26 Agosto 2021
"Nas quatro linhas, como constatamos, cabe o que tem havido de pior, mais retrógrado e obtuso na história política do Brasil. Cabe um personalismo senhorial e doentio, marca registrada dos famigerados currais eleitores, em que milícias próprias e bem armadas, controlam com rigor a vontade de cada subordinado. Daí a insistência pelo voto impresso: com ele, os senhores e seus capatazes poderão, sim, manipular os eleitores", escreve o Alfredo J. Gonçalves, cs, padre, vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes - SPM / São Paulo
Parafraseando Hamlet, um dos personagens consagrado do grande dramaturgo inglês, William Shakespeare, poderíamos dizer que há mais coisas entre as “quatro linhas” de Bolsonaro do que supõe nossa vã filosofia. Cabe nelas toda a série de ataques bizarros, gratuitos e intempestivos que o capitão tem perpetrado contra os demais poderes da república, visando de modo especial os juízes do STF e do TSE, para não falar dos parlamentares que compõem a CPI da pandemia. Cabem nelas o descaso e o deboche, bem como a indiferença diante da gravidade da Covid-19, a qual ceifou um número de vidas que se aproxima da casa das 600 mil. Cabe nelas o receituário indevido da cloroquina, e drogas da mesma família, sem eficácia comprovada no combate ao coronavírus, além do reiterado delito de não usar a proteção da máscara.
Mas cabe nelas algo mais grave: o negacionismo e a ideologia popular nacionalista de extrema-direita. Com essa postura e com a tentativa de instrumentalizar as forças armadas em seu favor, o presidente vem esgarçando e rasgando, dia-a-dia, a credibilidade naquilo que se convencionou chamar chamado de tecido social. Este último, com efeito, é costurado na base da confiança nas pessoas, nos contratos, nas associações, nos sindicatos, nos partidos políticos, nas instituições e nos movimentos e organizações em geral. Quando o chefe supremo da nação diz, por exemplo, que caso a PEC sobre o voto impresso seja derrotada na Câmara dos Deputados ele não voltará a tocar no assunto, e dias depois volta novamente ao bombardeio – a confiança cidadã passa a ser corroída a partir das próprias autoridades. Ora, esse é apenas um entre os muitos casos que poderiam ser citados. Quantas promessas de esfriar os ânimos, tentando substituir as ameaças pelo diálogo, foram sistematicamente ignoradas!
Romper a palavra dada, atentar contra a Constituição, fabricar e divulgar notícias falsas, difamar os opositores como se fossem inimigos, agir predominantemente em favor da família e/ou da corporação militar, governar para uma seita de seguidores fanáticos, intervir nos órgãos estatais para defesa própria ou dos aliados, desmontar as políticas públicas que favorecem a população de baixa renda, negligenciar os avanços da ciência, da tecnologia e do conhecimento, manter-se inerte diante do sucateamento do patrimônio cultural do país – tudo isso, repetido e multiplicado à exaustão, mina e enfraquece os alicerces da confiança. Pior ainda quando as bombas explodem nas mãos de quem foi eleito para garantir o bem-estar de todos os brasileiros, mas com um olhar atento, sensível e solidário para com os pobres, excluídos e descartáveis.
Nas quatro linhas, como constatamos, cabe o que tem havido de pior, mais retrógrado e obtuso na história política do Brasil. Cabe um personalismo senhorial e doentio, marca registrada dos famigerados currais eleitores, em que milícias próprias e bem armadas, controlam com rigor a vontade de cada subordinado. Daí a insistência pelo voto impresso: com ele, os senhores e seus capatazes poderão, sim, manipular os eleitores. Se estes últimos já temem desobedecer à força bruta dos milicianos, mesmo ocultos na urna eletrônica, que dizer quando souberem que serão cobrados através da contagem do voto impresso! A luta a ferro e fogo pela impressão dos votos consiste em um mecanismo de vigilância e controle, por parte dos remanescentes saudosistas do patrimonialismo e patriarcalismo impressos, eles também, na história brasileira obscurantista. Não seria a primeira vez que um avanço tecnológico é banido, para dar lugar às formas residuais de mandos e desmandos de tiranos e tiranias.
O tecido social se esgarça e se rasga. Os contratos se ignoram ou se rompem. A confiança se vê ameaçada. Os pontos de referência social, política e cultural têm telhado de vidro e pés de barro. Instalam-se com facilidade a crise, o caos, a barbárie. Sociedade líquida (Z. Bauman) ou gasosa (dizem outros). Quantas décadas serão necessárias para tecer e costurar novamente as relações essenciais, indispensáveis à convivência humana ou a uma cidadania viável?! Quando e como poderemos, enfim, desfrutar sem temor os progressos da democracia?!...
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O que cabe dentro das quatro linhas? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU