No “poema do Menino Jesus”, Fernando Pessoa descreve um Deus maroto, sujeito levado que desce do céu para brincar como criança descalça em chão de terra batida. Esse Jesus vem para ficar entre humanos, provar de um afeto que só é mensurável por quem tem um coração com sangue quente que pulsa. Mas é inevitável que nos perguntemos: o que há nesse mundo tão duro capaz de chamar atenção de um Deus menino?
Fernando Pessoa conta que aprende muito com essa criança, especialmente a olhar e sentir “as coisas”. Quem já visitou uma ocupação, como as tantas que existem em São Leopoldo, em que famílias inteiras vivem sob condições mínimas, também pode ter experimentado “as coisas” e sentido um pouco o que o poeta escreve. Não, não se trata de aprender sobre a miséria e degradação humana. Mas sim de olhar o sorriso, o brilho no olho de crianças e ver nesses olhares e sorrisos um caminho de esperança. Ver a possibilidade de ser feliz, de transformar e ser transformado.
É isso que também diz sentir a professora do curso de Serviço Social da Unisinos e Coordenadora do ObservaSinos no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Marilene Maia. “Minha vida ficou completamente encharcada da vida deles. São lutas constantes e estamos ali, juntos, lutando e comemorando com eles, celebrando a vida”, diz. Não à toa, Meni, como é carinhosamente chamada por todos, se vê como parte de muitas daquelas famílias. Orgulhosa, ela exibe a foto da pequena Mirela, o bebê que nasceu em meio à pandemia. A garotinha de bochechas redondinhas é filha de Jaqueline Santos Rodrigues, uma das lideranças da Ocupação Steigleder. “Estamos sempre juntas. Eu mesma, quando fui ganhar a Mirela, liguei da maternidade para Meni por causa de uma menina que ganhou bebê e não tinha acompanhante. Disse ‘ah, Meni, o que será que a gente pode fazer?’. É assim, a gente se une e faz o que pode”, conta Jaque.
Talvez a união seja mesmo a melhor palavra que define a vida nas ocupações. Diante da luta, é a união que faz brotar a esperança. “Há três anos, a situação era bem difícil. Apesar dos apoios, continua difícil, mas agora contamos com gente. Antes éramos sozinhos, mas a partir dos encontros com o Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM, depois com o pessoal da Unisinos e do IHU e a Rede Solidária as pessoas passaram a nos ouvir”, comenta Jaque, em entrevista por telefone ao IHU. Ela se refere a uma espécie de ‘força tarefa’ que se constituiu no final de 2018. Na época, a ameaça de despejo de 2.500 famílias da Ocupação Justo trouxe luz a essa realidade e de outras áreas de ocupação. Uma realidade que parecia invisível até mesmo para o poder público.
O próprio Judiciário reconheceu não saber em profundidade a realidade dessas pessoas e por isso um grupo da Unisinos, capitaneado pelo IHU, começou a reunir dados e informações para que membros do judiciário conhecessem melhor a vida numa ocupação antes de decidirem pelo despejo. Então, em 2019 a universidade assume o compromisso de trilhar por caminhos e comunidades invisibilizadas, principalmente nas ocupações Steigleder, Vitória, Justo e Assentamento Anita.
Quando as cidades não oportunizam espaços para todos, muitos daqueles que desejam um lugar ao sol – que na prática significa um lugar para morar –, sobretudo se são pobres, recebem o carimbo de “invasores”. O fato concreto, porém, é que essas ocupações, não são invasões, são uma tentativa de construir uma vida digna longe dos processos de gentrificação e marginalização a que as famílias menos abastadas são submetidas, em projetos habitacionais em lugares longínquos e quase inacessíveis para quem vive da coleta de materiais reciclados. Apesar de perto do centro da cidade, a vida na Ocupação Steigleder é dura.
Situação, em 2019, de uma região da Ocupação Steigleder (Foto: ObservaSinos)
Quando ocuparam o espaço na margem norte do Rio do Sinos (o Centro da cidade fica na margem oposta), nem rua tinha, muito menos acesso à agua ou energia elétrica. Tudo foi feito pelos moradores, da forma como puderam. Até mesmo as casas são erguidas por eles, em geral com sobras de madeiras e outros materiais. E como se já não fosse o bastante, em São Leopoldo muitas dessas áreas estão em terrenos alagadiços e, quando chove ou é tempo de enchente, a água leva o pouco que se constrói.
