23 Fevereiro 2009
Defensor dos direitos humanos nas penitenciárias brasileiras e idealizador de projetos que tentam encontrar outras alternativas ao sistema carcerário vigente, padre Günther Zgubic acompanha a realidade dos presídios brasileiros há 20 anos, e diz que a convivência nesses ambientes pode ser comparada a atos de tortura. “A saúde em si se torna tão abalada que a pessoa somatiza. A partir do trauma psicológico mental, os presos se traumatizam também corporalmente”, relata.
Em conversa com a IHU On-Line, por telefone, o coordenador da Pastora Carcerária explicou por que o número de suicídios nas penitenciárias brasileiras aumentou 40% nos últimos anos. Segundo ele, diferente do que apontam as matérias dos jornais, a culpa não deve recair apenas sob as facções criminosas que comandam grupos dentro das prisões. O Estado, garante, “responde como arquitetura para esse círculo vicioso”. E dispara: “Os suicídios que ocorrem nos presídios atualmente são também consequência de situações desumanas que o Estado organiza nas prisões, como a superlotação, por exemplo.”
Na entrevista que segue, Günter Zgubic chama a atenção para o descaso da população em relação à situação dos presidiários e afirma que “o caos das penitenciárias brasileiras demonstra que a maioria da sociedade não está em condições de trabalhar e compreender a questão do outro, e o trata com brutalidade”. Comparando presídios a uma bomba-relógio que poderá explodir a qualquer momento, ele faz uma alerta: “Se não humanizarmos essas pessoas, estaremos construindo uma bomba-relógio contra nós mesmos, destruindo primeiro os presos e seus funcionários nos presídios – psicologicamente e até fisicamente com a questão dos suicídios –, e libertando três vezes mais presos violentos que saíram das penitenciárias”.
Idealizador da Campanha da Fraternidade de 2009, padre Günther Zgubic é austríaco e vive no Brasil desde os 19 anos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor conhece a realidade das penitenciárias brasileiras há anos. É possível traçar um perfil desse ambiente? Que mudanças e retrocessos fazem parte dessa história?
Günther Zgubic – O Brasil apresentou diversas realidades de penitenciárias ao longo dos anos. Tivemos, por exemplo, a Grande Penitenciária de São Paulo, que foi construída após a Primeira Guerra Mundial, e era considerada uma das mais avançadas da América Latina, ou seja, uma referência. Médicos que trabalharam lá antes da Ditadura Militar contam que ela tinha um sistema de atendimento mantido pelas universidades, ou seja, grandes médicos do Estado e pesquisadores eram responsáveis pela medicina, psicologia e psiquiatria. Nessa época, os presos trabalhavam e participavam de várias oficinas. No entanto, ao mesmo tempo existiam outros presídios de baixíssimo nível no país. Posso dizer que o “melhor” modelo de penitenciária não existe mais. Presídio é sempre, em todo o mundo, uma catástrofe. Ao relatar o cotidiano na prisão, os detentos falaram o seguinte para o relator especial de tortura das Nações Unidas (ONU): “Querem que a gente se humanize, mas nos tratam como monstros, e aqui nos tornamos monstros”. Isso demonstra que o presídio é um absurdo, porque representa uma exclusão social brutal.
Podemos dizer que, nos últimos 20 anos, triplicou o número de presos no Brasil, e, ao mesmo tempo, diminuiu em três vezes o número dos funcionários. Isto significa que no estado de São Paulo haja nove vezes mais presos por funcionário do que há 20 anos. A sociedade nunca foi esclarecida sobre essa problemática e tampouco debate a questão.
Bomba-relógio
Um secretário do Amazonas foi ao Pará e me disse: “Padre, a sociedade não aceitaria que se investisse mais em presídios do que na área da saúde”. Então, teremos de decidir: ou construímos presídios como campos de concentração, ou vamos humanizar os presos. Se não humanizarmos essas pessoas, quais serão as consequências? Estaremos construindo uma bomba-relógio contra nós mesmos, destruindo primeiro os presos e seus funcionários nos presídios -– psicologicamente e até fisicamente com a questão dos suicídios –, e libertando três vezes mais presos violentos que saíram das penitenciárias. A população não aguentaria a bomba que criou para os outros. Se muitos de nós fôssemos presos, também nos suicidaríamos. Em todo caso, é admirável que não sejam mortos mais presos e funcionários nos presídios.
O caos das penitenciárias brasileiras demonstra que a maioria da sociedade não está em condições de trabalhar e compreender a questão do outro e o trata com brutalidade. Com isso, estamos longe da nossa fé cristã, da ética de Jesus Cristo. Ele veio para abolir os presídios. Enquanto isso, onde nós estamos perante os familiares dos presos? Onde estamos como Igreja?
IHU On-Line – Como o senhor percebe o “boom” de suicídios e supostas mortes naturais nas prisões brasileiras, que cresceram 40% nos últimos três anos?
Günther Zgubic – Ninguém sabe exatamente o que acontece, porque cada morte precisaria ser pesquisada. O que sabemos são indicações do sistema, ou seja, alguém escreve na prisão a palavra suicídio, mas muitas dessas mortes são forçadas ou planejadas por outros presos.
Nos presídios de castigos, onde o isolamento e a solidão predominam, e quase tudo é proibido, as pessoas ficam desestruturadas após seis meses. Viver nesse ambiente é como uma tortura; a saúde fica tão abalada que a pessoa somatiza. A partir do trauma psicológico mental, os presos se traumatizam também corporalmente. Uma reação negativa respondida por outra reação negativa só multiplica os problemas, que se agravam. Os mais fracos nessa relação são os presos, pois o Estado, com todo o aparato militar, colabora com essa opressão. Não quero dizer que os presos são “santos”, mas eles são a expressão, o reflexo da nossa economia, da nossa civilização. Os pobres que não tinham outra experiência pensam apenas em atuar no narcotráfico, roubar como outros fazem. O que estamos fazendo para impedir o progresso dessa economia e da comercialização de tudo que é humano para desvalorizar o outro?
Suicídio apoiado pelo Estado
Os suicídios que ocorrem nos presídios atualmente não são apenas organizados pelas facções, mas também consequência de situações desumanas que o Estado organiza nas prisões, como a superlotação, por exemplo. Se o presídio é organizado por uma facção, e o preso não é bem visto pela coordenação dessa facção, todos os outros presidiários ficam contra ele. Nesse caso, alguns optam por se suicidarem do que serem mortos brutalmente pelos inimigos.
Muitos dos suicídios não são forjados apenas pelas gangues, mas também pelo Estado, que cria situações de castigo que fazem com que as pessoas enlouqueçam e se suicidem. Além disso, essas mortes também são forjadas por funcionários. Em Pernambuco, por exemplo, faltam funcionários na prisão. Os que restam entregam o comando e os serviços mais sujos aos prisioneiros. Existem, assim, os chamados chaveiros, que são ilegalmente um grupo de presos que mandam nos outros presidiários em nome dos funcionários, da diretoria da penitenciária e da própria secretaria do Estado.
Diretores de presídios que trabalham de maneira correta não podem tratar essa questão perante os outros diretores, porque eles podem ser mortos. Por isso, precisamos da sociedade civil dentro dos presídios para ajudar os funcionários de boa vontade e fiscalizar as brutalidades.
IHU On-Line – Como compreender o poder das facções criminosas mesmo dentro das prisões?
Günther Zgubic – Todo ser humano precisa estar inserido em uma comunidade, e isso acontece também com os presos. Com a introdução da lei do crime hediondo, começou a superlotação dos presídios, já que muitos presos passaram a ficar mais tempo em regime fechado. Em 1992, ocorreu o massacre do Carandiru. Tudo isso fez com que a situação de caos dos presídios aumentasse. A partir desse momento, sem apoio e percebendo a falta do cumprimento dos direitos básicos, os presos passaram a se organizar entre si, reivindicando os direitos humanos. Agora, considerando que essas pessoas vivem com brutalidade, é óbvio que elas vão se organizar como criminosos.
Se uma facção conseguiu estabelecer o poder dentro do presídio, os outros presos aderem ao grupo porque precisam de uma proteção. Se eles optam por não participar da facção, são marginalizados e facilmente perseguidos. Quando apenas 5% dos presos estão fortemente organizados, eles são capazes de se impor contra o restante. Os que sobram acabam se envolvendo com as facções, porque precisam de proteção, pois quem participa dessas gangues ganha benefícios. Quem possibilita que os familiares visitem os presos, no estado de São Paulo, quando um ônibus leva oito horas de viagem para chegar até a penitenciária? Quem paga o lanche, as passagens do ônibus? O Estado não paga nada; tudo é organizado pelos presidiários que estão envolvidos com o crime. O dinheiro para bancar esses custos vem do narcotráfico.
Inversão
Esse sistema dinâmico que existe entre os presos mostra também vantagens para os funcionários dos presídios. Numa situação em que existem 1500 presos numa penitenciária, e 30 funcionários de segurança, quem protege quem? Os detentos podem tomar os funcionários como reféns a qualquer momento, quando quiserem. Claro que numa situação dessas seria chamada a Tropa de Choque, mas, até ela chegar, os funcionários servem de escudo entre presos e policiais. Então, quem cuida dos funcionários são os presos, o que acarreta a dinâmica da corrupção. Diretores e funcionários de presídios se deixam envolver, já que o Estado e a sociedade não mostram interesse. Assim, os funcionários se tornam reféns dos presos e, igualmente nós nos tornamos reféns do nosso próprio ódio.
IHU On-Line – Como o senhor percebe a responsabilidade de segurança pública dentro dos presídios brasileiros? Como ocorre a vigilância nessas condições?
Günther Zgubic – Se um Estado diminui drasticamente o número de funcionários e aumenta o número de detentos, a segurança de vida de todos os presos diminuiu no mínimo de três a nove vezes. Onde estão os médicos para acompanhar os presos? Pelas orientações da ONU e de acordo com as normas internacionais de medicina, os médicos deveriam visitar diariamente os presidiários. Isso nunca ocorre no Brasil. Então, percebe-se que uma bola de neve começa a crescer em relação à brutalidade. Além disso, a mentalidade de descaso com os presidiários e o apoio a medidas de violência contra presos geram rebeliões como a que ocorreu em São Paulo, há dois anos. Por dois dias, seis milhões de pessoas não saíram de casa, o que fez toda a economia da cidade parar. Se essa situação permanecer assim, nós vamos colher o que estamos semeando.
IHU On-Line – Em que sentido a violência urbana é reflexo das impunidades e crueldades ocorridas nas penitenciárias brasileiras?
Günther Zgubic – A brutalidade dentro das penitenciárias é um reflexo da violência que acontece na sociedade. Além disso, é consequência da falta de criatividade e de amor para tratar pessoas que se tornaram, pelas circunstâncias de vida, mais violentas, agressivas. No Japão, por exemplo, quase não existem presos, pois há outras formas de trabalhar os conflitos sociais.
A primeira Campanha da Fraternidade sobre Segurança Pública (2009) e paralelamente a primeira Conferência Nacional de Segurança Pública – solicitadas pela Pastoral Carcerária – nos motivam a participar de conferências municipais e refletir sobre as políticas públicas necessárias para combater a violência através de ações comunitárias.
IHU On-Line – Como resolver a violência nos presídios? É possível pensar em substituir as penitenciárias por outra instituição?
Günther Zgubic – Deus sabe o que é possível, mas Jesus Cristo é uma referência para nós ao que se refere ao compromisso. A experiência de quem trabalha nas prisões é a mesma; todos dizem que, seguindo a estrutura atual, nenhuma pessoa sairá recuperada. Os detentos vão sair três vezes mais revoltados, porque a sociedade os ignora. Assim, estamos contribuindo para que haja um avanço da violência.
Em Buenos Aires, uma mulher, mãe de quatro crianças, foi presa e conseguiu que o juiz decidisse pela prisão domiciliar, porque ela tem como primeiro compromisso de vida cuidar de seus filhos, e, na sua ausência, a vida das crianças não é mais digna. Por que no Brasil nunca foi decidido assim? Com penas alternativas seria possível diminuir o número de presos, e, pouco a pouco, abolir os presídios. Na Holanda, onde a legislação é mais flexível, 80% de todas as pessoas que seriam processadas não são mais. Lá, a justiça dá uma chance para a vítima e o ofensor chegarem a um acordo. Se o criminoso comparece livremente, ele não será perseguido pela polícia. No estado de São Paulo, por exemplo, ilegalmente, o Tribunal forçou presos que teriam o direito de estar em regime semiaberto, a permanecerem em regime fechado. Então, se torna normal o nosso ódio em relação às prisões.
O dinheiro das quatro penitenciárias federais que foram criadas para os presos mais perigosos do Brasil seria suficiente para implantar centrais locais para o acompanhamento da execução de penas alternativas. Se o juiz souber que pode confiar em penas alternativas, teríamos mais aplicação.
Em Sergipe, há alguns anos, todas as cadeias foram desativadas, e de repente todas foram novamente preenchidas. Então, prender mais ou menos pessoas é apenas uma opção política. Assim, ao invés de investir em mais presídios, precisamos pensar o que poderíamos fazer com o mesmo dinheiro de forma preventiva e recuperativa.
Menos presídios aumentam nossa segurança de vida, desde que se faça algo direito. Por que não existe policia comunitária? As próprias paróquias precisariam criar núcleos de bairro de segurança pública. Cada comunidade religiosa deveria criar um núcleo de observação e, depois disso, se juntar com outras igrejas e integrantes do bairro, fazendo assim uma análise da realidade local, projetando um trabalho conjunto. Se fizermos isso, poderemos fazer uma análise do que significa presídio e propor a ampliação de penas alternativas. É preciso, assim, introduzir massivamente a justiça restaurativa no Brasil.
IHU On-Line – Como se dá a aplicação dos direitos humanos nas penitenciárias brasileiras?
Günther Zgubic – No ano de 1997, conseguimos uma série de documentos sobre atos de tortura que aconteciam nos presídios de São Paulo. Com essas informações, fui à Europa apresentar os relatórios ao governo da Áustria e fazer com que a documentação chegasse ao alto comissariado da ONU.
Conseguimos criar um impacto em relação ao tema e um representante da ONU veio ao Brasil. As autoridades brasileiras se comprometeram em não negar o massacre prisional que é de responsabilidade do Estado, e decidiram criar uma segurança pública para os presos, como direito humano. A denúncia de tortura que fizemos teve uma repercussão mundial, através da Anistia Internacional, o que fez com que diminuísse o sistema de tortura nas penitenciárias. Além disso, o governo britânico e a União Européia financiaram cursos de administração de presídios para funcionários de penitenciárias brasileiras. O treino tinha como objetivo ensinar a lidar com respeito e a executar os direitos humanos nas penitenciárias, considerando as indicações da ONU. Foram treinadas quatro equipes de presídios diferentes do estado de São Paulo. O resultado do treino foi bastante animador, porque um presídio passou a controlar o outro, envolvidos num novo modelo de administração. Na época, o estado de São Paulo criou uma secretaria própria para melhoramentos de administração de penitenciárias. Só que com a mega rebelião que ocorreu há alguns anos, oresolveram acabar com esta experiência inovadora.
Ampliação dos direitos humanos
De qualquer modo, penso que teriam possibilidades mais fortes de trabalhar a questão dos direitos humanos nos presídios. Mas essa questão deve incluir também os funcionários. Eles precisam ser preparados. Mais do que isso: precisam sentir apoio público e ter direitos trabalhistas. Na maioria dos estados brasileiros, os funcionários penitenciários não têm mais direito a plano de carreira; eles precisavam ter os mesmos direitos que os policiais.
Quando converso com policiais que são responsáveis pela administração da cadeia pública, eles contam que dentro das penitenciárias o estresse psicológico é muito maior. A superintendência da secretaria do estado de Minas Gerais me disse que um médico de Belo Horizonte, por exemplo, recebe R$ 2.500,00 e no sistema penitenciário se paga a ele somente R$ 1.200,00. Com isso, percebemos que tudo é feito para acabar com os direitos humanos mínimos garantidos pela Constituição brasileira. Isso demonstra que os direitos humanos são uma questão para todos nós, porque temos o direito de que os presos retornem à sociedade menos perigosos do que quando entraram na penitenciária.
O presídio é somente o ponto final de um sistema de segurança pública totalmente falido. Se queremos direitos humanos para presos e funcionários, precisamos conversar para saber como melhorar.
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Penitenciárias. Uma bomba-relógio contra nós mesmos. Entrevista especial com Günther Zgubic - Instituto Humanitas Unisinos - IHU