supostas necessidades ideológicas do paradigma do choque de civilizações.
Exigências de reforma em ação
O "espírito do Concílio" não era uma vaga atmosfera utópica e romântica. Quanto a mim, posso dizer que tocou o sentido da fé cristã, na qual eu havia sido educado. Muitos da minha geração já haviam lutado na Itália nos grupos da Juventude Católica contra o uso político da fé. O nosso líder, Mario Rossi, presidente da associação juvenil mais forte da Itália, o Juventude Italiana de Ação Católica, foi forçada pelos líderes da Igreja a renunciar em 1954. Eram os mesmos que haviam convencido Pio XII a mandar Dom Montini em exílio a Milão. Esse golpe havia sido sentido de forma desagradável por aqueles que lutavam para preservar a missão espiritual da Igreja das sujeições ao poder político e das sugestões de soluções autoritárias no país.
Multiplicavam-se na Itália também, assim como em outros países, os apelos a uma reforma. Os meus estudos nos arquivos do catolicismo na Itália nos anos 1950 – ocasionados pela pesquisa para o livro da editora Mondadori Il Microfono di Dio. Pio XII, Padre Lombardi e i Cattolici italiani, e depois para a biografia de Don Giovanni Rossi – me revelaram que a invocação a uma reforma da Igreja subia dos mosteiros de clausura, de setores do clero, dos próprios bispos, e não só do laicato comprometido. "O meio século que preparou o Concílio" é o título escolhido pelo historiador de Louvain Mons. Roger Aubert para evocar o antefato do Vaticano II: um título apropriado.
As brasas fumegavam debaixo das cinzas, e só basta um sopro para surgir o fogo. Existiam no corpo da Igreja Católica correntes de ideias, aspirações, problemas e pedidos que o predomínio dos órgãos centrais não deixava emergir e até mesmo ignorava ou tentava impedir. O que era necessário para a fé de um jovem era ver que o Papa João XXIII tomava a iniciativa de soprar sobre as cinzas para impulsionar a Igreja no caminho da renovação, em um mundo de imensas transformações, com o processo de descolonização que fazia emergir à história as jovens nações da Ásia e da África, os primeiros sinais da distensão internacional entre Leste e Oeste, depois da morte de Stalin e do XX Congresso do PCUS, o primeiro Sputnik que circulava pelo cosmos, a conscientização incipiente da unidade de destino do gênero humano.
Essa ideia de uma Igreja que, de pilar da ordem estabelecida e símbolo da imobilidade, decidia se cingir à própria mudança, encorajava os católicos não só a permanecer na fé, mas também a mudar na fé, a assumir uma ideia evolutiva, em vez de estática, da Tradição da Igreja.
"A mudança de hoje é a tradição de amanhã", lembrava Charles Péguy aos cristãos muito tímidos, que defendia que a dimensão substancial da mudança na história do catolicismo é assegurada pelo golpe de sonda que ele consegue realizar, pelas reviravoltas cruciais na civilização, nas camadas profundas da tradição, especialmente se conseguem alcançar e fazer jorrar novamente as fontes da Revelação.
Por isso, não se pode dar uma autêntica reforma da Igreja sem que ela produza um esforço de ressourcement, literal e fisicamente, um recurso. E não há Tradição que não implique em um movimento constante de retorno às fontes e de atualização. Por isso, o Papa João XXIII gostava de repetir que a Igreja é comparável não a um museu, mas sim à fonte viva do vilarejo, a uma primavera.
Certamente, ele era um homem tradicional, mas não um tradicionalista, e para ele, de fato, a verdade que a Igreja tem o dever de proteger não é uma espécie de pepita de ouro a ser fechada em um cofre, mas sim um talento que deve ser negociado na dinâmica viva da sociedade, da cultura, da história.
(Continua...)
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Vaticano II: uma etapa decisiva de um caminho que deve continuar. Artigo de Giancarlo Zizola – Parte 1 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU