30 Junho 2008
O movimento homossexual brasileiro já milita pelos direitos dos gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis há mais de 30 anos. Inúmeros encontros, debates e manifestações foram feitos para reivindicar os direitos dos homossexuais, mas apenas agora, a partir do chamado do Estado, foi feita a 1ª Conferência do Movimento Homossexual do Brasil. Por que esse ineditismo nesse momento? Segundo João Silvério Trevisan, “todo organismo centralizador tende a concentrar poder, para melhor exercê-lo”, e aí inclui também a ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros), que organizou o evento. Nesta entrevista, concedida por e-mail, Trevisan dá a sua opinião sobre a conferência, fala da proposta de mudança da sigla e das políticas públicas para os homossexuais. “Sem fazer nenhuma propaganda direta, a ABGLT sagrou a modernidade do Presidente, colocando uma auréola de tolerância em torno da sua cabeça. Politicamente, foi um presentão que lhe deram, com rendimento de prestígio a médio e longo prazo, tanto no Brasil quanto no exterior”, afirma na entrevista concedida à IHU On-Line.
João Silvério Trevisan é escritor, jornalista e ativista GLBT brasileiro. Na década de 1970, fundou o grupo Somos, com o intuito de defender os direitos dos homossexuais. Estudou filosofia. É autor de diversos livros, tais como: Seis balas num buraco só: a crise do masculino (Rio de Janeiro: Record, 1999) e Pedaço de mim (Rio de Janeiro: Record, 2002).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a sua análise sobre a 1ª Conferência do Movimento LGBT? E qual a influência que tem para o movimento o fato de o Estado ter convocado a conferência?
João Silvério Trevisan – Como alguém de fora, minha primeira questão é saber o motivo de nomear o evento como 1ª Conferência. Desde 1980, já tivemos inúmeros Encontros Nacionais de Homossexuais, nos quais se debatiam questões vitais para o movimento GLBT. Por isso, tenho dificuldade de entender a razão desse autoproclamado ineditismo. Seria um esforço em acrescer prestígio, para reforçar seu poder? Todo organismo centralizador tende a concentrar poder, para melhor exercê-lo. A ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros) não é exceção, muito pelo contrário. Sempre se mostrou uma pequena confraria fechada em si mesma, preferindo resolver os problemas em diálogo direto com o poder central, ao outorgar-se o papel de porta-voz dos homossexuais brasileiros. Em outras palavras, importa-lhe estar o mais perto possível do poder. Isso corresponde a uma postura típica da esquerda brasileira mais tradicional, de realizar as mudanças (ou a "revolução") de cima para baixo.
A raiz está na crença leninista de que um partido (e seu comitê central) deverá conduzir a revolução em nome de uma classe eleita (o proletariado), e impô-la a uma "sociedade sem classes". Com isso, sindicatos e movimento sociais acabaram sendo não apenas dispensáveis, mas "contrários ao socialismo", caso se desviem dos objetivos impostos pelo Partido Comunista. A situação política de Cuba é bem ilustrativa desse clima, com suas associações e sindicatos que, no máximo, são correias-de-transmissão partidária. É inevitável que esse comitê central irá criar um novo núcleo de privilegiados, uma nova classe dirigente que está acima da verdade.
Autonomia
Em paralelo com as "revoluções" socialistas, algo semelhante vem acontecendo com o movimento homossexual brasileiro, desde seus primórdios, quase 30 anos atrás, quando um núcleo marxista coeso deu um golpe no Somos (o primeiro grupo de liberação homossexual brasileira), para agregá-lo ao então nascente Partido dos Trabalhadores, no início da década de 1980. O princípio da autonomia dos movimentos da sociedade civil, sempre fundamental dentro do Somos, foi o estopim que opôs os marxistas centralizadores a autonomistas de tendência libertária. E os centralizadores ganharam a parada.
IHU On-Line – O que você tem a dizer da proposta de mudança da sigla?
João Silvério Trevisan – Decidiu-se que agora se deverá dizer LGBT, para falar da comunidade homossexual. Ao invés de ABGLT, talvez tenhamos a "nova" ALGBT. Aparentemente, tudo bem. Quer dizer, para mim tanto faz se o L das lésbicas esteja na frente. Mas, como velho guerreiro do movimento homossexual, eu sei muito bem que mudanças como essa são reflexo das lutas transcorridas não tão surdamente entre as lideranças, na disputa de poder. Se continuar essa luta entre poderes manifestos nas letrinhas, logo mais talvez se decida que o mais correto será TLGB, e assim por diante – sempre de acordo com as pressões exercidas, à medida que um grupo ganhe mais poder sobre os demais.
Tudo isso mostra como o movimento homossexual brasileiro é antes de tudo um saco-de-gatos, cada vez mais complicado, quanto mais proximidade houver com o poder central e envolvimento com a distribuição de verbas. Em resumo, o que tenho visto nessas três décadas de luta pelos direitos homossexuais é um distanciamento cada vez maior da solidariedade fundamental para um movimento social, e cada vez mais um amontoado de ressentimentos que se multiplicam quanto mais o sentimento de solidariedade desaparece. Basta participar de um desses Encontros Nacionais de Homossexuais para constatar como as lutas pelo poder levaram a um vale-tudo, onde imperam "conchavos", mentiras, tapetadas, calúnias, traições, trocas públicas de ofensas e até ataques físicos.
IHU On-Line – Como o senhor analisa o posicionamento do presidente junto ao movimento? O que achou do discurso dele durante a Conferência?
João Silvério Trevisan – O presidente Lula parece que evoluiu muito, desde os velhos tempos em que manifestava posições canhestras e constrangedoras – como no caso da "cidade que exporta viados", quando do seu infeliz comentário em Pelotas. Tal mudança mostra que ele tem assessores competentes, que o ajudaram a evoluir para uma postura mais crítica diante do machismo e do preconceito homossexual. Não tenho nada a reclamar sobre a sagacidade e timing dessa assessoria. Acho até legal que um presidente apóie o movimento. Mas que ele seja mais um ator, e não o líder, que foi o papel a ele delegado.
Sem fazer nenhuma propaganda direta, a ABGLT sagrou a modernidade do presidente, colocando uma auréola de tolerância em torno da sua cabeça. Politicamente, foi um presentão que lhe deram, com rendimento de prestígio a médio e longo prazo, tanto no Brasil quanto no exterior. De um modo ou de outro, a cena política foi muito bem calculada pelo petismo presente no movimento homossexual. Mas, infelizmente, outra vez a comunidade homossexual acabou perdendo, de um ponto de vista político. Mesmo ocorrendo conferências preparatórias (em nível municipal e estadual) do encontro nacional, é importante considerar a estratégia escolhida pela ABGLT para viabilizar essa 1ª Conferência GLBT. Concordou-se que todas as ações, inclusive estaduais e municipais, deveriam ser convocadas pela Presidência da República.
Papel de Lula perante o movimento
Antes de tudo, colocar o presidente do país como o motor de um encontro nacional de homossexuais significa dar a ele um papel muito maior do que lhe cabe. Claro que essa estratégia política amealhou poder (inclusive financeiro) para viabilizar as várias fases do evento. Pode ser mesmo que os resultados sejam bons, em nível de políticas públicas para a comunidade homossexual brasileira. Mas certamente as lideranças presentes nos debates não se deram conta do que se perdeu, com essa estratégia de barganha entre poderes. Por um lado, reforçou-se politicamente a figura do presidente como um homem que luta pelos direitos homossexuais. E, por mais que Lula de fato tenha deixado para trás suas posições preconceituosas (e só algumas vezes tornadas públicas), quem mais saiu ganhando foi ele, seu governo e seu partido.
Desde os primórdios, o PT apoiou causas modernas para ganhar prestígio como partido moderno, entre amplos setores da população brasileira, sobretudo à esquerda. Para a ABGLT, acostumada a trabalhar nos corredores do poder e em contato direto com o PT, não há nenhum problema. Mas o que sobra da experiência é que tal aliança entre políticos e líderes homossexuais reforça ambos os pólos de poder. Não importa que a comunidade representada pela ABGLT tenha sido alijada dessa estratégia. O raciocínio da ABGLT é, certamente, que a população homossexual será beneficiada e ficará agradecida. Com isso, reforçamos o paternalismo perenizado na vida política brasileira. Pode ser que a Conferência GLBT e tantas outras ações de diálogo entre poderes tenham frutos bons, de algum modo, mudando leis e conscientizando autoridades. Mas repito: o grande perdedor acaba sendo a consciência coletiva dos homossexuais, por estar ausente dessas lutas. Aliás, no caso do poder concentrado da ABGLT, o menos importante parece ser a comunidade homossexual.
Política e movimento homossexual brasileiro
A idéia de promover um crescimento da consciência política de homossexuais só aparece como corolário das leis impostas e das transformações vindas de cima. Como resultado político, a última coisa que se poderá ver, no caso brasileiro, é a população homossexual assumindo sua própria voz e tomando atitudes coletivas para lutar por seus direitos. Assim, não é de estranhar que a comunidade homossexual brasileira tenha um nível de consciência política lamentável sobre seus direitos e sobre si mesma. E apresente condição ínfima de se mobilizar enquanto movimento social, para lutar pelos seus direitos, confinada que está a um purgatório de desinformação. Um dos sintomas de sua falta de consciência política é que ainda não temos representantes da comunidade homossexual eleitos por ela para o Congresso Nacional e raramente para as Assembléias estaduais.
Na última Feira Cultural da Parada GLBT de São Paulo, vários homossexuais foram até a barraca dos organizadores perguntar sobre o sentido do termo "homofobia" (presente no tema político deste ano). Tal ignorância é mais um sintoma de como anda a consciência da população homossexual. Como conseqüência, as lutas pelos direitos homossexuais são levadas adiante por pequenos grupos de lideranças, o que torna essa luta invisível, enquanto movimento social, e dá aos líderes amplos poderes de manipulação. Politicamente, a estratégia de concentrar poder é lamentável e perigosa. Durante séculos, homossexuais foram calados por autoridades eclesiásticas, jurídicas e médicas, que os definiam e interpretavam. Atualmente, parece que os sucessores dessas autoridades são as próprias lideranças homossexuais, impotentes ou inconscientes da importância de dar voz a cada um/a daqueles/as que são oprimidos e deveriam gritar por seus direitos.
Por isso, o movimento homossexual no Brasil se concentra na classe média, ou seja, numa verdadeira elite homossexual, conseguindo atingir a comunidade só muito indiretamente e com capacidade nula de mobilização comunitária. Basta estar presente a qualquer evento ligado aos direitos homossexuais para constatar uns poucos gatos-pingados – e quase sempre os mesmos. A ausência da comunidade GLBT, substituída por líderes, é o efeito lógico de uma linha política copiada dos movimentos de esquerda tradicional e já consagrada no movimento homossexual brasileiro: o poder gay em diálogo direto com o poder político da vez, prescindindo da pressão coletiva.
Parada gay
A grande e honrosa exceção à estratégia elitista são as Paradas GLBT, que se multiplicam por todo o país. Politicamente, elas são um fato importantíssimo, mesmo que muita gente as ataque como mero carnaval fora de época. Apesar de serem uma afirmação isolada no ano, acredito que sejam o único evento em que homossexuais de todo o país vão às ruas com uma atitude de afirmação do seu direito de amar, propiciando um importantíssimo fator de visibilidade para a sociedade democrática. Com todas as ressalvas que possam apresentar, as Paradas são o único movimento de luta direta e autônoma da população homossexual brasileira, em que cada qual solta sua própria voz. Acho que o florescimento de uma consciência homossexual dentro da população GLBT brasileira só ocorrerá quando incontáveis lideranças se disseminarem e pipocarem por todo o país, até o ponto de não haver mais necessidade de porta-vozes. Ou seja, diluindo o poder concentrador de órgãos como a ABGLT.
IHU On-Line – As políticas públicas que envolvem os direitos dos homossexuais no Brasil estão de acordo com os anseios do movimento gay? Há muito ainda a se fazer?
João Silvério Trevisan – Essas políticas públicas, extremamente necessárias, apenas começam a ser pensadas, no Brasil. Está tudo por fazer. Obviamente, o Congresso GLBT em Brasília não inaugurou tal discussão. Em 2002, no início do governo da Marta Suplicy em São Paulo, um grupo supra-partidário GLBT, do qual eu fazia parte, organizou autonomamente por três dias, na Câmara dos Vereadores, um Seminário de Políticas Públicas Homossexuais, quando ainda nem se pensava nisso. Pela primeira vez em São Paulo, inúmeros grupos da sociedade civil se juntaram aos grupos de ativismo homossexual, na promoção e apoio a esse evento. Entre associações profissionais e instituições universitárias, contavam-se mais de 20 entidades, sem contar participantes independentes.
Nos três dias de intensos debates sobre políticas públicas voltadas para homossexuais, apontamos ações necessárias nas áreas de saúde, educação, profissionalização, leis e atendimento legal e psicológico à população GLBT. Ao final, elaboramos um documento, que posteriormente foi apresentado a então prefeita Marta Suplicy. Um dos organizadores do seminário era o Carlos Giannazzi, um vereador então rebelde a várias diretrizes do PT. A prefeita simplesmente recusou-se a receber nossas conclusões, pensadas justamente para ajudar um governo que, pensávamos, iria contemplar as necessidades da população homossexual. Boicotado pelas lideranças que apoiavam a então prefeita, nosso documento e suas conclusões caíram no esquecimento.
A concentração de poder nas mãos de petistas ortodoxos, dentro do movimento homossexual, não permite que algo se realize fora dos círculos partidários do PT. O silêncio em torno das conclusões do Seminário de Políticas Homossexuais foi apenas mais uma evidência de como o governo do PT na cidade de São Paulo foi um dos mais avessos à comunidade homossexual paulistana, por incrível que pudesse parecer a todos/as nós que lutamos para eleger Marta. Ambiciosa por uma carreira política de longo alcance, a então prefeita preferiu nos dar as costas e mostrar-se mais palatável aos eleitores evangélicos e conservadores.
Para quem pôde e quis entender, foi um exemplo acabado de como as razões partidárias se sobrepõem, indiscutivelmente, às razões dos movimentos sociais. Foi o que sentiram os militantes GLBT diante dos policiais da Guarda Civil que barraram sua entrada na Prefeitura, enquanto as portas do prédio se fechavam para evitar que eles fossem falar com a então prefeita, como pretendiam. Muitos deles/as choraram inconsoláveis diante da cena. Foi um dos últimos gestos anti-homossexuais do governo Marta Suplicy, já no apagar das luzes da sua gestão em São Paulo. Acho difícil esquecer tal desfaçatez. Sobretudo porque ela é uma clara evidência de que a luta homossexual serve enquanto não atrapalha as pretensões do partido.
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"A exceção à estratégia elitista são as Paradas GLBT". Entrevista especial com João Silvério Trevisan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU