06 Julho 2012
A Congregação para a Doutrina da Fé, ou se se quiser o ex-Santo Ofício, tem um novo "prefeito", Dom Gerhard Ludwig Müller (foto). Um cargo singular que foi agora confiado por Bento XVI ao seu compatriota, por todos definido como um "ratzingeriano de ferro".
O artigo é de Gianni Gennari, teólogo e jornalista, publicada no sítio Vatican Insider, 05-07-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É uma observação insólita, talvez: desde os tempos do Concílio Vaticano II e da reforma do Santo Ofício desejada por Paulo VI, embora os papas tenha sido nada menos do que cinco – João XXIII, Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II e Bento XVI –, os cardeais prefeitos foram até agora apenas três, Seper, Ratzinger e Levada.
Depois do Concílio, Seper assumiu o posto do "mítico" cardeal Alfredo Ottaviani, cujo lema era "semper idem", uma garantia de imobilidade sobre a rocha de uma fé muitas vezes identificada com as visões teológicas da Escola Romana apenas, que tivera o seu domínio desde os tempos de São Pio X e da encíclica Pascendi até a reforma de Paulo VI, que de algum modo também havia sido "vítima" da desconfiança daquela "Escola Romana", porque, a ela, ele parecia inclinado a um certo "modernismo", amizade com os suspeitos Maritain, De Lubac, Daniélou etc., indicados como perigosos defensores da "nouvelle théologie", suspeita de pouca fidelidade à "Tradição" em uma versão "doméstica" do ambiente romano e identificada tendencialmente em bloco com a fé católica.
Não é à toa que, justamente por algumas sugestões de expoentes da Escola Romana – indicados frequentemente como Ottaviani, Pizzardo, Canali e teólogos como o padre Tromp e outros –, Giovanni Battista Montini havia sido enviado a Milão e, por quase cinco anos, não havia sido criado cardeal.
Quem pensou nisso, como primeira nomeação, foi justamente João XXIII, cujas orientações pastorais e também histórico-teológicas, na plena fidelidade ao depósito autenticamente "católico", eram orientadas a unir e não mais a dividir e eliminar...
Por isso, a eleição de Paulo VI foi vista no início, por essa escola e em particular pela perspectiva do então Santo Ofício, como uma tragédia. Um episódio pode dar uma ideia da realidade da época.
Um grande padre romano, Mons. Pericle Felici, depois bispo e cardeal, era um dos mais "abertos" da própria Escola, mas, no momento da eleição de Giovanni Battista Montini, no dia 21 de junho de 1963, o ex-secretário-geral do Concílio, ainda em curso, nomeado por João XXIII, que também o estimava muito, comentou o evento de um modo desconsolado com estas palavras: "Para nós, acabou!". E aquele "nós" resumia décadas, e talvez séculos, de história da Cúria...
Pois bem: deve se acrescentar que, na primeira audiência concedida à Cúria Romana, o próprio Paulo VI chamou Felici e o abraçou, confirmando-o diante de todos no cargo ilustre, deixando-o em lágrimas de gratidão.
O prefeito da fé era, então, ainda Alfredo Ottaviani, que Paulo VI substituiu em 1968, nomeando em seu lugar o cardeal Franjo Seper. Depois, vieram as disposições da sua Ingravescentem Aetatem, que fixava as regras da rescisão dos cargos aos 75 anos e, aos 80, da participação no conclave. Depois de Seper, prefeito por alguns anos que não se tornaram célebres na história, exceto por um grande incidente com um documento sobre a sexualidade humana em meados dos anos 1970, em 1981, foi a vez do jovem Joseph Ratzinger, então arcebispo de Munique, e, portanto, prefeito do ex-Santo Ofício até 2005. Desde então, Levada, até hoje, com a nomeação de Gerhard Müller...
A vez de Müller
"Ratzingeriano de ferro", escrevem os jornais. E é assim. Teólogo e homem de cultura, mas também – para a surpresa de muitos – aluno do verdadeiro "fundador" da chamada teologia da libertação, Gustavo Gutiérrez, que justamente em 1969-1970 publicou o seu primeiro livro sobre o assunto, Teologia da Libertação: Perspectivas e, nos anos seguintes outros livros, incluindo A força histórica dos pobres. Com ele, Müller também publicou um livro em comum, ainda sobre o tema da escolha eclesial dos pobres...
Quando a possibilidade da sua sucessão a Levada foi prospectada, as dúvidas foram fortes: um teólogo com simpatias "liberacionistas"? Nunca! Não era nem pensável... O que diriam os "conservadores" anticonciliares? É verdade que o marxismo e o comunismo internacional não existiam mais... É verdade que Gutiérrez nunca havia sido condenado, porque sempre mantivera o equilíbrio entre ortopraxia, a prática da caridade e da justiça social, e a ortodoxia, a fidelidade à doutrina da fé católica, mas alguém assim no Santo Ofício parecia demais. O que diriam os sobreviventes da teologia curial romana? E os lefebvrianos em dialética entre reaproximação e ruptura? Impensável...
Não inteiramente, porém. E ainda no dia 23 dezembro de 2011 quem tinha olhos abertos e mente não paralisada pelo preconceito podia obter um sinal: o L'Osservatore Romano, na página 7, publicava a tradução de um longo artigo de Müller em vista do 25º aniversário da instrução “Libertatis conscientiae” sobre a "teologia da libertação", que se seguira à Libertatis Nuntius de dois anos antes, na qual a teologia da libertação era vista principalmente como portadora em si mesma, dentre outras coisas, do risco da redução da mensagem evangélica de salvação a mensagem político-social e, portanto, podia parecer claramente rejeitada. Porém, o título do ensaio de Müller surpreendeu a muitos e fez surgir algumas preocupações, porque era o seguinte: "Examinai todas as coisas, retende o que é bom".
Portanto, Müller, já então curador da “opera omnia” do seu mestre de teologia, Ratzinger, agora Bento XVI, não fazia um juízo absoluto totalmente negativo sobre a teologia chamada "da libertação", mas refletia sobre o documento, nos seus tempos e nos seus termos também temporais, e colocava em destaque que a própria instrução também não devia ser entendida como um "não" total a uma teologia verdadeiramente libertadora, mas constituía naquele momento um aviso contra o uso desenvolto de categorias marxistas ou demagogicamente ideológicas, facilmente equivocáveis e instrumentalizáveis.
Aqueles anos viam ainda forte o marxismo político. O comunismo real em escala mundial ainda não havia entrado em colapso, e havia o risco de que muitos católicos se mostrassem e fossem ingenuamente incapazes de análises críticas e de capacidades de conjugar o novo com o perene, a escolha da justiça e dos pobres, feita decisivamente pelo Vaticano II, com a fidelidade ao depósito da fé perene da Igreja, também esta reafirmada pelo Vaticano II e pelas cartas dos últimos papas.
Deve-se notar que o documento, na sua publicação, foi interpretado por muitos – também por este que escreve – como demasiado severo e, de algum modo, abusivo com relação aos principais teólogos da libertação, incluindo o próprio Gutiérrez, até porque foi lido e apresentado – o que agora Müller se recusa a fazer – como um "não" absoluto e sem salvação, sem nuances e sem concessão alguma...
Portanto, não era assim, e vale a pena – com as coisas tendo mudado profundamente, hoje que o marxismo político e ideológico em escala mundial ou continental não existe mais – entender também "o que é bom" na teologia da libertação. Aquele artigo de Müller fazia justiça – certamente de modo tardio e parcial – às instrumentalizações injustas que foram imediatas...
E tudo no L'Osservatore Romano! As bocas torcidas haviam sido muitas e duraram por meses, mesmo em ambientes curiais, mas agora essa nomeação diz que o caminho desse pontificado olha para a frente, superando certos contrastes do passado, e pede, ao mesmo tempo, fidelidade e liberdade, também para os teólogos do terceiro milênio.
Além disso, quem conhece a Bíblia e a história da teologia autenticamente cristã e católica sabe muito bem que Jesus é autêntico "libertador": "Cristo nos libertou para que sejamos livres", escreveu São Paulo aos Gálatas (5, 1). Uma teologia que não seja libertadora não é nem teologia, nem cristã, nem católica.
Obediência e liberdade
Se "obediência (à fé) e liberdade" parecem ser opostas às vezes – a antítese aparece, infelizmente, até mesmo em livros que são populares –, se trata de uma autêntica traição tanto de uma quanto da outra, e esse é um dos principais sinais de que hoje, com a lição das décadas passadas, estamos no caminho para a frente e não, como muitas vezes se critica, para trás, rumo um passado já morto, e nem mesmo a um futuro desequilibrado e traidor da fé e da autêntica tradição cristã...
Os opostos extremíssimos, como sempre, são um obstáculo também agora, ainda hoje: o Vaticano II não é traidor da fé – e isso vale para os impertérritos nostálgicos à la Lefebvre, que precisamente nestes dias estão mostrando a sua incapacidade de acolher a mão estendida de Bento XVI, que lhes pede que também reconheçam no Concílio o sinal da graça do Espírito que guia e rege a Igreja.
Isso também vale, no entanto, para aqueles que pensam que o Concílio, esse Vaticano II que ainda está diante de nós em tantas coisas, foi traído e sepultados pelos mesmos homens da Igreja que o animaram e o viveram, em primeiro lugar Joseph Ratzinger, hoje Bento XVI. E essa nomeação é um sinal do caminho que continua...
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Um ratzingeriano de ferro fiel ao Concílio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU