31 Agosto 2021
Não foi por acaso. Um dia antes da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de adiar, pela segunda vez seguida, o julgamento do Marco Temporal, o vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) revelou que líderes do setor trabalhavam justamente para postergar a discussão. O tema mobiliza indígenas de todo o país, 6 mil deles reunidos em Brasília.
A reportagem é de Mariana Franco Ramos, publicada por De Olho nos Ruralistas, 27-08-2021.
Em entrevista ao site Notícias Agrícolas, porta-voz do agronegócio, o deputado federal Neri Geller (PP-MT) deixou claro que a prioridade da FPA é o avanço na Câmara do Projeto de Lei (PL) n°. 490/2007, que trata do mesmo tema — igualmente retirando direitos indígenas sobre seus territórios. Com 280 membros, a bancada ruralista, representada pela frente, é a maior e mais influente do Congresso.
“Precisamos fazer a lição de casa aqui no plenário”, disse. “A obrigação é o PL 490”, reforçou. O texto foi aprovado em 23 de junho pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCCJ) da Casa. Um dia antes, manifestantes do chamado “Levante pela Terra”, que protestavam contra a proposta, foram duramente reprimidos, como mostra o vídeo “O Marco da Violência“.
Vice-presidente da FPA busca articulação junto a Fux para decidir demarcações e comemora proximidade com Lira (Foto: Reprodução | Facebook)
Se tiver o aval da maioria dos deputados, o PL será encaminhado ao Senado. Para Geller, a aprovação antes do julgamento do STF garantiria “mais segurança jurídica”. Na mesma entrevista, o parlamentar falou que a FPA atua em várias vertentes, alinhada à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao presidente Jair Bolsonaro:
— Nós estamos muito firmes, eu, o Sergio Souza (MDB-PR), que é o presidente da FPA, toda diretoria da FPA, junto da ministra Tereza Cristina (Agricultura) e da Casa Civil, para que a gente dê essa consciência ao próprio presidente, ministro [Luiz] Fux”.
Neri Geller contou que a bancada tentava se reunir com o chefe do STF antes da votação, mas não confirmou se foi atendido. “Nós, a diretoria da FPA, pedimos uma agenda para tentar falar com o Fux daqui a pouco, até as quatro horas, antes desse assunto ir para o Pleno”. Na agenda oficial do ministro não há qualquer menção a um possível encontro entre ambos.
Em diversos momentos, o ruralista celebrou a proximidade da gestão Bolsonaro com o presidente da Câmara, o pecuarista Arthur Lira (PP-AL), que “tem compromisso com o setor” — como mostrará o terceiro vídeo da série De Olho no Congresso. “Condições políticas nós temos”, comemorou. O entrevistador, Aleksander Horta, respondeu: “Assim você deixa a gente mais tranquilo, viu, Neri?”
Ao VGN Notícias, do Mato Grosso, sua base eleitoral, Geller explicou que a estratégia de “segurar” o julgamento do Supremo, deixando a decisão para o Congresso, se deve a um temor de mudança futura de governo e da “volta da forma ideológica” de debater.
O político se mostrou estar “bem tranquilo” quanto a possíveis críticas e, sem citar provas, levantou a hipótese de haver fraudes em demarcações. “Nós não podemos ter demarcação da forma que está acontecendo, de forma aleatória, e muitas inclusive com laudos antropológicos falsificados”.
Geller e Lira, em encontro no MT;
aliança é trunfo da FPA
(Foto: Divulgação)
Nascido em Selbach, no Rio Grande do Sul, o ruralista de 52 anos já ocupou o cargo de ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) no governo de Dilma Rousseff, em 2014, e por duas ocasiões foi secretário de Política Agrícola da pasta, em 2013 e 2016.
Neri Geller tem como berço político um dos principais polos de soja do país, o município mato-grossense Lucas do Rio Verde, conhecido como a “capital da agroindústria”.
Entusiasta do Marco Temporal, o deputado já foi citado em investigações contra a invasão de terras públicas e fraude na regularização de terras destinadas à reforma agrária no estado. O assunto foi tema de reportagem do observatório. Na operação da Polícia Federal, batizada de Terra Prometida, foram expedidos 52 mandados de prisão. Entre os presos estavam Odair e Milton Geller, irmãos do parlamentar.
O político aparece no Mapa das Terras dos Parlamentares, projeto cartográfico do De Olho nos Ruralistas. Ele possui uma propriedade rural de 726 hectares em Diamantino (MT), onde o povo Paresi disputa parte do território, e uma fazenda em Sorriso (MT), local de conflito com os povos Kaiabi, Arapiaká e Munduruku.
Nas eleições de 2018, o ex-ministro declarou à Justiça Eleitoral R$ 9.018.296,15 em bens, montante dez vezes maior que o declarado doze anos antes, quando disputou uma vaga para a Câmara e perdeu. A fazenda em Diamantino aparece nas declarações desde 2006.
O Marco Temporal está na pauta do Supremo desde quarta-feira (25). Na primeira sessão, os ministros discutiram a constitucionalidade da lei que deu autonomia ao Banco Central. Nesta quinta-feira a Corte começou a julgar a tese, mas a reunião foi suspensa após a leitura do relatório inicial de Edson Fachin e só será retomada na próxima quarta-feira (01/09).
O que está em debate é a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde vivem os povos Guarani e Kaingang. Com status de “repercussão geral”, a decisão servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça. A expectativa é que ela seja usada como referência para processos, procedimentos administrativos e projetos legislativos no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.
Futuro da demarcação das terras indígenas no Brasil está nas mãos dos ministros do STF. (Foto: Matheus Veloso/Apib)
O Marco Temporal é defendido por ruralistas e setores interessados na exploração das TIs. Segundo esta interpretação, considerada inconstitucional pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), os indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, se não estivessem na terra, precisariam estar em disputa judicial ou em conflito material comprovado pela área na mesma data.
A tese é usada pelo governo e parte do Judiciário para justificar a paralisação das demarcações. As organizações indígenas a consideram injusta porque ela desconsidera as expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos membros de diferentes etnias antes de 1988. Além disso, ignora o fato de que, até então, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos.
Mais de 6 mil pessoas, de pelo menos 178 povos, estão na capital federal para lutar pela garantia de seus direitos originários, informa a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Apesar de pouco noticiada pela grande imprensa, a mobilização indígena contra o Marco Temporal é a maior desde a Constituinte.
O Acampamento Luta pela Vida foi instalado ao lado da Esplanada dos Ministérios. Além da tese em debate no STF, seus integrantes denunciam outros projetos anti-indígenas em trâmite no Congresso, bem como o agravamento das violências dentro e fora dos territórios tradicionais.
No site da Apib é possível se informar sobre os acontecimentos e contribuir com a manifestação.
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Ruralistas trabalharam para adiar julgamento do Marco Temporal, revela Neri Geller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU