15 Março 2022
"O comportamento do parlamentar não pode mais ser compreendido como zombaria e exibicionismo de caçador, comum entre pares, e a luta das mulheres não pode ser percebida como única, pois está assentada na generosidade e na determinação de erguer um mundo socialmente justo, onde respeito e dignidade sejam raiz e esteio social", escreve Ivânia Vieira, jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em Processos Socioculturais da Amazônia, articulista no jornal A Crítica de Manaus, co-fundadora do Fórum de Mulheres Afroameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas).
Em “As mulheres ou os silêncios da história” (2005), Michelle Perrot traz à cena reflexões sobre os espaços público e privado como dimensões inseparáveis da vida da mulher. Um tema de abordagem cada vez mais necessária nas múltiplas pautas envolvendo as lutas das mulheres em todo o mundo e no interior das diferentes instituições globais e locais.
A noção do privado como espaço de consentimentos ‘valida’ historicamente atitudes machistas, discriminatórias, racistas e misóginas. No Brasil, setores do executivo, do legislativo e do judiciário, das corporações, utilizam esse tipo de validação como mecanismo para a contínua violação dos direitos fundamentais das mulheres. A lista de ocorrências dos atos é longa e envolve quadro amplo de personalidades em cargos de poder. Vale assinalar o déficit de registros desses ataques envolvendo servidores públicos, da Presidência da República às comissões de representação institucionais.
Perrot situa a dificuldade de escrever uma história das mulheres em decorrência do apagamento de seus traços, tanto públicos quanto privados. “Um silêncio reiterado por meio dos tempos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento {...}”. Para a historiadora, esse mesmo silêncio, imposto pela ordem simbólica, não é somente o silêncio da fala, mas também o da expressão, gestual ou escriturária. No enfrentamento dos silêncios, as mulheres forjaram e estão forjando formas de quebra e de ruptura conjugando resiliência e resistência seculares.
Um dos casos recentes sobre o público e o privado, o do deputado Arthur do Val (ex-Podemos/SP) é emblemático. A linha de defesa do parlamentar recorre exatamente ao âmbito privado como tentativa de justificar e de atenuar a fala do parlamentar em áudio – as ucranianas são “fáceis, porque são pobres”, resumidamente, pois todo o conteúdo é deplorável. Eleito com aproximadamente 480 mil votos e pré-candidato ao governo de São Paulo, até o áudio se tornar público, o deputado e equipe manejam a ideia de validação da violência no privado para minimizar o caráter da agressão cometida e evitar a perda do mandato.
O apoio de grupos ao gesto machista do deputado vem acompanhado do entendimento de que no particular “os homens têm esse tipo de conversa”, acionando a ideia de naturalização da violência de gênero em ambientes internos e de grupos de amigos. Não é natural, não é normal, não é admissível. É machismo. É violência. É autoritarismo. É misoginia. É ignorar o princípio do mandato parlamentar ao qual Arthur do Val, e todos os representantes no Poder Legislativo, devem, constitucionalmente, obedecer. É falta de decoro. É crime.
Há um jogo em andamento nesse caso. Os lances em arrumação são para punir parcialmente o parlamentar mantendo-o no cargo. Dessas jogadas participam outros parlamentares-amigos, líderes de partidos, personalidades de arco de poder do deputado; ou cassá-lo, por necessidade de ‘salvaguardar’ o conjunto. A decisão da Assembleia Legislativa de São Paulo será filtro, em várias camadas, do embate a respeito do público e do privado na escrita da história das mulheres, com repercussão nos poderes executivo e legislativo dos demais estados e municípios e no Congresso Nacional, habitats de agressores de mulheres e de históricos machistas.
A encarnação da luta das mulheres é pelo fim da impunidade aos violadores dos direitos humanos das mulheres e pelo respeito no privado e no público. O comportamento do parlamentar não pode mais ser compreendido como zombaria e exibicionismo de caçador, comum entre pares, e a luta das mulheres não pode ser percebida como única, pois está assentada na generosidade e na determinação de erguer um mundo socialmente justo, onde respeito e dignidade sejam raiz e esteio social.
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O deputado machista e a violência privada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU