08 Junho 2012
Entre os documentos vazados do Vaticano, dois colocam em uma situação desconfortável a chamada "ONU do Trastevere" e o geral da Companhia de Jesus. Em favor de dois cardeais: o norte-americano George e o holandês Eijk.
A análise é de Sandro Magister, publicada no sítio Chiesa, 07-06-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Continua sem parar o vazamento de documentos confidenciais do Vaticano. E ninguém sabe prever quanto tempo ele irá durar.
Certamente, a grande quantidade de documentos vazados é notável e parece se referir quase exclusivamente às cartas guardadas no Palácio Apostólico, o coração da Cúria Romana, o edifício em frente à Praça de São Pedro, onde moram Bento XVI e o seu secretário particular, Georg Gänswein, no qual a Secretaria de Estado tem os seus escritórios e no qual o secretário de Estado, Tarcisio Bertone, tem a sua casa e o seu escritório particular.
Até hoje, de fato, quase nenhum dos documentos publicados em diversas ondas parece ter sido roubado diretamente de outros dicastérios ou escritórios da Santa Sé. Quase sempre, as cartas endereçadas a esses escritórios acabam como alimento para o público só depois de terem passado pelo Palácio Apostólico.
Até agora, o único imputado de ter roubado documentos é o ajudante de quarto do papa, Paolo Gabriele, que certamente podia ter acesso a uma parte da documentação publicada, mas não toda.
Resta verificar as motivações que levariam os ladrões de documentos a cometer as suas ações: dinheiro, vontade de fazer limpeza ou outra coisa. E não se sabe se, por trás dessa operação, há um projeto unitário ou uma direção oculta.
A esse propósito, os bastidores se desperdiçam, por serem tão sugestivos quanto pobres em termos de fatos confirmados. Há aqueles que confabulam sobre complôs "de direita" em ação, para fazer com que um papa considerado muito fraco renuncie. E há aqueles que esperam que uma das consequências desse caos seja a postergação da reintegração dos lefebvrianos à Igreja Católica, evento abominado pelas fileiras progressistas do mundo eclesial.
Enquanto continuam as investigações no Vaticano – por meio da comissão de investigação cardinalícia e a magistratura do Estado da Cidade do Vaticano –, o único dado certo são, portanto, as cartas que se tornaram públicas, cuja autenticidade não foi desmentida.
Algumas dessas cartas tiveram uma rumorosa repercussão jornalística por parte daqueles que as receberam e publicaram, com pouca experiência em questões vaticanas e que, portanto, nem sempre são capazes de avaliar plenamente o seu significado.
Ao invés, não tiveram ressonância na mídia, dentre as cartas roubadas, os documentos referentes a duas realidades de primeiro plano na Igreja Católica, uma antiga e uma nova: a Companhia de Jesus e a Comunidade de Santo Egídio.
Santo Egídio
Da Comunidade de Santo Egídio – a chamada "ONU do Trastevere" –, conhece-se a atividade diplomática "paralela", que os episcopados locais apreciam pouco e que a Santa Sé sempre considerou mais como um obstáculo do que como um recurso. Assim como acontece para o diálogo inter-religioso promovido por essa comunidade, em concorrência com o competente dicastério vaticano.
Uma prova evidente da irritação que provoca esse ativismo da comunidade fundada por Andrea Riccardi – que hoje também é ministro do governo italiano – é dada precisamente por um dos documentos vaticanos que hoje se tornaram públicos.
Trata-se de um telegrama cifrado enviado pela nunciatura apostólica de Washington à Secretaria de Estado vaticana, no dia 3 de novembro de 2011.
Nele, refere-se à opinião contrária do cardeal de Chicago, Francis E. George, à intenção da Comunidade de Santo Egídio de conferir uma honraria ao governador de Illinois, o católico Pat Quinn, por ter assinado a lei por meio da qual esse Estado aboliu a pena de morte.
O cardeal define como "inoportuna" tal honraria, porque – explica – o próprio Quinn promoveu a lei sobre o casamento homossexual, é a favor do aborto livre e excluiu, de fato, as instituições eclesiais das adoções de menores, não as isentando da obrigação de também ter que entregar as crianças a casais gays.
George conhece bem não só os políticos do seu Estado, mas também a Santo Egídio, enquanto cardeal titular da Igreja romana de São Bartolomeu na Ilha Tiberina, confiada à Comunidade.
