02 Abril 2012
Mais uma vez, quem mais parece fora do mundo narra a sua realidade mais incômoda.
A análise é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal La Stampa, 31-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Mais um monge tibetano que morre depois de ter se imolado para denunciar o punho de ferro da China contra o povo e as tradições religiosas tibetanas. Mais um endurecimento dos funcionários e do Exército para controlar, prevenir e reprimir expressões de discordância que brotam dos mosteiros budistas.
Mais uma vez as chamas da imolação que não conseguem acender a solidariedade daqueles que poderiam e deveriam elevar a voz em defesa dos indefesos. Tornamo-nos cada vez mais surdos e mudos diante da opressão causada pelo mais forte, pelo muito forte contra o mais fraco, o muito fraco, o inerme. No entanto, o desarmante testemunho de quem usa a violência contra si mesmo para denunciar a violência cometida cotidianamente contra o próprio povo não deixa de gritar: quanto mais se busca sufocá-la, mais as brasas cobertas pelas cinzas libera o ardor de quem sabe lutar por uma causa justa.
E pela mesma causa lutam também os muitos jovens que, sem chegar à imolação final, não cessam de engrossar as fileiras dos mosteiros budistas no Tibete. O que os leva, por um período de tempo ou por toda a vida, a lugares vigiados como as prisões e em condições de vida duríssimas? O que anima a sua busca interior, o que a mantém em comunhão profunda com o anseio de um povo? O desejo de viver segundo o caminho budista, um caminho "monástico" na sua essência e estrutura, sonhando com a sobrevivência e o renascimento de uma sociedade onde todos deveriam poder encontrar no seu próprio caminho os monges que, em silêncio, na confiança e no abandono à generosidade do outro, pedem cotidianamente pelas ruas uma tigela de arroz, alimento para eles, sim, mas sobretudo oportunidade para que o doador busque a retidão da própria vida.
Mesmo quando essa relação com o povo são coagido e se torna impossível, na realidade, a relação se mantém viva: os tibetanos sabem que podem contar com os monges, com a sua capacidade de sofrer também pelos outros, de manter acesas uma língua e cultura, de gritar com voz mais forte do que o silêncio imposto sobre eles, de dar a vida pelos outros até as últimas consequências.
Por isso, os monges sempre incutem temor aos poderes de plantão. Por isso são controlados, hostilizados, oprimidos. Por isso se faz desaparecer os vestígios do seu sacrifício, nega-se o corpo de quem se imolou ao mosteiro de pertença ou aos parentes, busca-se de todos os modos romper o vínculo de solidariedade entre monges e população da região. O monaquismo, não só o budista, é desde sempre, por sua natureza, elemento que se coloca às margens e no coração da sociedade em que vive: separado nos lugares e nos modos de vida, mas unido a todos na tensão espiritual, na busca de sentido, na luta contra a dor, na liberdade de se pôr a serviço do outro.
Nós, mais surpreendidos do que distraídos por interesses econômicos e políticos, gostaríamos que caísse a escuridão sobre o martírio do povo tibetano, que ninguém perturbasse os manipuladores, que pouca luz iluminasse a negação dos direitos humanos. O silêncio orante dos mosteiros e os gritos em chamas das tochas humanas rasgam essa escuridão, perturbam os nossos negócios, iluminam a nossa mesquinhez. Mais uma vez, quem mais parece fora do mundo narra a sua realidade mais incômoda.
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O fogo dos monges na escuridão do mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU