02 Março 2022
A Câmara dos Deputados aprovou no início de fevereiro o projeto de lei 6.299/2002, que vem sendo chamado de ‘Pacote do Veneno’. O projeto flexibiliza o registro de agrotóxicos no país, que já é o maior consumidor desses produtos no mundo. Atualmente, a legislação exige que, para que seja registrado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), os agrotóxicos precisam do aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) - que avalia os efeitos tóxicos dos produtos sobre a vida humana – e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), que faz a análise de seu risco ambiental.
A aprovação do ‘Pacote do Veneno’ significa o fim do poder de veto das duas agências, que passam a participar do processo de registro dos agrotóxicos apenas em caráter consultivo. O projeto cria ainda a possibilidade de que novos agrotóxicos obtenham registros temporários e possam ser utilizados no Brasil se Anvisa e Ibama levarem mais de um ano para concluírem seus estudos, e caso o produto em análise tenha sido liberado em pelo menos três países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Nesta entrevista, Fernando Carneiro, pesquisador da Fiocruz Ceará e membro do GT Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), alerta para os riscos da aprovação do ‘Pacote do Veneno’, que agora deverá ser analisado pelo Senado.
A entrevista é de André Antunes, publicada por EPSJV/Fiocruz, 25-02-2022.
A Abrasco e a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida lançaram no ano passado um dossiê contra o ‘Pacote de Veneno’. Pode falar brevemente sobre o dossiê e sobre as principais preocupações presentes ali contra o PL 6.299/2002? Quais as alterações mais preocupantes e em que medida ele vai facilitar a liberação de agrotóxicos no país?
Quando se criou uma comissão especial para trabalhar com o PL do veneno na Câmara, mais de 30 entidades nacionais se colocaram contra o PL e construíram notas técnicas com várias argumentações: sociedades cientificas, entidades representativas de órgãos públicos. Há até um posicionamento contrário dos relatores de água e saneamento e substâncias químicas da ONU. Foi um amplo consenso técnico-científico: Abrasco, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Fiocruz. Apenas um órgão se posicionou a favor do PL e contra essas notas técnicas, que foi a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], hoje dominada pelo agronegócio e em risco de privatização. Então a ideia do dossiê foi reunir esse conjunto de argumentos e ao mesmo tempo apontar para o futuro, porque tramita no Congresso PNARA, a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos. A diferença é que o PL do Veneno foi aprovado em regime de urgência e segue para o Senado, e a PNARA está parada, não foi votada nem colocada urgência.
Recentemente uma nota da Fiocruz levantou uma série de questões fundamentais, mas eu resumiria que a principal é de retirar as atribuições de Saúde e Ambiente, concentrando na agricultura o poder de registro dos agrotóxicos. Isso muda o paradigma de divisão tripartite, onde a Agricultura avaliava a eficiência agronômica, a Saúde a toxicidade e o setor ambiental a ecotoxicidade. Também se muda o nome de agrotóxicos para pesticida, em uma tentativa de greenwashing, ou o famoso dourar a pílula, para justamente retirar do nome a característica intrínseca dessas substâncias, que é sua toxicidade.
Durante a votação na Câmara, deputados favoráveis chegaram a comparar os agrotóxicos a vacinas, e também defenderam que caso aprovada a lei vai baratear custos, “inclusive para a agricultura familiar” e facilitar o acesso a novas tecnologias...
O agronegócio coloca que isso vai modernizar, vão vir agrotóxicos menos perigosos, vai facilitar a entrada. É uma falácia. O que está acontecendo é o contrário, vão ser tolerados inclusive agrotóxicos sabidamente cancerígenos, porque vai mudar o paradigma de análise, incluindo faixas toleráveis de risco, como se a gente fosse capaz de tolerar o câncer. Vamos ser uma lixeira tóxica do planeta. Na década de 1980 os militares já diziam ‘poluição, venha a nós’, o que gerou cidades como Cubatão. Nós estamos vendo a reedição dessa postura de total descompromisso com o meio ambiente e com a vida.
A comparação de agrotóxicos com vacinas e remédios é mais uma falácia. Estamos falando de substâncias que têm uma letalidade muito alta, inclusive é muita utilizada em suicídios. Grande parte do que chega no Sinan [Sistema de Informação de Agravos de Notificação] relativo a casos de morte por agrotóxicos está relacionada a suicídios. Então é uma substância com alta letalidade, que não é o caso de vacinas e remédios, que quando são utilizados, como são produtos da saúde, o impacto das condições adversas é bem menor. É muito diferente, é incomparável, apesar de que popularmente se usa o termo remédio para se lidar com agrotóxicos, o que é muito equivocado. É novamente uma cultura de minimização de riscos em detrimento dos cuidados necessários para sua utilização, então não tem qualquer base técnica ou científica essa comparação. E novamente com o atual regime infralegal de liberação de agrotóxicos vimos mais de mil agrotóxicos liberados, entre eles agrotóxicos perigosos, proibidos em países da Europa em função da sua letalidade, do seu dano à saúde e ao meio ambiente. Então esse argumento não checa com a realidade.
Do ponto de vista político, o que está por trás da urgência em aprovar a matéria no atual contexto, na sua análise? Por que essa pauta tem se mostrado tão premente para o agronegócio nessa conjuntura?
Do ponto de vista política, essa urgência em aprovar essa matéria na minha visão tem a ver com um profundo conflito de interesse. Recentemente se viu que o relator do PL do Veneno tem uma dívida milionária com empresas de agrotóxicos. Então os deputados da bancada ruralista têm financiamentos de campanha, relações diretas com a questão, são latifundiários, grandes compradores de agrotóxicos. Existe essa relação intrínseca. Os agrotóxicos não pagam impostos, então isso também facilita a vida de quem eles representam, é uma renúncia fiscal de bilhões anuais. Na sua tese de doutorado na Fiocruz, o pesquisador Wagner Monteiro calculou que a cada dólar gasto com agrotóxicos, se gasta 1,28 dólares em atendimentos à saúde e licenças de trabalho de pessoas atingidas por agrotóxicos. Enquanto isso existe uma isenção fiscal desse setor, que faz parte desse contexto de liberalização dos agrotóxicos.
Então o pano de fundo da aprovação desse pacote é a continuidade da privatização de lucros e socialização de prejuízos. O prejuízo da contaminação ambiental e da saúde não entra na conta do mercado do latifúndio, do agrotóxico na produção do agronegócio. Então o aumento da opção de produtos facilita e maximiza os lucros. A pauta é basicamente de maximização de lucros em detrimento da saúde e ambiente.
Em que medida sua aprovação pode representar inclusive prejuízos econômicos, em um momento em que a política do governo Bolsonaro para o Meio Ambiente já vem recebendo muitas críticas em âmbito internacional?
Existe uma movimentação na Europa sobre esse PL em função do acordo comercial entre o Brasil e a comunidade europeia. Já houve estudos inclusive da Larissa Bombardi [pesquisadora da Universidade de São Paulo], do Atlas dos Agrotóxicos no Brasil, que mostra essa intrínseca relação, já que o Brasil exporta muito para a Europa. E na visão de quem promove o livre comércio, que eu também tenho restrições, essa questão dos agrotóxicos pode dificultar o acordo que o Brasil vem construindo com o mercado europeu. Tanto que existe um agronegócio mais moderno que tem algumas posições diferenciadas, mas é muito minoritário.
Qual a expectativa para a tramitação no Senado?
O projeto já chegou no Senado. O presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, ainda não definiu se ele vai direto para Plenário ou se vai para comissão de saúde ou de ambiente, por exemplo. Nesse momento ele está sentindo o termômetro das pressões da bancada ruralista, que no mesmo dia que aceitou o regime de urgência aprovou o projeto na Câmara, que é uma coisa muito inusual. Foi em tempo relâmpago a aprovação. Então todo mundo está apreensivo se o Rodrigo Pacheco vai seguir no mesmo ritmo, apesar de que sua primeira declaração foi a de que ele vai seguir os ritos, que não vai votar urgência. É importante a vigilância da sociedade, poder realmente criar um clima de debate, efetivar audiências públicas e buscar reverter o que aconteceu na Câmara.
Nesse momento é importante a gente furar a bolha da comunicação, que muitas vezes fica entre os órgãos de governo, setores governamentais, é importante que esse debate ganhe as ruas, a sociedade. Fiquei muito feliz com a iniciativa do Caetano Veloso de juntar artistas e entidades para fazer um ato no dia 9 de março no Congresso Nacional. Isso é muito importante, a gente ganhar setores da sociedade que tenham maior capacidade de comunicação de massa. Isso é fundamental para sensibilizar os senadores, estamos em período eleitoral, tem interesses imediatos deles.
Então é hora de a gente transformar esse consenso técnico-cientifico em ressonância política também, em prol da defesa da vida e do meio ambiente. Então estão se amplificando as campanhas de informação frente à desinformação nos tempos em que a ordem da direita bolsonarista é de trabalhar com as fake news, a desinformação. É um momento importante de trabalhar a informação adequada e de forma simples, a ciência deve aprender a traduzir a informação de forma adequada para a população entender a gravidade do que está acontecendo, que pode causar danos irreparáveis.
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‘Vamos ser uma lixeira tóxica do planeta’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU