Por: Cesar Sanson | 17 Janeiro 2012
As livrarias francesas são testemunhas do renovado vigor editorial que a difusão de idéias da extrema-esquerda está conhecendo no país. Os textos revolucionários, os panfletos, os manifestos subversivos deixaram as sombras da circulação confidencial para ocupar, de forma massiva e exitosa, as melhores estantes das livrarias de Paris. A violência da crise sensibilizou aqueles que, antes, viam a esquerda radical como um clube de exaltados. O comentário é de Eduardo Febbro em artigo publicado por Carta Maior, 16-01-2012. A tradução é de Katarina Peixoto.
Eis o artigo.
Em novembro de 1969, o militante comunista brasileiro Carlos Marighela foi assassinado pela polícia em uma emboscada. Marighela deixou uma obra de vasta influência: o Manual de Guerrilha Urbana. Esse texto teorizava a luta armada em um meio ambiente urbano contra as teorias de Che Guevara e Regis Debray, para quem o “foco” revolucionário devia ser desenvolvidos nos meios rurais. O manual de Marighela é um livro "cult" da esquerda radical francesa e pode ser adquirido livremente em algum dos numerosos circuitos de distribuição em que se apoia a extrema-esquerda. A presença do Manual de Guerrilha Urbana nas livrarias francesas testemunha o renovado vigor editorial que a difusão das ideias da extrema-esquerda está conhecendo no país.
Os opúsculos revolucionários, os panfletos, os manifestos subversivos deixaram as sombras da circulação confidencial para ocupar, de forma massiva e exitosa, as melhores estantes das livrarias de Paris. Ainda que não possa ser qualificado de ultra-esquerda, o livro do humanista francês Stéphane Hessel, publicado por uma pequena editora do interior, vendeu na França milhões de exemplares com seu discurso de confrontação ao sistema.
De fato, as causas do povo, as impugnações virulentas do sistema, os mísseis disparados contra o liberalismo, os discursos de ruptura completa e as mensagens anarquistas navegam a velas soltas no mercado editorial francês. A cada ano aparecem novas estruturas editoriais que amplificam a difusão de ideias que defendem uma ruptura radical com as adocicadas mensagens elaboradas pelos meios de difusão oficiais.
O político Jean-Luc Mélenchon, representante da ala mais radical da esquerda francesa, provocou náuseas nos corredores do oficialismo midiático quando lançou seu livro Qu'ils s'en aillent tous ! : Vite, la révolution citoyenne (Que se vão todos! Viva a revolução cidadã). As críticas recebidas por esse virulento ataque contra os banqueiros, os dirigentes políticos e todos os ladrões patenteados do mecanismo mundial foram pouco menos que insultos. O público, em troca, fez da obra o livro mais vendido com mais de 60 mil exemplares comprados e uma recente edição de bolso.
O mesmo ocorreu com o livro escrito pelo socialista Arnaud Montebourg, Votez pour la démondialisation ! - La République plus forte que la mondialisation (Vote pela desglobalização! A República mais forte que a globalização). A obra defende a desglobalização do mundo e vendeu como pão quente saindo do forno.
A tradição libertária francesa voltou à moda: textos curtos – o livro de Stéphane Hessel tem 32 páginas -, panfletos, reedição de textos revolucionários, análises econômicas breves e sem concessões frente ao apavorante assalto mundial em que se converteu o liberalismo: os temas abordados pela ultra-esquerda ganharam um espaço de legitimidade editorial impensável há uns dez anos. O formato da edição e o preço baixo dos livros contribuem em muito para a difusão das ideias revolucionárias.
Trata-se de amplificar a expansão das ideias contestatórias por meio de livros cujo conteúdo seja um pouco mais extenso que o artigo de um jornal ou de uma revista e também muito mais preciso. O êxito prova que a fórmula encontrou um público muito mais amplo que a clientela típica da extrema esquerda.