É por isso que os moradores acabam se organizando na forma de coletivos, nos quais uma família acaba servindo de apoio a outra. “Bah, quando vem água, ela leva tudo, e depois vem os ratos por tudo. Daí a gente não tem nem onde guardar os alimentos que ganhamos”, recorda Jaque. Foi justamente num momento desses que se deu a aproximação entre Unisinos e essa comunidade da Steigleder.
Capas dos jornais Enfoque produzidos por alunos de jornalismo da Unisinos nos últimos semestres (Reprodução Issu AgexCom)
Além da divisão da área em pequenos lotes, os moradores haviam separado uma área para a sede da associação. Era uma pequena casinha mal ajambrada que servia de ponto de encontro para mobilizações, quase sempre em situações de emergência. Como a maioria das pessoas vive da reciclagem, a enchente não somente destrói o pouco que se tem, como leva embora a possibilidade de rendimentos.
Talvez o mais paradoxal quando se trata de pensar a vida na Ocupação Steigleder, desde o ponto de vista dos moradores, seja o fato de que aquilo que em um primeiro olhar parece ser fragilidade é a maior força destas pessoas: ter uns aos outros. Mas essa força se multiplica quando a sociedade, que por anos e décadas os ignorou, volta o olhar para a população e lhes dá uma chance de transformar a própria vida.
Reunião, em 2019, no local onde seria construído o galpão da Ocupação Steigleder (Foto: ObservaSinos)
“Há três anos a situação era bem difícil, o que, apesar dos apoios, continua difícil, mas agora com mais ajuda. Antes éramos sozinhos, mas a partir dos encontros com o Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM, depois com o pessoal da Unisinos e do IHU e a Rede Solidária as pessoas passaram a nos ouvir”, relata Jaque, que recorda ter ficado emocionada e feliz quando viu no IHU um cartaz que pedia apoio e doações à comunidade.
Cartaz lembrado por Jaque sobre doações à Ocupação Steigleder em 2019 (Foto: ObservaSinos)
Em 2018, havia 211 famílias na Ocupação Steigleder, mas hoje, embora tenha crescido o número de casas, não se sabe precisamente quantas famílias residem no local, pois a cartografia feita pela prefeitura ainda não foi divulgada. Depois de muita luta, a população conseguiu, por meio de negociações com órgãos públicos, que fossem instaladas quatro bicas de água potável na ocupação, de onde os moradores retiram para o consumo das famílias.
Chegada dos primeiros materiais de construção ao local (Foto: ObservaSinos)
Onde antes não havia nada, senão uma minúscula casa de madeira de demolição, hoje existe um galpão de mais de 200 metros quadrados e uma cozinha de alvenaria, que permitiriam a concretização de alguns projetos como o Sonhos e Sabores, em que moradoras da comunidade produzem pães e refeições, duas vezes por semana, para a comunidade, a partir de doações. O local também serve de abrigo para famílias desalojadas na época da cheia do Rio dos Sinos.
Construção do galpão (Foto: ObservaSinos)
“Os almoços são feitos duas vezes por semana e atendem em torno de 140 pessoas da comunidade. Os moradores que trabalham catando material no centro da cidade, quando pegam almoço no galpão, têm mais tempo para trabalhar porque a refeição fica pronta e já podem sair logo depois do meio dia para catar. Mas no momento esses almoços estão interrompidos por falta de doações, principalmente de proteína”, descreve Jaqueline.
Construção finalizada do galpão da Steigleder (Foto: ObservaSinos)
Quando, em 2019, a Unisinos passou a compartilhar vivências nessas comunidades, percebeu-se que aquelas famílias estavam em meio a um turbilhão de urgências. Por isso, partiu-se para buscar respostas na extensão daquelas vivências também em perspectiva com a aprendizagem da universidade. Não se trata de uma via de mão única, mas de transformações múltiplas e mútuas, em que muitas vidas são transformadas. As famílias das ocupações ganham com avanços que, mesmo que pequenos, são significativos na melhora na qualidade de vida. A universidade, por sua vez, cresce não só no fomento à solidariedade, mas por aprender junto com a realidade concreta de um mundo que é posto à margem da sociedade.
Hoje, muitas dessas conquistas, dessa união, já podem ser vistas em ações concretas, como, por exemplo, no cadastramento de famílias da diversas ocupações, dentre elas a Steigleder e a Justo. Há ainda as rodas de conversas, partilhas e apoios.
O galpão da Ocupação Steigleder tem se tornado uma espécie de centro irradiador de transformações para numerosas famílias. Embora erguido no coração da Steigleder, ele tem recebido famílias de diversas ocupações para refeições coletivas, reforço escolar e recreação das crianças. Além das refeições são produzidos pães cuja renda é revertida para as mulheres que trabalham no projeto Sonhos e Sabores.
Alunos, professores e profissionais da Unisinos visitam a Steigleder (Foto: ObservaSinos)
E tanto quanto esses pães crescem, cresce a força transformadora dessas mulheres. Antes quase sucumbidas à pobreza e à miséria, hoje se veem capazes de sonhar e ter esperança na vida. “Eu não sou da Steigleder, mas vou lá no galpão fazer os pães. É muito bom, me sinto parte da Sonhos e Sabores”, conta Célia, que vem da Ocupação Horta. Sonhos e Sabores é a marca que foi criada pelas mulheres com apoio de professores e estudantes da Unisinos de diversas áreas. Assim, enfrentando a insegurança alimentar, as chefes de famílias também investem em alternativas para geração de renda.
Quando se trata de olhar para o futuro, Jaqueline e seus vizinhos não abrem mão de sonhar. “A esperança tem que ser a última a morrer. Todos nós temos sonhos de progredir e de ir para a frente. O nosso principal sonho é ter o direito à área de terra onde moramos e não precisar sair daqui”, reflete Jaqueline.
Horta comunitária na Ocupação Justo (Foto: ObservaSinos)
A comida é realmente o que dá liga, une as ocupações. Além do projeto Sonhos e Sabores, há várias hortas coletivas. De lá, saem alimentos para os grandes almoços no galpão, para levar para casa e, às vezes, até para uma renda extra. Meni conta que a experiência da pandemia fragilizou demais as comunidades. “Mas isso tudo acabou fortalecendo os laços. Várias as áreas e cursos da Unisinos, ONG’s e coletivos somaram esforços nas ocupações. Foi difícil, está sendo. Mas estamos conseguindo atravessar tudo isso”, sintetiza.
Mesmo em meio a tantas dificuldades e desafios, viver a esperança na experiência das ocupações de São Leopoldo é um convite à reflexão. É como observa Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e é agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que recorda que nesse tempo de Advento somos "chamados a descobrir o segredo da Palavra e dos Sacramentos repetidos em diferentes estações da vida pessoal e coletiva". Numa conexão direita com a Liturgia, proposta pela Igreja nesse tempo, e a concretude da vida cotidiana, ele convida a olhar aos textos bíblicos que falam do deserto desde nossos próprios desertos. E não somente pessoais, mas também coletivos. "Deserto é também a física ausência da intervenção humana; é falta; é privação; é vazio: um vazio saudável que pode dar espaço ao Espírito; um vazio em que o ′e ′ e o ′nós′ têm cada vez menos palavras", aponta. (acesse o texto completo de Lazzarin, reproduzido na seção Breves do Facebook)
Assim, podemos pensar num esvaziar de nós mesmos e num preencher um espaço de todos. Esse, aliás, é um exercício que cabe a todo mundo e que é, particularmente, animado com a chegada do Natal. A todo instante damos e recebemos, o que faz mais importante que estendamos o olhar para ver aqueles que são invisíveis para boa parte da sociedade. A correria cotidiana, a falta de tempo e dinheiro, por vezes, nos faz pensar que não podemos ajudar. São muitos os que dizem que não sabem ou não têm o que dar. Mas, e se fizéssemos como na canção Little Drummer Boy? Todos podemos dar o que temos, por menor que possa parecer. Afinal, nem que seja batendo nosso tambor - “pa rum pum pum pum” - e mostrando aquilo e aqueles que os ricos e poderosos fazem questão de não enxergar.
Jaqueline faz um apelo para quem deseja ajudar os moradores da Steigleder. “A gente precisa de muita doação. Em 2018, havia mais ou menos 811 crianças, e esse número cresceu, mas muitas pessoas ficaram desempregas e pessoas que pegaram covid ficaram com problemas de saúde, então precisamos de doações não só para o almoço, mas também para o lanche das crianças”, relata.