Por: Cesar Sanson | 20 Dezembro 2011
Aos 94 anos, depois de lutar na Resistência, sobreviver aos campos nazistas e escrever a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Stéphane Hessel publicou um livrinho de 32 páginas, Indignem-se, que teve eco global. Em entrevista ao Página/12 ele fala sobre sua obra e critica o ultra liberalismo predador, a servidão da classe política ao sistema financeiro, a anexação da política pela tecnocracia financeira, as indústrias que destroem o planeta e a ocupação israelense da Palestina.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada pelo Página/12, traduzida por Libório Júnior e reproduzida pela Carta Maior, 19-12-2011.
A revolta não tem idade nem condição. Nos seus afáveis, lúcidos e combativos 94 anos, Stéphane Hessel encarna um momento único na história política humana: ter conseguido desencadear um movimento mundial de contestação democrática e cidadã com um livro de escassas 32 páginas: Indignem-se. O livro foi lançado na França em outubro de 2010 e em março de 2011 se converteu no alicerce do movimento espanhol dos indignados.
O quase um século de vida de Stéphane Hessel se conectou primeiro com a juventude espanhola que ocupou a Puerta del Sol e depois com os demais protagonistas da indignação que se tornou planetária: Paris, Londres, Roma, México, Bruxelas, Nova York, Washington, Tel-Aviv, Nova Déli, São Paulo. Em cada canto do mundo e sob diferentes denominações, a mensagem de Hessel encontrou um eco inimaginável.
Seu livro, entretanto, não contém nenhum discurso ideológico, menos ainda algum chamado à excitação revolucionária. Indignem-se é, ao mesmo tempo, um convite a tomar consciência sobre a forma calamitosa em que estamos sendo governados, uma restauração nobre e humanista dos valores fundamentais da democracia, um balde de água fria sobre a adormecida consciência dos europeus convertidos em consumidores obedientes e uma dura defesa do papel do Estado como regulador. Não deve existir na história editorial um livro tão curto com um alcance tão extenso.
Quem olhe a mobilização mundial dos indignados pode pensar que Hessel escreveu uma espécie de panfleto revolucionário, mas nada é mais estranho a essa idéia. Indignem-se e os indignados se inscrevem em uma corrente totalmente contrária a que se desatou nas revoltas de Maio de 68. Aquela geração estava contra o Estado. Ao contrário, o livro de Hessel e seus adeptos reivindicam o retorno do Estado, de sua capacidade de regular. Nada reflete melhor esse objetivo que um dos slogans mais famosos que surgiram na Puerta del Sol: “Nós não somos anti-sistema, o sistema é anti-nós”.
Em sua casa de Paris, Hessel fala com uma convicção na qual a juventude e a energia explodem em cada frase. Hessel tem uma história pessoal digna de uma novela e é um homem de dois séculos. Diplomata humanista, membro da Resistência contra a ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, sobrevivente de vários campos de concentração, ativo protagonista da redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, descendente da luta contra essas duas grandes calamidades do século XX que foram o fascismo e o comunismo soviético. O nascente século XXI fez dele um influente ensaísta.
Quando seu livro saiu na França, as línguas afiadas do sistema liberal desceram sobre ele um aluvião de burlas: “o vovozinho Hessel”, o “Papai Noel das boas consciências”, diziam no rádio e na televisão os marionetes para desqualificá-lo. Muitos intelectuais franceses disseram que essa obra era um catálogo de banalidades, criticaram seu aparente simplismo, sua superficialidade filosófica, o acusaram de idiota e de anti-semita. Até o primeiro-ministro francês, François Fillon, desqualificou a obra dizendo que “a indignação em si não é um modo de pensamento”. Mas o livro seguiu outro caminho. Mais de dois milhões de exemplares vendidos na França, meio milhão na Espanha, traduções em dezenas de países e difusão massiva na Internet.
O ultra liberalismo predador, a corrupção, a impunidade, a servidão da classe política ao sistema financeiro, a anexação da política pela tecnocracia financeira, as indústrias que destroem o planeta, a ocupação israelense da Palestina, em suma, os grandes devastadores do planeta e das sociedades humanas encontraram nas palavras de Hessel um inimigo inesperado, um “argumentário” de enunciados básicos, profundamente humanista e de uma eficácia imediata. Sem outra armadura além de um passado político de social-democrata reformista e um livro de 32 páginas, Hessel opôs ao pensamento liberal consumista e ao consenso um dos antídotos que eles mais temem, ou seja, a ação.
Não se trata de uma obra de reflexão política ou filosófica, mas de uma radiografia da desarticulação dos Estados, de um chamado à ação para que o Estado e a democracia voltem a ser o que foram. O livro de Hessel se articula em torno da ação, que é precisamente ao que conduz à indignação: resposta e ação contra uma situação, contra o outro. O que Hessel qualifica como mon petit livre é uma obra curiosa: não há nenhuma novidade nela, mas tudo o que diz é uma espécie de síntese do que a maior parte do planeta pensa e sente cada manhã quando se levanta: exasperação e indignação.
