19 Outubro 2021
"O espírito anarquista que presidiu o surgimento das criptomoedas permanece, pelo menos em uma parte de seus usuários. Mas isso significa que não há qualquer tipo regulamentação no sistema? Não. Não se pode imaginar uma instituição - idioma, moeda, mercado - sem um mínimo de organização vinculante; ou, para usar a fórmula consagrada pelas ciências sociais, nenhuma comunidade - por mais ectoplasmática que seja, como a das criptomoedas - sem sociedade", escreve Étienne Perrot, S.J., economista, em artigo publicado por il Fatto Quotidiano, 15-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A íntegra do artigo será publicada proximamente em 'Notícias do Dia' do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Desde o ano passado, vem se manifestando um novo interesse pelas criptomoedas e não diminuiu ao longo de 2021. Por quê? Essas moedas se desenvolvem, são melhor reguladas pelas autoridades públicas, ainda assustam os responsáveis políticos que, como contramedida, implementam regulamentações cada vez mais intrusivas. Eles também estão tentando lançar suas próprias criptomoedas, moedas digitais dos bancos centrais.
(...) A instalação das criptomoedas no panorama cultural envolve uma mudança antropológica, da qual gostaríamos de delinear aqui os contornos. Se nos livrarmos da concepção restritiva dos economistas que reduzem a moeda à sua função tripla (unidade de contagem, meio de troca e reserva de valor), então percebemos que a moeda desempenha o papel de um penhor. Um penhor é um objeto simbólico que memoriza uma dívida. O euro que tenho em minha mão ou na minha conta bancária é o sinal de um empenho por parte de todos aqueles que um dia terão de me pagar a contrapartida em forma de serviço, mercadoria ou outra moeda. Claro, isso não é um reconhecimento de dívida para com uma pessoa, uma empresa ou uma administração; além disso, esse penhor não tem prazo determinado. Isso não muda o fato de que esse empenho seja para mim a promessa recebida de uma comunidade que se compromete – é preciso que seja dito - a atender, quando chegar a hora, as minhas necessidades, da forma como as terei decidido. É por isso que os antropólogos falam da moeda como uma "dívida de vida".
A rigor, o dinheiro é um crédito à vista para uma comunidade de pagamentos. Crédito, porque é sinal de uma dívida. À vista, pois posso reclamar a contrapartida a qualquer momento. Em relação a uma comunidade, uma vez que posso recorrer a qualquer membro da comunidade, fornecedor de bens ou de serviços ou especulador. De pagamento, porque, ao transmitir esse penhor, me liberto de uma dívida pessoal sem por isso extinguir a dívida da comunidade. De fato, o pagamento em moeda é simplesmente a transmissão de um penhor para a comunidade, pois o fornecedor que recebe o meu pagamento adquire um penhor, sinal de uma dívida da comunidade para com ele. Além disso, ele aceita esse penhor em pagamento somente se estiver convencido de que, quando chegar a hora, a comunidade honrará sua dívida. Dívida de vida, portanto, porque o dinheiro mobiliza os bens e as capacidades da comunidade, ao serviço - e segundo as escolhas pessoais - de cada membro.
A antropologia subjacente à moeda, como reconhecimento da dívida de uma comunidade para com cada um, assenta-se, portanto, numa relação assimétrica, numa dependência. Mas apenas uma concepção errada de liberdade poderia ver uma alienação nessa dependência da comunidade de pagamento. Sem necessariamente buscar Spinoza para a justificativa da liberdade como soma dos condicionamentos aceitos, basta lembrar com toda a tradição cristã a natureza social e política do ser humano.
A dimensão política do ser humano parece desaparecer no uso das criptomoedas, pelo menos aquelas que não têm um curso legal. Os criadores das criptomoedas queriam subverter essa estrutura antropológica fundamental, mergulhando na corrente individualista radical da modernidade contemporânea. A criptografia eletrônica da qual nasceram as criptomoedas foi no começo, a partir dos anos 1980, o terreno dos cypherpunks (palavra composta dos termos ingleses cypher "criptografia" e punk: literalmente, os "anarquistas da criptografia"). Era o momento em que o sistema da Internet deixava entrever o perigo de um controle da vida por uma administração pública tentacular, da mesma forma que os regimes totalitários evocados pelo conhecido romance de George Orwell 1984.
A tecnologia usada pelas criptomoedas, a blockchain, ao remover os chamados "intermediários de confiança" (bancos ou plataformas de pagamento), levava assim ao extremo a tendência cultural do Do it yourself ("faça você mesmo"). Através da blockchain a instância política é desvalorizada, escapando às normas decretadas pelo coordenador central. O indivíduo adquire assim uma margem de liberdade. Um passo fundamental foi dado quando, no final dos anos 1990, foi descoberta uma maneira de substituir o intermediário de confiança por um controle multipolar distribuído na web. Porque nas transferências eletrônicas a maior ameaça ao sigilo é o roubo de identidade ou, pelo contrário, a sua divulgação, que resulta particularmente facilitada quando se acessa a base de dados central responsável pelas interconexões entre os participantes. O mesmo aconteceu com as contas ocultas em paraísos fiscais. Com a blockchain, não existe nenhuma uma base de dados central, nenhum intermediário que controla a identidade dos participantes e a legalidade da operação. O sucesso da transferência é garantido sem intervenção humana.
Por meio do uso de criptomoedas, a subjetividade permitida pelo penhor monetário é, portanto, levada ao ponto do individualismo. Essa subjetividade individualista, no entanto, não é desprovida de regras do jogo.
A autonomia individual de que se deliciam os apaixonados da ideologia moderna permanece condicionada. Nesse ponto antropológico, as criptomoedas diferem das moedas legais. Como as fichas dos cassinos ou as moedas locais, as cerca de 70 moedas locais, por exemplo, que circulam na França valem um euro. Da mesma forma, as unidades de conta nas associações que praticam a troca entre seus membros - esses sistemas locais de troca (Sel), como são chamados - pressupõem, além do conhecimento dos sujeitos da troca e de uma contabilidade precisa, um certo consenso sobre o valor dos serviços trocados. Em vez disso, no sistema das criptomoedas, a identidade dos detentores de direito permanece desconhecida, até que eles queiram converter suas criptomoedas em moedas legais, dólares, ienes, euros. É aqui que espreita a administração pública.
O espírito anarquista que presidiu o surgimento das criptomoedas permanece, pelo menos em uma parte de seus usuários. Mas isso significa que não há qualquer tipo regulamentação no sistema? Não. Não se pode imaginar uma instituição - idioma, moeda, mercado - sem um mínimo de organização vinculante; ou, para usar a fórmula consagrada pelas ciências sociais, nenhuma comunidade - por mais ectoplasmática que seja, como a das criptomoedas - sem sociedade.
Mesmo uma associação de pescadores de linha, onde cada membro participa ou se retira de acordo com seu próprio humor, é regida por algumas regras, procedimentos ou costumes que são impostos.
Nenhuma interação individual é possível, tanto para as criptomoedas como para qualquer comunidade, sem diretrizes que enquadrem e limitem as iniciativas de cada um.
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A face política das criptomoedas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU