13 Agosto 2012
Há 40 anos, o advogado chileno Roberto Garretón acumula cargos que o credenciam como um dos principais especialistas latino-americanos em direitos humanos. Foi preso, em 1987, ao publicar artigo condenatório aos desmandos no seu país. Tantas fez, que, em 1997, tornou-se representante da Organização das Nações Unidas para avaliar a situação humanitária na distante República Democrática do Congo (ex-Zaire). Desde então, participou de outras missões. Nesta entrevista por telefone, Garretón compara diferentes tratamentos que países dedicam aos espólios autoritários que lhes tocam. Critica o atraso histórico da comissão da verdade brasileira e a dispersão das suas metas, que, segundo ele, é um vício de origem que deve levá-la ao fracasso.
A entrevista é de Léo Gerchmann e publicada pelo jornal Zero Hora, 12-08-2012.
Eis a entrevista.
Como está o tratamento das questões da ditadura no Chile, seu país?
Há 700 militares em juízo, acusados de cometer crimes. Durante a ditadura, foi aprovada uma lei de anistia que impedia os juízos da época. Quando terminou a ditadura, os chilenos continuaram aplicando a mesma ideia de anistia e não processavam os criminosos. Isso durou até outubro de 1998. Quando prendem Pinochet em Londres, os juízes chilenos mudam sua postura e começam a abrir juízos contra militares que haviam cometido crimes contra a humanidade. Desses 700 militares que estão sendo processados, alguns foram já condenados e cumprem pena. Estão presos cerca de 80 militares, alguns deles já condenados e outros com prisão preventiva. Desses militares, alguns estão condenados por muitos crimes, a mais de 200 anos de prisão. Lamentavelmente, nos últimos tempos, os juízes da Corte Suprema estão aplicando penas muito baixas. Uma pessoa que assassinou alguém é condenada a cinco anos de prisão. Portanto, cumpre a pena em liberdade. Esse é o grande problema que há hoje em dia.
Houve alguma mudança, há alguma revisão?
Os juízos prosseguem. Todos os dias há novas sentenças, e as novas sentenças, ditadas entre 2005 e 2012, são muito baixas. As sentenças entre 1998 e 2005 são muito mais altas.
E por que ocorre isso?
Simplesmente, como a classe política não mostra interesse em condenar por esses crimes, os juízes começaram a se sentir solitários e a aplicar penas mais baixas.
O senhor tem acompanhado a situação no Brasil, a abertura da comissão da verdade?
Sim, claro. A comissão da verdade no Chile foi criada um mês depois do fim da ditadura. No Brasil, quase 30 anos depois.
Por que essa demora no Brasil?
É um problema interno brasileiro, não consigo entender o porquê.
A sociedade chilena é muito dividida. Ainda assim, a comissão da verdade foi criada antes da brasileira.
É (a sociedade) igual à brasileira.
Mas o que o senhor acredita que pode ocorrer com a comissão da verdade brasileira?
Temo que a comissão não chegue a nenhuma parte. São sete pessoas na comissão, e há a apreciação de mandatos de antes da ditadura, de 1946, de governos que não eram ditaduras. A comissão chilena apreciou os crimes de Pinochet (1973-1990). A do Brasil aprecia os governos de Getúlio Vargas, João Goulart, Juscelino Kubitschek, como se fossem todos a mesma coisa. Será impossível, ainda mais com poucos recursos. Dá a impressão de que, para as autoridades brasileiras, não há muita diferença entre ditadura e democracia, entre Médici e Kubitschek, entre João Goulart, Jânio Quadros, tudo igual. Temo que a comissão brasileira seja um fracasso.
Por falta de foco?
Exatamente. Essas comissões se criam para examinar ditaduras criminais. No Brasil, começou errado. A primeira comissão da verdade é a argentina, que fez uma lista de vítimas, mas não dos agressores. A segunda é a chilena, que também deu os nomes das vítimas, mas não os dos agressores. Isso é compreensível naquela época. Mas as comissões evoluíram. Em El Salvador, há a indicação de quem são as vítimas e de quem são os agressores, com nomes e sobrenomes. No Paraguai, são dados os nomes das vítimas e também dos agressores. No Peru, a comissão dá nomes de vítimas e agressores. Então, há um contrassenso que, no ano de 2012, crie-se uma comissão da verdade que não dará os nomes dos agressores.
Quais as comissões mais adiantadas da América Latina?
Neste momento, a única que está funcionando é a brasileira. A que se criou na Argentina em 1984 era débil, com o tempo foram melhorando. Paraguai, Peru, El Salvador...
Sem nos determos nas comissões da verdade, como os países tratam os espólios de suas ditaduras?
Na Argentina, hoje em dia, há menos presos que no Chile, mas com penas mais longas.
Há como fazer um ranking dos países que lidam melhor com esses espólios?
Na Argentina, há pessoas condenadas a 300 anos. Mas são poucos. No Chile, são 700 condenados, com penas mais baixas...
Qual a melhor das duas situações?
As duas coisas são boas por um lado e ruins por outro.
Muitas pessoas dizem que deve haver equivalência entre os agentes das ditaduras e os guerrilheiros que pegaram em armas. Outros dizem que pegar em armas contra uma ditadura era legítimo. Como o senhor avalia isso?
É um disparate. Uma coisa é o delito cometido por um cidadão, e outra são os crimes cometidas por políticas públicas, do Estado. Não se pode misturar. Há muitos discursos, há quem diga que deve ser virada a página e olhar para o futuro, há muitos discursos assim, mas, eticamente, são insustentáveis.