Não só surgiram muitas editoras pequenas especializadas nessa corrente, como também livrarias. Uma das mais conhecidas, situada no distrito 11 de Paris, chama-se Quilombo Público. Ali só se encontram “livros sobre as lutas sociais, o movimento revolucionário, o anarquismo, o anti-facismo, o feminismo. Livros publicados por editores comprometidos e privilegiados”. Os livros que povoam as estantes dispensam explicações: Mate seu patrão, Curso de Defesa em Economia, Abaixo a guerra, abaixo o governo, Abecedário do compromisso, O Estado desmantelado, As dívidas ilegítimas, Palavras anti-nucleares, Anarquia e Sociedade, Palavras de irredutíveis, Guerra contra o Estado, Buracos no capital.
Hoje é possível conseguir em Paris textos de figuras históricas das revoluções latino-americanas que, às vezes, não se consegue comprar em espanhol. Um bom exemplo disso é o livro do mexicano Ricardo Flores Magón, Discurso de um agitador. Magón (1873-1922) foi um dos principais teóricos da Revolução Mexicana. Seus textos estão atravessados por um anarquismo ao mesmo tempo radical e poético e foram publicados na França pela editorial Libertalia, a mesma que publicou o livro do militante comunista brasileiro Carlos Marighela.
Junto com as livrarias, as editoras de ultra-esquerda foram se multiplicando sob a influência da editora criada pelo sociólogo Pierre Bourdieu ao final dos anos 90, Raisons d’Agir. Hoje há cerca de trinta editoras anarco-esquerdistas e todas conhecem o mesmo êxito. Recordes de vendas, ocupação de colunas na imprensa “burguesa”. Em cifras concretas, as diferenças entre as editoras da esquerda radical e as demais são consideráveis. Mas isso não retira nenhum mérito do renascimento de um setor que antes vivia confinado em um gueto. Ao longo de 2010, foram vendidos 250 mil livros “radicais” contra 268 milhões das editoras tradicionais.
Ainda que as distâncias sejam grandes, os atores das edições radicais reconhecem que “neste setor ocorreu uma revolução surpreendente”, segundo explica Nicolas Norrito, co-fundador da editora Libertalia. Marc Leymarios, diretor de vendas da editora Les Belles Lettres, reconhece que “foi uma surpresa muito linda e não só do ponto de vista comercial. O que está se expressando é toda a vitalidade do setor e a receptividade das pessoas. Tudo isso é muito positivo”.
As edições “ultras” têm também seus best-sellers consagrados, os modernos e os históricos. O filósofo Alain Badiou vendeu 50 mil exemplares de um panfleto contra o presidente francês Nicolas Sarkozy. A cada ano se vendem pouco mais de 7 mil exemplares do livro Uma história popular dos Estados Unidos, do militante da desobediência civil norte-americano, Howard Zinn.
Essas editoras tornam também tangíveis seus compromissos ideológicos por meio dos livros que publicam. A editora anarquista Libertalia vendeu 3.500 exemplares do livro Incêndio no centro de detenção – local onde são colocados os imigrantes sem documentação. Todos os lucros foram destinados aos “sans papiers”, ou seja, os imigrantes clandestinos.
Marx, é claro, é uma das figuras emblemáticas desse movimento editorial de ultra-esquerda de cujo interior foram impulsionados autores que hoje são mundialmente famosos: é o caso de nomes como Alain Badiou, Slavoj Zizek e do próprio Noam Chomsky.
O pensamento crítico radical construiu seu próprio circuito. A violência da crise sensibilizou aqueles que, antes, viam a esquerda radical como um clube de exaltados. Não é possível afirmar ainda que o pensamento crítico tenha tido uma influência equivalente a dos livros que circulam agora com suas ideias. No entanto, o postulado “ultra” se instalou no teatro da discussão das ideias e já tem seu próprio mercado e seus mecanismos de distribuição.
O liberalismo, certamente, segue em pé. Como escreveu uma vez o crítico e teórico marxista norteamericano Fredric Jameson, a crítica não destrói o sistema. Jameson observa o fato paradoxal segundo o qual as temáticas de Hollywood imaginam um leque impressionante de formas do fim do mundo, mas nunca do fim do capitalismo. Apesar de não ter conseguido provocar o fim do capitalismo, o pensamento crítico da esquerda radical encontrou uma validade e um eco renovados no interior da própria crise do sistema.
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Ideias da esquerda radical ganham espaço nas editoras e livrarias da França - Instituto Humanitas Unisinos - IHU