01 Agosto 2008
Para o economista Reinaldo Gonçalves, o povo brasileiro saiu ganhando com o fracasso do seu governo na Rodada Doha. Segundo Gonçalves, a forte influência do setor agrícola na política brasileira, principalmente na política externa, fez com que o país aceitasse as considerações da União Européia e dos Estados Unidos e esquecesse os reais interesses do Brasil. “O governo brasileiro deu a ‘cara a tapa’ em Genebra, porque estava, na verdade, querendo fazer qualquer acordo. Isso por duas razões: para capitalizar politicamente no Brasil e para atender os interesses do agronegócio brasileiro”, disse ele à reportagem da IHU On-Line.
Na entrevista que segue, concedida por telefone, o professor avalia a atuação do Brasil em Genebra e as conseqüências disso para o povo brasileiro, para o G20 e para a política externa brasileira. Em relação ao G20, ele acredita que o país, por ser vulnerável à influência do agronegócio, sempre foi visto com desconfiança e que, por isso, países como a China, Índia e Argentina já estavam preparados para assistir o Brasil aceitar aos pedidos dos europeus e estadunidenses.
Reinaldo Gonçalves é formado em Economia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Obteve o título de mestre em Economia, pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), e de doutor em Letters And Social Sciences, pela University of Reading, na Inglaterra. Em 1991, a UFRJ, onde é professor, lhe concedeu o título de Livre-docência. Atualmente, é também diretor da Associação Nacional dos Cursos de Graduação em Economia e membro de diversas entidades da área de economia do país. É autor de Economia internacional. Teoria e experiência brasileira (Rio de Janeiro: Elsevier, 2004) e Economia política internacional. Fundamentos teóricos e as relações internacionais do Brasil (Rio de Janeiro: Elsevier, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Para o senhor, o que determinou o fracasso da Rodada Doha?
Reinaldo Gonçalves – Será que de fato houve fracasso? O que houve foi uma interrupção da Rodada Doha nesse mês de julho de 2008. Para alguns países, ela foi um sucesso importante. Eu chamo a atenção para o fato de que o grande fracasso foi da política externa brasileira, sobretudo no que se refere ao seu foco para negociação, que é muito restrito e atende somente a interesses muito específicos.
IHU On-Line – O que explica a política externa brasileira atual?
Reinaldo Gonçalves – O foco das negociações multilaterais no governo Lula é a questão de abertura de mercado para os produtos agrícolas, principalmente àqueles vinculados ao agronegócio. A questão importante é que esse foco restrito não significa necessariamente um ganho para a sociedade brasileira. O que estou querendo dizer é que a política externa brasileira é equivocada e, portanto, o fracasso do governo Lula em Genebra deve ser visto como um sucesso para os interesses nacionais.
IHU On-Line – O que explica o Brasil ter se voltado contra os principais interesses do G20 e ter aceitado as propostas feitas pelos Estados Unidos e Europa durante a Rodada?
Reinaldo Gonçalves – Na verdade, o governo brasileiro deu a “cara a tapa” em Genebra, porque estava, na verdade, querendo fazer qualquer acordo. Isso por duas razões: para capitalizar politicamente no Brasil e para atender os interesses do agronegócio brasileiro. Então, isso é um fracasso localizado, do Itamaraty, da política exterior, para o agronegócio, para o governo Lula, mas não é verdade que seja um fracasso para o Brasil.
IHU On-Line – Em que medida essa política do Itamaraty, do governo Lula, é contrária aos interesses do povo brasileiro?
Reinaldo Gonçalves – O principal foco da estratégia brasileira é a eliminação dos subsídios concedidos nos países desenvolvidos para a produção local de alimentos. Não tenho a menor dúvida que, caso isto ocorresse, ou seja, caso houvesse algum tipo de acordo em Genebra, as grandes empresas do agronegócio no Brasil expandiriam as suas exportações e, portanto, seus lucros aumentariam. Agora, o Brasil perderia com isso. A eliminação dos subsídios agrícolas, que é que o Brasil estava querendo e por sorte fracassou, causaria um aumento dos produtos agrícolas, o que levaria a uma maior pressão inflacionária internacional. Isso é ruim porque ocasiona um aumento tanto do preço do petróleo quanto dos produtos alimentícios. Acontece que, quando existe uma inflação lá fora, por causa do petróleo e dos produtos alimentícios, ela repercute no país e aumenta a nossa inflação, porque os produtores brasileiros de commodities elevam seus preços.
IHU On-Line – E quem perde...
Reinaldo Gonçalves – É o trabalhador brasileiro quem perde com essa maior inflação devido à eliminação de subsídios agrícolas nos Estados Unidos e na Europa. O agronegócio brasileiro ganha, mas o trabalhador perde porque existe a inflação. A aceleração dos preços internacionais do preço dos alimentos aumenta a fome e a miséria no Brasil e no mundo. Então, a política externa do governo Lula, se fosse bem-sucedida, provocaria mais fome e mais miséria. Por isso, os países mais pobres foram contrários à posição brasileira. Isso é importante. O segundo aspecto do fracasso do governo Lula e da vitória do Brasil é que, para o país eliminar os subsídios agrícolas, ele teria de reduzir as tarifas de produtos industriais. O Brasil aceitou isso. E países como a Argentina não aceitaram.
IHU On-Line – Que problemas isso ocasionaria?
Reinaldo Gonçalves – Se, por um lado, os consumidores brasileiros ganhariam, por outro, haveria uma redução de renda daqueles que dependem da indústria brasileira e a perda de competitividade da indústria seria muito grande, o que também ocasionaria uma perda de produção e de emprego. O problema é que, nessa história toda, o Brasil perderia renda. Com essas concessões, o saldo líquido do Brasil seria um valor irrisório. Além disso, esse pequeno aumento de renda ficaria concentrado no agronegócio e a mão-de-obra qualificada teria uma perda de renda. Ainda bem, então, que o governo Lula foi derrotado lá em Doha.
IHU On-Line – Segundo alguns estudiosos, EUA, Índia e China derrubaram a Rodada Doha. Os três países estão fortemente envolvidos com as três principais crises mundiais: financeira, alimentícia e imobiliária. Podemos relacionar essas crises com o fato de a Rodada Doha não ter avançado?
Reinaldo Gonçalves – Não, não há relação. O fato concreto é que esses países têm políticas corretas internamente. É correto que a Argentina defenda a sua indústria, que os Estados Unidos defendam sua agricultura, e assim por diante. É correto eles defenderem o que é importante para cada um. No caso do Brasil, os interesses defendidos são do agronegócio, não do conjunto da população brasileira.
IHU On-Line – O posicionamento do Brasil durante a Rodada estremeceu as relações com a Argentina. Como o senhor acha que ficará o Mercosul com os resultados de Doha?
Reinaldo Gonçalves – O Brasil, quando deu a “cara a tapa” lá em Doha, mostrou uma coisa que governos como o da Argentina e China já sabiam, ou seja, a enorme vulnerabilidade externa brasileira e a extraordinária influência que o agronegócio tem na política do governo Lula. Mesmo no âmbito do G20, esses países sabiam que precisavam estar de olho no Brasil porque o país entregaria a sua indústria e faria concessões desnecessárias para ter melhor condição de acesso do etanol, do açúcar, da soja no mercado internacional. O Brasil é muito vulnerável ainda, pois mantém uma agenda muito retrógrada. Os outros países mencionados já estavam preparados para lidar com isso. Não é a primeira vez que isso acontece. Já nos anos 1980, o Brasil fez concessões desse tipo. Países como Argentina, China e Índia ainda não confiam no Brasil.
IHU On-Line – O Brasil está andando na contramão, então?
Reinaldo Gonçalves – Sim, o que é um problema dos grupos de interesse. Particularmente, no governo Lula, o setor primário exportador aumentou a contribuição de 2,9% em 2002 para 10,4% em 2006. Ou seja, ele, particularmente o agronegócio, aumentou sua influencia no governo. Por isso, nas negociações, o Brasil tem como foco defender os interesses dos commodities agrícolas. Como esse é um setor retrógrado, acabou definindo essa política retrógrada do governo.
IHU On-Line – O G20 foi uma espécie de resposta a postura dos europeus e norte-americanos em Cancun. E agora, depois de Doha, ele sai desfortalecido?
Reinaldo Gonçalves – Sem dúvida alguma. Há conflitos de interesses dentro do G20, mas, desde 2005, quem superestimou o grupo foi o Brasil para fins de propaganda. O governo brasileiro sempre disse que coordenava o G20, mas a política internacional sabe que o Brasil não coordenava verdadeiramente. Esse conflito explicitado no G20 não vai mudar muita coisa, porque os próprios participantes do G20 sempre viram a participação do Brasil no G20 com suspeitas, pois sabem da influência do agronegócio na política brasileira. Eles já foram preparados para Genebra.
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Fracasso para o governo, vitória para o povo brasileiro. Entrevista especial com Reinaldo Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU