11 Agosto 2011
A ópera cinematográfica em dois atos imaginada por Lars von Trier, neste Melancolia, começa como uma peça daquele gênero. Num prólogo magnífico, de uma beleza rara, o cineasta, como um compositor, expõe os temas principais da peça que será vista a seguir. Para ornamentar as imagens, o cineasta escolheu o prelúdio de Tristão e Isolda, de Richard Wagner, e ao utilizar tal partitura consegue fazer, desde o primeiro plano, com que o espectador permaneça preso a essas imagens que, em seu conjunto, formam um trecho que se inclui entre as grandes aberturas de um filme, em todos os tempos. Mas um filme não deve ser analisado por sequências isoladas. Ele é um conjunto de cenas, que sendo peças de uma obra maior, pode estar valorizado pela harmonização ou desqualificado pela ausência de significado depois da obra completa. E no caso de Melancolia todos os elementos se harmonizam com perfeição. O diretor dinamarquês, que tem oscilado entre extremos em sua carreira, desta vez nos brinda com uma grande obra cinematográfica. O cineasta, que foi um dos animadores do movimento conhecido como Dogma, que valorizava o realismo mais extremo, depois enveredou por filmes nos quais o cenário era substituído por desenhos no chão, agora parece convencido que para o cinema o melhor caminho é aquele que explora as possibilidades do real.
O comentário é de Hélio Nascimento, crítico de cinema, e publicado pelo Jornal do Comércio, 12-08-2011.
O primeiro ato de Melancolia se desenrola durante uma cerimônia de casamento. Se o prólogo resumia os temas principais do filme, esta festa reúne todos aqueles temas, agora de forma ampliada. Na sequência inicial deste primeiro ato, o carro que permanece detido antecipa a crise, até porque num determinado momento a noiva quase atropela o noivo. Mas é durante a festa que o realizador se esmera, valorizando detalhes, revelando personalidades, expondo dramas familiares, frustrações, inquietudes, desalentos e revoltas. Do pai irresponsável à mãe frustrada, a câmera passa por diversos personagens que integram um painel revelador. Deste ambiente ou deste destino, tenta escapar Justine, a irmã à qual o primeiro ato é dedicado. Ela procura nos jardins do palácio, vistos como cenário de um sonho, um outro mundo. Mas é neste cenário de fuga que ela comete o ato de ruptura total. Depois, se vinga, na figura do chefe da agência na qual trabalha, diante do qual extravasa toda uma agressividade acumulada. É nesta figura, símbolo da engrenagem que a tudo controla, que ela concentra sua ira. O pai inexistente como figura de apoio e a mãe que não consegue esconder seu rancor não são substituídos pela irmã, que parece agir sempre como elemento disciplinador e incapaz de atentar para as causas do comportamento da personagem.
Este mal-estar diante do mundo e este horror diante da solidão extrema encontram no segundo ato, dedicado a outra irmã, Claire. São estes os elementos que passam a dominar a narrativa na segunda parte do filme. O planeta que se aproxima é um símbolo poderoso da punição derradeira. O cineasta não se deixa dominar pelas facilidades proporcionadas pela atual tecnologia cinematográfica. Este encontro do Dogma com a ficção-científica é elaborado de forma perfeita. A ênfase é dirigida, mais uma vez, para o estudo de personagens. Justine vai aos poucos se impondo à irmã cuja personalidade dominadora é abalada e desarticulada. O que vemos nas imagens derradeiras deste filme perturbador é a agressividade de Justine, causada pelos elementos expostos na primeira parte, assumindo proporções gigantescas e incapazes de ser controladas. É a resposta definitiva. A configuração simbólica da cólera de Justine diante do dominador. Nem a fantasia, erguida com gravetos, terá um papel protetor. O realismo se impõe. A vingança, avassaladora, escurece definitivamente a tela. O mundo se desfaz em fúria incontrolável. O planeta, de aparência nada agressiva, como diz Claire, se transforma num agente exterminador, como nunca antes o cinema havia registrado. Com apenas três personagens na última imagem, o cineasta consegue concentrar na tela uma civilização vencida pela fúria.
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