Você foi, de alguma maneira, o homem do ano. Seu livro foi sucesso mundial e acabou se convertendo no foco do movimento planetário dos indignados. Houve, de fato, duas revoluções quase simultâneas no mundo, uma nos países árabes e a que você desencadeou em escala planetária.
Nunca previ que o livro tivesse um êxito semelhante. Ao escrevê-lo, havia pensado em meus compatriotas para dizer a eles que o modo no qual estão sendo governados propõe interrogações e que era preciso indignar-se diante dos problemas mal solucionados. Mas não esperava que o livro fosse lançado em mais de quarenta países nos quatro pontos cardeais. Mas eu não me atribuo nenhuma responsabilidade no movimento mundial dos indignados. Foi uma coincidência que o meu livro tenha aparecido no mesmo momento em que a indignação se expandia pelo mundo. Eu só convidei as pessoas a refletirem sobre o que elas acham inaceitável. Acho que a circulação tão ampla do livro se deve ao fato de que vivemos um momento muito particular da história de nossas sociedades e, em particular, desta sociedade global na qual estamos imersos há dez anos. Hoje vivemos em sociedades interdependentes, interconectadas. Isto muda a perspectiva. Os problemas aos que estamos confrontados são mundiais.
As reações que seu livro desencadeou provam que existe sempre uma pureza moral intacta na humanidade?
O que permanece intacto são os valores da democracia. Depois da Segunda Guerra Mundial resolvemos problemas fundamentais dos valores humanos. Já sabemos quais são esses valores fundamentais que devemos tratar de preservar. Mas quando isto deixa de ter vigência, quando há rupturas na forma de resolver os problemas, como ocorreu após os atentados de 11 de setembro, da guerra no Afeganistão e no Iraque e a crise econômica e financeira dos últimos quatro anos, tomamos consciência de que as coisas não podem continuar assim. Devemos nos indignar e nos comprometer para que a sociedade mundial adote um novo curso.
Quem é responsável de todo este desastre? O liberalismo ultrajante, a tecnocracia, a cegueira das elites?
Os governos, em particular os governos democráticos, sofreram uma pressão por parte das forças do mercado à qual não souberam resistir. Essas forças econômicas e financeiras são muito egoístas, só buscam o beneficio em todas as formas possíveis sem levar em conta o impacto que essa busca desenfreada do lucro tem nas sociedades. Não lhes importa nem a dívida dos governos, nem os ganhos medíocres das pessoas. Eu atribuo a responsabilidade de tudo isto às forças financeiras. Seu egoísmo e sua especulação exacerbada são também responsáveis pela deterioração do nosso planeta. As forças que estão por trás do petróleo, da energia não-renovável nos conduzem a uma direção muito perigosa.
O socialismo democrático teve seu momento de glória depois da Segunda Guerra Mundial. Durante muitos anos tivemos o que se chama Estados de providência. Isto derivou em uma boa fórmula para regular as relações entre os cidadãos e o Estado. Mas depois nos distanciamos desse caminho sob a influência da ideologia neoliberal. Milton Friedman e a Escola de Chicago disseram: “deixem a economia com as mãos livres, não deixem que o Estado intervenha”. Foi um caminho equivocado e hoje nos damos conta de que nos encerramos em um caminho sem saída. O que aconteceu na Grécia, Itália, Portugal e Espanha nos prova que não é dando cada vez mais força ao mercado que se chega a uma solução. Não. Essa tarefa compete aos governos, são eles que devem impor regras aos bancos e às forças financeiras para limitar a sobre exploração das riquezas que eles detêm e a acumulação de benefícios imensos enquanto os Estados se endividam. Devemos reconhecer que os bancos estão contra a democracia. Isso não é aceitável.
É chocante comprovar a indiferença da classe política ante a revolta dos indignados. Os dirigentes de Paris, Londres, Estados Unidos, em suma, ali onde estourou este movimento, se omitiram diante das reivindicações dos indignados.
Sim, é verdade. Por enquanto se subestimou a força desta revolta e desta indignação. Os dirigentes disseram uns aos outros: isto nós já vimos antes, em Maio de 68, etc., etc. Acho que os governos se equivocaram. Mas o fato de que os cidadãos protestem pela forma em que estão sendo governados é algo muito novo e essa novidade não se deterá. Predigo que os governos se verão cada vez mais pressionados pelos protestos contra a maneira em que os Estados são governados. Os governos se empenham em manter o sistema intacto. Entretanto, o questionamento coletivo do funcionamento do sistema nunca foi tão forte como agora. Na Europa atravessamos um momento muito denso de questionamento, tal como aconteceu antes na América Latina. Eu estou muito orgulhoso pela forma como a Argentina soube superar a gravidade da crise. Isto prova que é possível atuar e que os cidadãos são capazes de mudar o curso das coisas.
De alguma maneira, você acendeu a chama de uma espécie de revolução democrática. Entretanto, não convocou uma revolução. Qual é então o caminho para romper o cerco no qual vivemos? Qual é a base do renascimento de um mundo mais justo?
Devemos transmitir duas coisas às novas gerações: a confiança na possibilidade de melhorar as coisas. As novas gerações não devem perder a esperança. Em segundo lugar, devemos fazê-los tomar consciência de tudo o que está se fazendo atualmente e que está no sentido correto. Penso no Brasil, por exemplo, onde houve muitos progressos, penso na presidenta Cristina Fernández de Kirchner, que também fez as coisas progredirem muito, penso também em tudo o que se realiza no campo da economia social e solidária em tantos e tantos países. Em tudo isto há novas perspectivas para encarar a educação, os problemas da desigualdade, os problemas ligados à água. Tem gente que trabalha muito e não devemos subestimar seus esforços, inclusive se o que se consegue é pouco por causa da pressão do mundo financeiro. São etapas necessárias.
Acho que, cada vez mais, os cidadãos e as cidadãs do mundo estão entendendo que o seu papel pode ser mais decisivo na hora de fazer entender aos governos, que são responsáveis pela vigência dos grandes valores, que esses mesmos governos estão deixando de lado. Há um risco implícito: que os governos autoritários acabem empregando a violência para calar as revoltas. Mas acho que isso já não é mais possível. A forma pela qual os tunisianos e os egípcios se livraram de seus governos autoritários mostra duas coisas: uma, que é possível; dois, que com esses governos não se progride. O progresso só é possível se for aprofundada a democracia. Nos últimos 20 anos a América Latina progrediu muitíssimo graças ao aprofundamento da democracia.
Em escala mundial, mesmo com as coisas que se conseguiram, mesmo com os avanços que se obtiveram com a economia social e solidária, tudo isto é extremamente lento. A indignação se justifica nisso: os esforços realizados são insuficientes, os governos foram débeis e até os partidos políticos da esquerda sucumbiram ante a ideologia neoliberal. Por isso devemos nos indignar. Se os meios de comunicação, se os cidadãos e as organizações de defesa dos direitos humanos forem suficientemente potentes para exercer uma pressão sobre os governos as coisas podem começar a mudar amanhã.
Pode-se mudar o mundo sem revoluções violentas?
Se olharmos para o passado, veremos que os caminhos não-violentos foram mais eficazes que os violentos. O espírito revolucionário que empolgou o começo do século XX, a revolução soviética, por exemplo, conduziram ao fracasso. Homens como o checo Vaclav Havel, Nelson Mandela ou Mijail Gorbachov demonstraram que, sem violência, podem-se obter modificações profundas. A revolução cidadã que assistimos hoje pode servir a essa causa. Reconheço que o poder mata, mas esse mesmo poder se vai quando a força não-violenta ganha. As revoluções árabes nos demonstraram a validade disto: não foi a violência quem fez cair os regimes de Túnis e do Egito. Não, nada disso. Foi a determinação não violenta das pessoas.
Em que momento você acha que o mundo se desviou de sua rota e perdeu sua base democrática?
O momento mais grave se situa nos atentados de 11 de setembro de 2001. A queda das torres de Manhattan desencadeou uma reação do presidente estadunidense George W. Bush extremamente prejudicial: a guerra no Afeganistão, por exemplo, foi um episodio no qual se cometeu horrores espantosos. As conseqüências para a economia mundial foram igualmente muito duras. Foram gastas somas consideráveis em armas e na guerra em vez de colocá-las à disposição do progresso econômico e social.
Você marca com muita profundidade um dos problemas que permanecem abertos como uma ferida na consciência do mundo: o conflito israelense-palestino.
Este conflito dura há 60 anos e ainda não se encontrou a maneira de reconciliar estes dois povos. Quando se vai à Palestina voltamos traumatizados pela forma como os israelenses maltratam seus vizinhos. A Palestina tem direito a um Estado. Mas também tem que reconhecer que, ano após ano, presenciamos como aumenta o grupo de países que estão contra o governo israelense, por sua incapacidade de encontrar uma solução. Pudemos constatar isso com a quantidade de países que apoiaram o presidente palestino Mahmud Abbas, quando pediu, diante das Nações Unidas, que a Palestina seja reconhecida como um Estado de pleno direito no seio da ONU.
Seu livro, suas entrevistas e mesmo este diálogo demonstram que, apesar do desastre, você não perdeu a esperança na aventura humana.
Não, pelo contrário. Acho que diante das gravíssimas crises que atravessamos, de repente o ser humano acorda. Isso aconteceu muitas vezes ao longo dos séculos e desejo que volte a ocorrer agora.
“Indignação” é hoje uma palavra-chave. Quando você escreveu o livro, foi essa palavra a que o guiou?
A palavra indignação surgiu como uma definição do que se pode esperar das pessoas quando abrem os olhos e vêem o inaceitável. Pode-se adormecer um ser humano, mas não matá-lo. Em nós há uma capacidade de generosidade, de ação positiva e construtiva que pode despertar quando assistimos a violação dos valores. A palavra “dignidade” figura dentro da palavra “indignidade”. A dignidade humana desperta quando é encurralada. O liberalismo bem que tentou anestesiar essas duas capacidades humanas - a dignidade e a indignação-, mas não conseguiu.
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Stéphane Hessel: ''Os bancos estão contra a democracia'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU