11 Julho 2008
“No conjunto da sociedade, há uma cultura patrimonialista, que defende a propriedade acima da vida”, alerta Darci Frigo, advogado e coordenador executivo da ONG Terras de Direito, de Curitiba. Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, ele afirma que a falta de políticas estruturais “leva as forças conservadoras, que estão à disposição do estado democrático de direito, a sufocar os movimentos sociais e impedir que eles mudem de situação”. Segundo ele, alguns setores da sociedade estão tentando retirar desses grupos os direitos conquistados na Constituição de 88. “Núcleos do poder econômico, de grandes meios de comunicação social do país, além de forças políticas conservadoras, continuam tentando manter as condições históricas de desigualdade no país”, assegura. E ironiza: “Se a Lei da abolição da escravatura tivesse que ser submetida ao Congresso Nacional, provavelmente a bancada ruralista rejeitaria.”
Darci Frigo trabalhou por 17 anos na Comissão Pastoral da Terra. Atualmente, além de trabalhar na ONG Terra de Direitos, faz parte da coordenação do Programa Nacional de Proteção a Defensores de Direitos Humanos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor percebe uma tendência de criminalização dos movimentos sociais no Brasil, por parte de alguns setores da sociedade? Por que isso ocorre? A repressão é mais forte nos estados do Sul? O que essas atitudes significam e representam?
Darci Frigo – Neste momento, temos uma série de ações que nos levam a acreditar no crescimento do processo de criminalização no país. A criminalização sempre é utilizada para combater qualquer movimento de oposição, especialmente os movimentos sociais ou as organizações dos pobres que acabam colocando em questão uma determinada situação de injustiça. O que está acontecendo no Brasil mostra que os setores, especialmente os de direita, não se sentem amedrontados com a possibilidade de uma força política chegar ao poder. Esta força política, que era o Partido dos Trabalhadores (PT), já chegou ao governo. E agora eles se sentem muito à vontade para utilizar estes índices de criminalização e de desmoralização contra os movimentos sociais, porque não vêem mais riscos à ação que fazem, mas, sim, respaldo em uma série de meios, como polícia, judiciário e imprensa que dão sustentação para suas ações.
Repressão
Há fatos de repressão aos movimentos sociais em todo o Brasil. O que nos preocupa bastante em estados como o Rio Grande do Sul, no final dos anos 1990 e início deste novo milênio, são os mecanismos de controle da sociedade. Há possibilidade de os movimentos sociais terem acesso a uma série de espaços, supostamente democráticos, que poderiam impedir este tipo de ação. O que aconteceu no Rio Grande do Sul foi muito parecido com o que houve no Paraná, quando a Polícia Militar passou a atuar de forma muito forte contra os movimentos sociais, sem nenhum mecanismo de controle. Ou seja, com o apoio do poder central dos governos estaduais.
Nesse caso específico que envolveu o MST, no Rio Grande do Sul, o governo gaúcho encontrou um aliado estratégico: o Ministério Público. Nunca poderíamos imaginar que um órgão como esse iria se colocar a serviço de uma estratégia “de guerra” para combater os movimentos sociais. Setores do Ministério Público – que tinham saudade do tempo em que apenas se cumpria o papel de acusar os criminosos na sociedade – se aliaram a esses setores de combate aos movimentos sociais. E contam com o apoio de segmentos significativos da mídia brasileira para atacar aqueles que clamam por justiça social, pela reforma agrária, ou se colocam contra projetos de desenvolvimento como o deserto verde que está sendo implantado pelo governo do estado, associado às grandes papeleiras como Votorantin, Stora Enzo e Aracruz.
IHU On-Line – Muitos afirmam que o movimento social brasileiro se encontra num momento de descenso e de fragilidade. O senhor concorda?
Darci Frigo – Os movimentos sociais vivem situações de acordo com as possibilidades históricas. Nas décadas de 1970 e 80, eles viveram um grande ascenso que levou a conquistas democráticas importantes. Entretanto, aqueles que chegaram ao poder não deram respostas suficientes para alterar este modelo que temos no país, o qual concentra renda e riqueza. Vejo que os movimentos sociais passam por dificuldades, mas isso não quer dizer que não tenham condições de enfrentar essas situações. Assim, eles seguem lutando para conquistar espaços e direitos humanos.
IHU On-Line – O senhor acompanha os conflitos no campo há muitos anos. O movimento social conquistou a sua legitimidade política ou ainda é visto como “caso de polícia”?
Darci Frigo – Os movimentos sociais brasileiros conquistaram uma respeitabilidade muito grande no Brasil e no exterior. Segmentos importantes da sociedade brasileira não aceitam que a democracia seja partilhada com os pobres ou aqueles que são representados por esses movimentos sociais. Núcleos do poder econômico, de grandes meios de comunicação social do país, além de forças políticas conservadoras, continuam tentando manter as condições históricas de desigualdade do país. Se a Lei da abolição da escravatura tivesse de ser submetida ao Congresso Nacional, provavelmente a bancada ruralista rejeitaria. Há um retrocesso das ações que esse setor vem adotando no Congresso Nacional, no sentido de retirar direitos que foram conquistados na Constituição de 1988, buscando criminalizar ainda mais os movimentos sociais, através de CPIs ou de outros mecanismos. Mas a reação que houve à ação do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que extrapolou todos os limites, revela que a sociedade está viva, vigilante. Esperamos que este episódio seja o extremo de um processo que retorne à possibilidade de uma democracia onde os movimentos sociais sejam, efetivamente, respeitados como sujeitos fundamentais de mudanças sociais do nosso país.
IHU On-Line – Por que a violência contra os movimentos sociais no campo é tão grande? Além dessas forças conservadoras e da posição da mídia, a que outros fatores o senhor atribui a criminalização?
Darci Frigo – Um dos fatores é a diminuição das ações de políticas públicas que pudessem mudar, significativamente, a estrutura agrária no país. Os movimentos sociais acreditavam que o governo Lula daria passos mais significativos para fazer a reforma agrária e construir um processo onde houvesse mais justiça social no campo e desse um recado definitivo ao latifúndio, no sentido de que é preciso alterar os padrões de desigualdade e de pobreza no Brasil. Isso não aconteceu. O fato de não haver políticas estruturais, que apontem para uma solução estratégica dos problemas, leva as forças conservadoras, que estão à disposição do estado democrático de direito – que é o uso da polícia, do Ministério Público, do Judiciário e do Parlamento –, a sufocar esses movimentos sociais e impedir que eles mudem a situação. Um dos fatores que leva à criminalização diz respeito ao não incentivo dessas políticas sociais estratégicas, que podiam alterar o panorama do campo brasileiro.
No conjunto da sociedade, há uma cultura patrimonialista, que defende a propriedade acima da vida. Isso vai desde o juiz ao jagunço que está lá na ponta. Muita terra tem sido apropriada de forma indevida nesse país. Existe uma violência contra aqueles que também dizem ter direito ao acesso a terra, garantido a todos os brasileiros. É por isso que os movimentos sociais são legítimos e continuam lutando para que a Constituição seja cumprida, especialmente pelos poderes públicos. Esperamos, inclusive, que a sociedade repudie, da forma mais veemente, essas ações do Ministério Público do Rio Grande do Sul, assim como outras ações do judiciário e da mídia, que têm sido um braço importante para o processo de criminalização. Os meios de comunicação fazem um processo prévio de desmoralização e depois levam ao Ministério Público, ao judiciário, o refinamento desta criminalização. Há um processo público de desmoralização do movimento social, das suas lideranças, de determinadas teses, como dizer que “a reforma agrária já passou” ou que “lutas sociais não cabem mais”. Ou seja, se criam uma série de clichês e depois a criminalização é usada como elemento que coroa este processo.
IHU On-Line – Como o senhor disse, uma das grandes dificuldades que o movimento social enfrenta é na sua relação com o poder judiciário. Por que o universo da justiça brasileira é refratário aos movimentos sociais? O mesmo não ocorre com outros ocupantes de terras, por exemplo, fazendeiros que se apropriam para explorar o trabalho indígena e escravo? Como percebe essa relação?
Darci Frigo – Há um debate sendo feito pelas organizações de direitos humanos e pelos movimentos sociais, no sentido de entender o poder judiciário, o menos democrático no nosso país e acessível aos movimentos sociais. São os setores minoritários do judiciário que entendem que este poder deve dialogar com toda a sociedade; que julgue representando o pensamento da Constituição, dos direitos humanos. No entanto, quando alguns juízes vêm de setores sociais populares, eles são capturados pela estrutura do judiciário que os enquadra dentro de uma lógica de defesa do patrimônio. Assim, os direitos humanos não se colocam como um novo padrão ético para subsidiar o julgamento desses juízes. Nesse sentido, o poder judiciário continua sendo um espaço que considera que a criminalidade sempre vem dos pobres e não do conjunto da sociedade, com seus problemas e complexidades. Com isso, o judiciário continua com uma visão muito elitista e distorcida da sociedade e especialmente com uma visão que discrimina os movimentos sociais.
IHU On-Line – O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) divide a sociedade de alto a baixo. Como o senhor avalia a interlocução que o MST estabelece com a sociedade? Ela é correta ou falha?
Darci Frigo – O MST apresenta opiniões divergentes, porque enfrenta problemas cruciais na sociedade brasileira. Denunciar a concentração da propriedade da terra no Brasil significa se colocar contra um sustentáculo do poder. Além do mais, o movimento descobriu que fazer a luta pela terra não é suficiente e passou a denunciar também os grandes projetos ligados ao modelo de desenvolvimento que exclui os pobres. Isso divide a sociedade, pois as informações referente às novas empresas estrangeiras instaladas no país demonstram uma idéia falsa de que ela vão trazer mais emprego e progresso. Pelo contrário, elas recebem vários benefícios, incentivos fiscais e depois vão embora. Essas denúncias feitas pelo MST fundamentalmente trazem à tona tudo que está escondido por esse aparato do poder econômico e dos meios de comunicação, que não levam à população a informação real dos problemas. Percebo, então, que os movimentos sociais mantêm viva a esperança dos pobres. Se eles não existissem, as situações apresentadas nas periferias urbanas como no Rio de Janeiro, por exemplo, poderiam ser ainda mais graves e a mediação de alguns setores como o narcotráfico e as milícias armadas seria ainda maior.
IHU On-Line – Fazendo um balanço das últimas décadas, quais foram as principais conquistas que o movimento camponês conseguiu e quais os desafios para o futuro?
Darci Frigo – A primeira conquista foi sobreviver por longos períodos. Muitos movimentos do campo foram exterminados antes mesmo de completar cinco ou dez anos. O MST, o movimento sindical e o rural conseguiram, nesse quadro da história brasileira, sobreviver para além do que as elites políticas do país permitiam. Eles conquistaram espaço e reconhecimento na sociedade brasileira e a duras penas mantêm erguida a bandeira da reforma agrária. Não é a reforma agrária dos sonhos, mas manter acesa essa idéia é importante. Eles conquistaram educação diferenciada no campo, colocaram-se no centro dos debates da sociedade brasileira. Tudo isso representa conquistas fundamentais, principalmente se levarmos em consideração esse processo de criminalização que vem acontecendo.
Pensar em perspectivas para os movimentos sociais é difícil na medida em que outros setores da sociedade, da classe média, dos partidos políticos da esquerda, não dão importância significativa aos atores sociais e as bandeiras de lutas que eles carregam. É preciso, nesse momento, realizar um trabalho profundo para recolocar essas bandeiras sociais aos setores importantes da classe média. Conquistar um espaço político junto a essas forças que sempre foram aliadas dos movimentos sociais será fundamental. Manter a mobilização social, mostrando os problemas que acontecem no Brasil e buscar apoio de setores como o judiciário e o Ministério Público – que têm algumas áreas sensíveis –, pode, nesse momento, contribuir para construir uma democracia representativa de todos, no Brasil. Considerando a dificuldade de os movimentos sociais defenderem e exercerem seus direitos, é importante que eles busquem amparo em outras esferas internacionais como a ONU (Organização das Nações Unidas) e a OEA (Organização dos Estados Americanos). Assim, eles precisam se aproximar mais das instituições que atuam na área dos direitos humanos, pois elas podem dar uma contribuição, utilizando mecanismos universais.
Leia mais:
» Os Movimentos Sociais no Brasil: Novos atores sociais? Edição 70 da Revista IHU On-Line.
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Situação de guerra é declarada aos movimentos sociais. Entrevista especial com Darci Frigo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU