13 Abril 2012
"O valor deste livro (Credere e conoscere) não está, todavia, nestas já conhecidas afirmações, quanto principalmente no “diálogo como método na investigação da verdade”, um estilo que no Vaticano se tornou familiar no âmbito da cultura, graças ao cardeal Ravasi, mas que ainda está de todo ausente em âmbito bioético, como o demonstra o improviso cancelamento de uma congresso sobre células tronco previsto em Roma devido à presença de pesquisadores em celulas tronco embrionárias", escreve Vito Mancuso, teólogo e escritor italiano, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 07-04-2012, comentando o último livro de Carlo Maria Martini, cardeal, arcebispo emérito de Milão, e Ignazio Martino, médico, ex-diretor do Centro de Transplantes do “Veteran Affairs Medical Center”, departamento para transplantes de fígado do governo dos EUA, e atualmente senador italiano.
A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Em vista do elo pessoal e espiritual que desde 1980 tenho com o cardeal Carlo Maria Martini, não temo ser com ele injusto afirmando que o verdadeiro protagonista do livro Credere e conoscere, (Crer e conhecer), recém publicado por Einaudi com a assinatura dele e de Ignazio Marino, não vem a ser ele, o cardeal, e sim Marino, o cirurgião. Com uma luminosa carreira na Grã Bretanha e nos Estados Unidos, hoje senador do Pd [Partido democrata] e a seu tempo candidato às primárias para o cargo de secretário, há uma dezena de anos ele tomou o avião na Filadélfia para dirigir-se a uma casa dos jesuítas nas portas de Milão e encontrar o cardeal Martini, então não mais arcebispo de Milão.
Foi o primeiro de uma série de encontros entre Jerusalém e Gallarate, reevocados com graça no início do livro e que levaram, em 2006, à impactante publicação em L’Espresso de seu “Dialogo sulla vita”, Diálogo sobre a vida, que tanto irritou alguns destacados expoentes da hierarquia católica, até o ponto de um membro do Colégio cardinalício chegar a definir as idéias de Martini como “pensamentos que são apenas profiláticos” (ignorando, entre outros aspectos, a quantidade de bem que deriva à humanidade por meio dos profiláticos). Mas, porque o médico destacado, então diretor do Centro de Transplantes do “Veteran Affairs Medical Center”, o departamento para transplantes de fígado do governo dos Estados Unidos, viaja para falar com um cardeal e vai quase em seu encalço nas sucessivas diversas residências? Aqui entra em jogo acima de tudo o fenômeno Martini, a atração que ele exerce sobre a inteligência, abrindo-a ao desafio de uma dimensão ulterior.
É isto que levou a dialogar com ele personagens como Norberto Bobbio, Eugenio Scalfari, Arrigo Levi, Umberto Eco, Edoardo Boncinelli, Giulio Giorello, Massimo Cacciari. Mesmo em homens declaradamente não crentes, a inteligência adverte, a respeito de Martini, que enfrentar o território da espiritualidade não significa ficar em débito à própria tarefa, mas acolher um desafio ulterior. Obviamente tudo isso vale com maior razão para alguém como Ignazio Marino, homem simultaneamente de ciência e de fé, duas dimensões cuja harmonização o conduz quase naturalmente a ver em Martini um modelo de vida. Escreve Marino: “Também eu gostaria de envelhecer assim, com aquela fisionomia serena que olha a quem é mais jovem com curiosidade e disponibilidade”. Saber envelhecer com serenidade, sem perder a confiança na vida, o amor pelos outros e a curiosidade de conhecer: talvez o sentido último e supremo de todo caminho espiritual esteja todo aqui.
Lendo o seu diálogo encontram-se os temas mais debatidos na fronteira da bioética: o início da vida e o diagnóstico pré-implante, as células estaminais embrionárias e sua disponibilidade para a pesquisa, os embriões congelados, o testamento biológico, o conflito entre o princípio de autodeterminação e o princípio de indisponibilidade, a obstinação terapêutica, a eutanásia. Encontram-se os temas quentes da disciplina eclesial, como a moral sexual, o celibato dos sacerdotes, a homossexualidade, o reconhecimento das uniões de fato e dos casais gay. Em nível de conteúdo Martini repete quanto foi afirmado na intervenção havida em L’Espresso e em Conversações noturnas em Jerusalém, livro de 2008 que, a meu ver, permanece como o mais profético.
Martini confirma as críticas ao magistério vaticano para a condenação da fecundação artificial (“tem-se a impressão que as decisões da Congregação para a Doutrina da Fé não tenham caído num terreno preparado... talvez tivesse sido melhor não decidir imediatamente”); Martini recorda que não se pode dar correta decisão ética sem uma atenta escuta da ciência (“Galileu Galilei docet”, [Galileu Galilei ensina]); reconhece que o “uso do profilático [preservativo] pode constituir em certas ocasiões um mal menor“; sustenta que “não é um mal, em lugar de relações homossexuais ocasionais, que duas pessoas tenham certa estabilidade e, portanto, neste sentido o Estado também poderia favorecê-las” e, enquanto sublinha o primado do matrimônio tradicional acrescenta que “não é justo exprimir alguma discriminação para outros tipos de uniões”. Enfim, sobre a questão de quem deva decidir a suspensão dos cuidados terapêuticos, afirma que “não pode ser transcurada a vontade do enfermo, enquanto compete a ele, também do ponto de vista jurídico, salvo exceções bem definidas, avaliar se os cuidados são efetivamente proporcionados”.
O valor deste livro não está, todavia, nestas já conhecidas afirmações, quanto principalmente no “diálogo como método na investigação da verdade”, um estilo que no Vaticano se tornou familiar no âmbito da cultura, graças ao cardeal Ravasi, mas que ainda está de todo ausente em âmbito bioético, como o demonstra o improviso cancelamento de uma congresso sobre células tronco previsto em Roma devido à presença de pesquisadores em celulas tronco embrionárias. E, o verdadeiro artífice deste diálogo, aquele que o buscou e conduziu, é Ignazio Marino, um médico que cultiva a dimensão espiritual da vida porque crê que a sabedoria consiste na harmonia entre conhecimento científico e sabedoria ética, e sabe mais ainda quanto, para a vida de cada um, seja decisivo o amor e o horizonte de sentido último que o mesmo pode abrir.
Numa página muito tocante Marino reporta o colóquio com seu mentor Thomas Starzl no término de uma complexa intervenção em sala cirúrgica, quando este lhe confiou quanto para ele o amor seja “a força mais destrutiva que existe na natureza”. Resposta de Marino: “Eu penso diferentemente e creio que o amor seja uma força muito grande e invencível”. O sentido da fé cristã, da qual o cardeal Martini é um testemunho absoluto, está todo aqui.
[Traduziu do italiano Benno Dischinger]
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Martini-Marino – O diálogo ético - Instituto Humanitas Unisinos - IHU