E a nunciatura apostólica em Washington levou muito a sério as suas observações. Apropriou-se delas e as transmitiu para Roma, no telegrama assinado por Dom Jean-François Lantheaume, à época encarregado da nunciatura à espera da chegada do novo núncio Carlo Maria Viganó.
O duplo "não" parece ter sido eficaz. De fato, não se teve notícia de que a honraria ao governador Quinn tenha sido conferida.
Jesuítas
O outro documento interessante subtraído da Santa Sé, que não teve cobertura da mídia – com exceção dos Países Baixos – é a carta de acompanhamento com a qual o geral dos jesuítas, Adolfo Nicolás, fez chegar a Bento XVI uma missiva escrita por um casal holandês muito rico, os cônjuges Hubert e Aldegonde Brenninkmeijer.
O sucessor de Santo Inácio, depois de lembrar que os dois são antigos e generosos benfeitores da Igreja e da Companhia de Jesus, não entra no conteúdo da sua carta, mas destaca que "compartilha as preocupações" que eles quiseram manifestar diretamente ao papa.
A carta do Pe. Nicolás, em italiano, foi tornada publicada em uma fotocópia. Mas não a dos cônjuges, da qual foi divulgada apenas uma tradução, em um italiano um pouco incerto.
Mas o conteúdo da carta é claro. É uma dura acusação contra a Cúria vaticana e a hierarquia católica em geral.
Os ricos cônjuges Brenninkmeijer denunciam que o dinheiro desempenha um papel central em diversos escritórios da Cúria, em algumas dioceses europeias e no patriarcado de Jerusalém.
Eles acusam o Pontifício Conselho para a Família de se servir de colaboradores ingênuos e acríticos, em vez de empregar pessoas que possam e queiram agir no sentido da "atualização" do Vaticano II.
Eles insinuam que, no círculo mais restrito em torno do papa, tenha se acumulado, de modo visível e tangível, uma quantidade considerável de poder, acrescentando que possuem provas escritas em defesa do que denunciam.
Os Brenninkmeijer não acusam ninguém nominalmente, exceto em um caso. Depois de defender que, na Europa, aumentam os fiéis instruídos que se separam da Igreja hierárquica, sem, em sua opinião, abandonar a fé, e depois de lamentar a falta de pastores "não fundamentalistas" que saibam guiar o rebanho com critérios modernos, os dois cônjuges manifestam ao papa o desânimo não só deles, mas também de muitos leigos, padres, religiosos e bispos pela nomeação do novo arcebispo de Utrecht, Jacobus Eijk.
É isso que se pode ler nos dois documentos. Mas ninguém apontou o que aconteceu logo depois da chegada dessas cartas.
Willem Jacobus Eijk, 59 anos, culto mas "conservador", tanto no campo teológico-litúrgico, quanto no campo da moral, foi nomeado arcebispo de Utrecht por Bento XVI em dezembro de 2007. A carta do Pe. Nicolás foi recebida no Vaticano no dia 12 de dezembro de 2011 e, como se lê na fotocópia divulgada, foi vista e rubricada pelo papa no dia 14 de dezembro de 2011.
Pois bem, precisamente naqueles dias, estava em fase de conclusão a lista dos cardeais a serem criados no consistório depois anunciado no dia 6 de janeiro de 2012. E, entre os naturais candidatos à púrpura, estava justamente Dom Eijk, dado que Utrecht é uma sede de consolidada tradição cardinalícia, e o seu antecessor, Adrianus Simonis, já havia completado 80 anos.
No dia 6 de janeiro daquele ano, de fato, o nome Eijk foi incluído entre os eclesiásticos que, no consistório do dia 19 de fevereiro, receberam o barrete, tornando-se assim o terceiro cardeal mais jovem do Sacro Colégio.
Portanto, as "preocupações" com relação a ele manifestadas pelos ricos cônjuges Brenninkmeijer e abaixo-assinadas pelo geral dos jesuítas não parecem ter arranhado no Papa Joseph Ratzinger a convicção de ter escolhido a pessoa certa para a liderança da diocese mais importante da Igreja da Holanda.
No máximo, parecem tê-la reforçado.
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Bofetada dupla: na Santo Egídio e nos jesuítas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU