Ficou longe aquele 1978 em que o grupo punk nova-iorquino Ramones cantava: “Nada a fazer, sem lugar para ir. Eu quero estar sedado”. Agora, essa sedação tem muito mais a ver com um sistema de saúde mental que aposta na medicalização dos pacientes, em vez de tratar a raiz de seus problemas.
A reportagem-entrevista é de Raquel Nogueira, publicada por El Español, 04-04-2022. A tradução é do Cepat.
Ao menos, essa é a tese do professor titular de Antropologia Social e Psicoterapia na Universidade de Roehampton, James Davies, conforme explicita em Sedados (Capitán Swing, 2022), uma análise sobre como o capitalismo moderno criou a atual crise de saúde mental.
Apesar do fato de que cada vez se falar mais e mais sobre saúde emocional e mental, algo que para Davies é “muito importante”, o problema, em sua avaliação, está em que “pedimos às pessoas que sejam corajosas e procurem ajuda, mas quando assim procedem, o que encontram?”.
E acrescenta: “Quando alguém pede ajuda, depara-se com um sistema muito medicalizado, que enquadra a angústia em moldes que privilegiam os tratamentos psicotrópicos”. Por isso, afirma, vivemos em uma sociedade “sedada”, seja no Reino Unido, onde o seu estudo se concentra, ou na Espanha.
É que o nosso [Espanha] é um dos países do mundo onde mais se aposta na medicalização da saúde mental. Ou seja, tratar esses problemas com “drogas legais”, em vez de utilizar outras terapias.
Tudo começou nos anos 1980, conta esse britânico que também atuou como psicoterapeuta no Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido. Naquele período, o sofrimento humano “deixou de ser uma experiência compartilhada”. Pelo contrário, começou a ser compreendido como “um índice de disfunção interna, um desequilíbrio químico ou uma disfunção cognitiva do modo como se vê o mundo”, afirma.
Isso, explica, “é algo muito novo, e antes não era assim”. E embora lembre que a democratização da saúde mental nos últimos anos tenha sido uma boa notícia, afirma que “aconteceu de forma errada”. O problema, conforme explica, é que a saúde mental foi ligada à economia.
“A saúde se torna sinônimo de produtividade, atividade ou de tudo aquilo que o sistema econômico quer que sejamos. E a recuperação passa a estar a serviço dos interesses econômicos pelos quais as empresas trabalham”, afirma.
No entanto, antes, nos anos 1960 e 1970, “compreendia-se o sofrimento como o protesto do organismo contra as coisas ruins que aconteciam ao seu redor. Ou seja, era preciso enfrentar determinadas situações, em muitos casos estruturais, para que alguém se sentisse melhor. O sofrimento era um chamado a mudar. Esse tipo de filosofia era, então, a predominante”, argumenta.
Naquele momento, então, lembra, “falávamos de um capitalismo keynesiano, havia um consenso pós-guerra, esse era o tipo de capitalismo que existia”. A partir dos anos 1980, ao contrário, foram se assentando as bases de um “hipercapitalismo” que mede a saúde mental “em termos econômicos”.
“O sistema diz às pessoas que seus problemas estão em sua cabeça e não em seu ambiente, o que protege o mundo do escrutínio, exonera o sistema das responsabilidades. Agora, você é o responsável, tudo é uma questão individual”, pondera Davies.
No entanto, argumenta o especialista, a maior parte dos problemas de saúde mental das pessoas “procede de seu ambiente, de seu contexto socioeconômico e da falta de apoio”.
Como chegamos a essa situação?
Tudo começou com a publicação do terceiro Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais dos Estados Unidos (conhecido como DSM). A partir daí, a comunidade psiquiátrica começou a diagnosticar cada vez mais quadros relativos à saúde mental: passamos de 100 para quase 400 diagnósticos diferentes.
Isso é um problema?
O DSM reduz a fronteira pela qual alguém é diagnosticado com uma desordem psicológica. Isso faz com que seja muito mais simples atribuir a qualquer pessoa uma doença mental. E a definição de doença é alargada para que, cada vez mais, sejam incluídas facetas da experiência humana. Coisas que não deveriam ser consideradas doenças passam a ser.
É nesse ponto, explica Davies, que os pacientes começam a ser medicados. Isto, afirma, “cria um enorme mercado, pois se todas essas pessoas agora possuem algum transtorno, precisam ser tratadas”. Assim, começou a se expandir o uso de psicotrópicos, que foram escolhidos, diz ele, por serem “os medicamentos mais baratos e supostamente eficazes oferecidos pelas empresas farmacêuticas”.
Dessa forma, o cotidiano foi medicalizado, o que acabou levando a uma “medicalização da vida”. Além disso, Davies afirma que “as circunstâncias sociais que nos cercam, as condições que fazem com que o hipercapitalismo funcione, se encaixam nesse novo sistema”. Por isso, diz, esse modelo de saúde mental prosperou.
Cria-se também “um grande mercado que mercantiliza o sofrimento e o torna uma oportunidade de mercado”. E acrescenta: “é algo com o que se pode ganhar muito dinheiro”. Mas, para Davies, o problema está em que, a partir dos anos 1980, “despolitiza-se o sofrimento”.
O sofrimento é político?
Devemos reivindicar que o sofrimento, a ação de sofrer, é uma chamada de atenção, um protesto legítimo diante das coisas ruins que nos acontecem. Interpretar o sofrimento dessa forma tem muitas vantagens, pois nos força a olhar para nossas vidas, nossa história, nosso ambiente e descobrir o que faz com que a situação seja difícil e realizar os ajustes necessários. Mas também nos força a olhar para toda a sociedade, examinar as estruturas que afetam sua vida de diferentes formas.
Poderia dar um exemplo?
Sabemos que durante os confinamentos por causa da covid, se você fosse uma mãe solteira vivendo em um arranha-céu em Londres, teria quatro vezes mais chances de ter depressão do que se fizesse parte de uma família de classe média acomodada, de bairros residenciais da cidade. Por quê? Tem muito a ver com as estruturas em que se vive, com a capacidade econômica: quanto menos você tem, mais chances possui de cair no desespero. Isso não quer dizer que as pessoas com maior nível aquisitivo não tenham problemas, mas são diferentes. Por isso, precisamos repolitizar a forma como entendemos o sofrimento.
Davies chama a atenção para o movimento de libertação da mulher, dos anos 1960, quando o feminismo tomou as ruas em massa, especialmente nas sociedades anglo-saxônicas. “De onde vinha? Da dor das mulheres, daquelas que sofriam pelas condições sociais e que se negavam a se medicar, embora tentassem”, explica.
E acrescenta: “Elas sentiram e compartilharam sua dor, e se rebelaram contra as estruturas que a causavam, os obstáculos que faziam com que ficassem fechadas em vidas que não queriam viver”. Esse, diz, é o “exemplo perfeito” de “como se politiza o sofrimento: as pessoas se unem para compartilhá-lo, ajudar uns aos outros e exigir mudanças”. O mesmo aconteceu, nos últimos anos, com o Black Lives Matter.
A covid-19 colocou a saúde mental sobre a mesa?
A pandemia estimulou as pessoas a se apoderar de sua própria angústia e a falar dela. Não houve nenhum outro evento social na história moderna que tenha tido um efeito semelhante. Não é perfeito, mas legitimou a crise de saúde mental. Ou seja, veio nos dizer que não há nada de ruim em se sentir mal e em buscar ajuda.
Essa traumática experiência coletiva mudará a forma como se trata a saúde mental?
A covid abalou o modelo atual. A maior parte das pessoas que sofreram pela pandemia reconhecia que se perdia o seu emprego ou estava angustiada por não poder sair dos 30 metros quadrados de seu apartamento, era o resultado do que estava acontecendo no mundo. Isso é novo: nunca tínhamos sido conscientes de que a saúde mental se vê afetada pelas circunstâncias socioeconômicas e sanitárias externas. Sendo assim, sem querer, começamos a minar a dependência do modelo medicalizado.
Sim, Davies afirma que em plena pandemia houve “tentativas de medicalizar mais uma vez a saúde mental”. E conta o caso de um movimento no Reino Unido liderado por psiquiatras que “diziam que as doenças mentais estavam aumentando e que era preciso mais tratamentos psicotrópicos”.
Disse que falavam de doenças mentais.
Mas não são. Estamos falando de problemas de saúde mental, cujas causas não podem ser resolvidas com medicação. Só poderão ser solucionadas com remédios sociopsicológicos, não com drogas ou intervenções econômicas, não médicas.
Então, qual foi o impacto da pandemia?
Primeiro, fez com que o debate esteja sobre a mesa. E depois, em consequência, começou a desmedicalizar o debate sobre a saúde mental. Mas meu medo é que assim que a covid passar e voltarmos à vida normal, as demandas da economia sejam reafirmadas, as mensagens antigas retornem e estejamos no ponto de partida mais uma vez. Se haverá ou não uma mudança sustentável, é complicado saber.
Sua tese diz que para mudar o modelo de saúde mental é preciso uma mudança no modelo econômico.
Claro. A razão pela qual esse modelo [de saúde mental] falido fez sucesso e se manteve é porque se encaixa no sistema. Se o sistema mudar, não se encaixará mais, razão pela qual todas essas falhas terão que desaparecer. Vejo, sem dúvida, que a mudança definitiva chegará com uma transformação social que implique distanciar suas políticas econômicas do capitalismo agressivo que existe hoje.
Antes, nunca tínhamos tido uma situação como a atual. Vivemos um hipercapitalismo inédito que provoca centenas de preocupações nas pessoas, mas o setor da saúde mental também se nutre dele. Se deixarmos de alimentar este hipercapitalismo, o modelo não se encaixará mais e será criado espaço para dezenas de tipos de terapias e tratamentos que a maior parte das pessoas querem.
E o que acredita que as pessoas querem?
As pessoas querem e precisam de apoio, ajuda, validação, respeito, comunidade para deixar de se sentir sozinhas e assustadas. Tais serviços são os que precisamos efetivar.
E por que isso não acontece?
Como não são ideologicamente consistentes, não têm as mesmas oportunidades no mercado. Porque também não há muita margem para lucrar com eles.
Davies lembra que “as grandes mudanças sistêmicas costumam acontecer quando um grupo de pessoas se reúne para forçar mudanças nas políticas”. Normalmente, acontecem em períodos de crises profundas que, como ele mesmo diz, “enfrentam a economia e acontecem mudanças rápidas e profundas”. Ocorreu, ressalta, no século XX, após a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1970, com a crise da inflação, e com a crise do petróleo.
“Tivemos uma oportunidade perfeita para mudar o capitalismo em 2008, com a crise financeira, mas a deixamos passar, fizemos o resgate e agora está em suporte vital. Atualmente, voltamos a ter essa oportunidade com a covid e tudo o que está acontecendo entre a Ucrânia e a Rússia”, afirma. E alerta: “Estamos em um momento muito interessante: em cinco anos, poderemos estar vivendo em um contexto econômico muito diferente do atual”. E, por conseguinte, em um sistema de saúde mental radicalmente oposto ao atual.
O que precisamos para que isso aconteça?
É imperativo desafiar o materialismo e o consumismo, que não apenas são as engrenagens do hipercapitalismo, mas estão destruindo o nosso meio ambiente. É que o materialismo em nossas próprias vidas também está nos destruindo como pessoas: a ideia de que sou melhor por ter uma casa ou um carro maior, ou que tenho mais sucesso por ter mais coisas... isso tem que desaparecer. Temos que começar a lembrar que o que nos faz uma pessoa melhor é o que somos, como nos comportamos e como nos relacionamos. É imprescindível que recuperemos a arte de ser e de nos relacionar.
Para isso, Davies considera que “precisamos diminuir o tempo que investimos em trabalhar e investi-lo em nos sentir vivos, estar em comunidade, com a família, ler...”.
E conclui afirmando que “a maior parte das pessoas está começando a entender que o tipo de sistema econômico que temos, baseado no hipercapitalismo, está no final de sua vida, por muitas razões, e as consequências climáticas são um dos principais fatores”.