24 Julho 2012
A caridade continua sendo um segredo do qual só quem está investido conhece o valor; todo o resto é marketing religioso e alavanca de poder religioso.
A análise é Alberto Melloni, historiador da Igreja italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação João XXIII de Ciências Religiosas de Bolonha. O artigo foi publicado no jornal Corriere della Sera, 20-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O conhecimento de si é complexo, não raramente doloroso. É muito fácil justificar o injustificável, colocar-se no meio do caminho entre extremos que nem sempre existem, ou usar o bem como se fosse uma tira-manchas de hábitos profundamente injustos, com a mesma desenvoltura com que nos sentamos para dissecar ciscos alheios, para estigmatizar as incoerências ou para dar um peso específico exagerado aos erros sobre os quais somos tão indulgentes com nós mesmos.
Essa dinâmica vale não só para os indivíduos, embora dotados de bochechas capazes de corar na mentira, mas também para as instituições que notoriamente são carentes de bochechas. E também vale para as religiões, incluindo o cristianismo.
No discurso público das Igrejas também acontece de ouvirmos justificarem com camuflamentos fantasiosos, contextualizações culturais, explicações politiqueiras, guinchando como as unhas do gato sobre os espelhos, coisas que deveriam ser assumidas periodicamente em um límpido e cadenciado mea culpa, como aquele que não foi perdoado a Wojtyla pelos autodenominados ultracatólicos.
E mesmo sem chegar ao cume comparativista das hipocrisias ("Quem matou mais, a Inquisição ou a Revolução Francesa?"), não é raro ouvir a lista do bem feito pelos cristãos de diversas Igrejas como se houvesse aqui também uma balança semelhante à do portal de Notre-Dame, em Paris, onde se pode pôr sobre um prato as Cruzadas, o colonialismo, o antissemitismo e, no outro prato, a misericórdia desarmada, a mansidão martirial e a compaixão para com o Cristo pobre, companheiro de todas as tempo. Atitudes apologéticas que, além de suscitar sentimentos opostos àqueles que gostariam de criar em uma opinião pública desencantada, acabam tornando difícil ou ambíguo um discurso autêntico sobre a caridade.
Por isso, a Storia della carità nella vita del cristianesimo [História da caridade na vida do cristianismo], de Juan María Laboa, que foi publicada agora pela editora Jaca Book, é útil pela simplicidade e pela limpidez da sua intenção. De fato, não se trata de uma obra histórica que, pelas suas obrigações críticas, não conseguiria ir de Jesus a Teresa de Calcutá; e, quando promete fazer a história da caridade na história cristã, ele não parte dos muito vastos confins confessionais do catolicismo romano. Ao contrário, é uma série de leituras espirituais dedicadas a vários momentos históricos, a conjuntos de figuras, a grandes tendências que percorreram a história da Igreja de Roma.
Laboa nos lembra os perfis de santos – Martinho de Tours, Camilo de Lellis – que muitos acreditam que sejam hospitais. E nos relata brevemente a ardente paixão que eles abalaram, a partir daquela rede de assistência gratuita, "dos nossos e dos deles" que, segundo o imperador Juliano, levava as pessoas do século IV da religião (ou seja, do politeísmo que reconhece, com base na razão, as coisas que parecem dominar a vida e que requerem reverência como deuses) ao ateísmo (assim como a espiritualidade romana percebia o cristianismo, como aquele céu vazio acima do qual está o Messias crucificado).
E depois há os nomes pequenos, em torno dos quais não houve devoção ou nem mesmo culto, e nem beatificação: Oscar A. Romero, cuja causa oscila sob uma acusação de "comunismo", que é a vergonha de quem a pensa e de quem pensa que deve defender um bispo morto por uma fuzilada no momento da consagração; ou o trapista Christian de Chergé, morto mártir em Tibhirine, juntamente com seis irmãos convictos de que deviam compartilhar o destino dos muçulmanos massacrados pela guerra civil desencadeada pelos islamitas argelinos.
Há os nomes esquecidos pelo esgotamento ou pela localização do culto, mas que testemunham a vitalidade dos fiéis "cristãos comuns", que continua até hoje: na história de pessoas como o padre Patera, que salva clandestinos no mar com a mesma determinação com que a Igreja antiga proibia os bispos de rentabilizar os bens eclesiásticos, com a única exceção do resgate dos prisioneiros.
E, depois, há os nomes que se tornaram quase impronunciáveis, como o de Febe, "diaconisa" do Novo Testamento, cuja indubitável existência obriga a complexas contorções histórico-semânticas àqueles que negam que uma ordem sagrada (em uma forma canônica igual ou diferente da que está em vigor) nunca pode ser conferida a batizadas em Cristo do sexo feminino e de confissão católica; ou o de Grapte, titular de um magistério mencionado por Hermas.
Nessas suas meditações, de fundo histórico exato e documentado, Laboa lembra minuciosamente que tanto ardor não tira nada daquilo que há de errado e de grave na história cristã; e que esse fogo, no fundo, nem sempre foi o centro da vida eclesiástica, tanto é que, por tepidez da pobreza, ninguém foi excluído dos sacramentos, nem mesmo submetido àquela zombaria via web que hoje as máfias eclesiásticas usam, convictas de que não se pode entender quem as ativa.
Além disso, me parece, está certo assim: a caridade continua sendo um segredo do qual só quem está investido conhece o valor; todo o resto é marketing religioso e alavanca de poder religioso, que afunda no lodo que ele gera.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Os profetas desarmados de Jesus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU