Frente a frente com um dos mais ativos intelectuais cristãos, que em seu último livro enfrenta as razões do desencanto do mundo com o cristianismo.
Reacender a chama da esperança e reavivar a fé um pouco embotada e domesticada: este é o convite que vem do último ensaio de Timothy Radcliffe intitulado Accendere l’immaginazione (Acender a imaginação, em tradução livre, Emi, p. 496, euro 31). Dominicano inglês, 75 anos, teólogo e biblista, professor da Ordem dos Frades Pregadores de 1992 a 2001, Radcliffe, como demonstra nesta entrevista, tem uma curiosidade intelectual destemida. E ele é apaixonado por romances e séries de TV, de Philip Roth a Cormac e Carthy até Friends e Killing Eve.
A entrevista é de Vittoria Prisciandaro, publicada por Jesus, julho-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
“A David Sanders, companheiro de noviciado, coirmão e velho amigo - falecido de Covid em março de 2020”: esta é a dedicatória de seu último livro. O que foi para você a época da pandemia?
David e eu entramos na ordem dos Dominicanos no mesmo dia e saímos de férias juntos por cinquenta anos. Portanto, a pandemia significou para mim, como para muitos, um momento de perda. É bom que eu compartilhe essa dor generalizada. Para muitos de nós, a pandemia foi frustrante, extremamente dolorosa: gostaríamos de estar perto das pessoas na sua doença e principalmente no momento da sua morte, mas é nosso dever manter a distância, para não alastrar o vírus. O lado positivo desse período é que descobrimos o "zoom" e a transmissão ao vivo e, portanto, alcançamos muitas pessoas com as quais não tínhamos contato antes. Há dez vezes mais pessoas assistindo à missa conosco em Oxford no YouTube do que antes! Portanto, minha experiência com a pandemia é a perda de velhos amigos e a criação de novos.
“O cristianismo no Ocidente”, escreve no seu último livro, “só poderá voltar a florescer se conseguirmos envolver a imaginação dos nossos contemporâneos”: por quê?
Para muitos, principalmente os jovens, o cristianismo é percebido não tanto como errado, mas simplesmente enfadonho! Devemos mostrar que Deus nos convida a embarcar na infinita aventura do amor. Um dos meus irmãos gostava de dizer: ‘Se você ama, pode ser ferido ou até morto. Se você não ama, você já está morto!’. Nossa sociedade tende a ser obcecada por segurança. Desencoraja o risco. Mas Jesus não chamou seus discípulos para terem segurança, mas para se entregar completamente. Se as pessoas virem a aventura da fé, podem rejeitá-la, mas não a verão como enfadonha!
Sempre costuma se dizer que a fé é transmitida na família. Mas para milhões de jovens a linguagem da fé não tem significado. Que tipo de comunicação os adultos podem fazer?
Os jovens esperam que as pessoas sejam autênticas e digam o que realmente acreditam. Portanto, se formos honestos sobre nossas crenças e dúvidas, nossas certezas e nossas demandas, podemos nos conectar. No coração da nossa fé há duas coisas de que todos os jovens precisam: a esperança e o amor. Eu já falei sobre amor, mas os jovens precisam urgentemente de esperança. O futuro é muito incerto e a catástrofe ecológica ameaça as novas gerações! Temos uma palavra de esperança para eles? Teilhard de Chardin dizia: ‘O futuro pertence àqueles que dão à próxima geração uma razão para ter esperança’. E nós? Minha esperança foi pessoalmente encorajada pelas experiências no Oriente Médio. Os cristãos na Síria, Iraque e Argélia me ensinaram muito sobre esperança!
Você viaja muito, conhece culturas e igrejas locais muito diferentes. Qual é a situação da Igreja no mundo hoje?
A Ordem Dominicana está presente em mais de cem países. Cada um desses países tem algo especial para ensinar a toda a Igreja. Perdoe-me se simplifico demais: muitas vezes na África vi uma capacidade de alegria, de perseverança e de oração de que todos precisamos! Fiquei impressionado com a resiliência das pessoas em tantos países africanos. Na América Latina, entendi mais profundamente o tema da justiça e da opção pelos pobres. Na Ásia, a Igreja é uma minoria em quase toda parte, exceto nas Filipinas, e só floresce quando aprende a dialogar e a estar atenta às outras religiões e aos que não creem. Todos esses dons devem ser compartilhados. Então, quando vou para um novo país, a primeira pergunta é: o que posso aprender aqui?
Dois males do nosso tempo, você escreve: "O secularismo e o fundamentalismo vêm do mesmo ventre": por quê? E que armas para os combater?
Adolfo Nicolás, ex-superior geral dos Jesuítas, falou de ‘globalização da superficialidade’. Os sms e as mensagens de Twitter tendem a simplificar demais tudo. O que leva a divisões muito simples entre ‘eles’ e ‘nós’. Essas são as raízes de tanto fundamentalismo e polarização, nacionalista e religiosa. Faltam as nuances e falta a poesia. Como pode ser possível qualquer fé ou sabedoria sem a poesia? Sem música, como podemos falar da nossa esperança pelo que está além das palavras?
Você afirma que qualquer artista e pessoa criativa pode ser útil e companheiro de estrada em nossa busca espiritual. Quais são as características desse caminho e quem são os companheiros de estrada?
Precisamos de companheiros de busca! Pessoas que não têm a pretensão de entender tudo, mas que são exploradores que podem nos ensinar e aprender conosco. Precisamos, como aliados, de pessoas que tentem compreender a complexa arte de ser humanos, de se apaixonar, de se tornar ridículos ou de fracassar e recomeçar. Eu gostei muito de uma série de televisão chamada Normal People. Não falava de religião e havia muito sexo, mas era fiel à experiência dos jovens que tentavam encontrar o seu caminho.
Entre os estereótipos que acompanham a imagem da vida do cristão está aquela da obediência a regras, laços e dogmas esmagadores e incompreensíveis. Qual é, em sua opinião, o tema da obediência na relação com Deus?
A palavra 'obediência' vem do latim ob-audiens, 'escutar profundamente'. Nossa obediência a Deus e ao outro nunca é submissão cega. É a atenção inteligente, através da qual procuramos compreender o nosso Deus que nos chama a caminhar para ele. As regras da ética cristã existem para nos educar para a liberdade e a amizade e não para nos limitar. Jesus nos chamou de seus amigos. A amizade é exigente e difícil, mas é o maior dom, uma participação na vida da Trindade. Nossa sociedade é atormentada por um terrível preconceito contra o dogma. Dogma é visto como um limitador do pensamento, assim como o ensinamento moral da Igreja é visto como um limitador do comportamento. Mas isso não é verdade! Os grandes dogmas da Igreja, especialmente aqueles do Credo, nos impelem no caminho sem fim da fé, nos impelem para além das respostas demasiado superficiais. Dizer que Jesus é divino e humano não é uma simples resposta a uma pergunta. Convida a uma aventura sem fim na qual devemos usar toda a nossa inteligência e imaginação!
O próximo Sínodo dos Bispos será sobre a sinodalidade. Que elementos você consideraria centrais no debate para repensar a própria forma da Igreja? O debate sobre o celibato e o diaconato feminino que está sendo realizado no Sínodo Alemão interessa apenas àquela Igreja?
A grande questão é esta: como os batizados podem fazer ouvir a sua voz nos debates sobre a vida futura e a missão da Igreja? Muitas pessoas, especialmente as mulheres, sentem que não estão sendo ouvidas e que suas opiniões não contam. Isso não ocorre apenas na Alemanha, mas em todo o mundo. Portanto, em cada país e cultura, precisamos discutir essas questões. É por isso que o Papa Francisco deseja que ocorram Sínodos locais. Mas há questões que afetam toda a Igreja, como a ordenação das mulheres ao diaconato ou o casamento dos padres. Somos todos um único Corpo em Cristo e, portanto, nenhum Sínodo local pode decidir essas questões sozinho, mais do que possa decidir sozinho o cânone da Bíblia ou a divindade de Cristo. É por isso que o Papa Francisco deseja que esses Sínodos locais conduzam a um Sínodo de toda a Igreja! O segredo do processo sinodal é saber qual autoridade pertence a cada um. São John Henry Newman, que se converteu ao catolicismo no século XIX, acreditava que existem diferentes tipos de autoridade na Igreja: tradição, razão e experiência, todas têm autoridade. Em um debate sábio, damos a cada pessoa a autoridade que possui, em vez de tomar apenas um voto. Por exemplo, quando se trata de questões científicas, eu não tenho autoridade!
Um dos temas que sempre retorna, mesmo no debate na Itália, é que precisamos repensar com coragem a forma da paróquia. O que você pensa sobre isso?
A missão da Igreja é como a respiração dos pulmões. Respiramos reunindo pessoas na comunidade. As paróquias ainda são comunidades locais importantes onde as pessoas podem descobrir uma casa local. Mas também respiramos para fora, e a Igreja nos envia em missão às pessoas que moram longe. As palavras finais da Eucaristia são ‘Ides!’ Nós somos enviados! Somos enviados para além do local e podemos usar todos os recursos da Internet para nos comunicarmos com pessoas que nunca encontraremos pessoalmente. Assim, respiramos dentro e reunimos as pessoas nas comunidades locais, respiramos fora e nos estendemos aos confins da terra.
A profecia da vida religiosa: o que se pergunta hoje aos religiosos em geral?
Deveríamos ser um pouco loucos. Nossos ancestrais eram loucos e foram pregar o evangelho na Ásia e nas Américas, muitas vezes morrendo antes de chegarem. Em nosso mundo cauteloso, não deveríamos ter medo de correr riscos, mesmo por nossas vidas. Os votos de pobreza, castidade e obediência deveriam nos libertar do medo.
Sobre os abusos sexuais, o cardeal alemão Reinhard Marx escreveu ao Papa: "Eu me demito, a Igreja chegou a um ponto morto". O Arcebispo de Munique reconhece como sua responsabilidade os erros cometidos na "formação" da Igreja Católica: "Eu também fracassei", escreve. O que esse gesto representa?
Tenho uma admiração enorme pelo cardeal Marx. Ele trabalhou muito para pôr um fim aos abusos sexuais contra os jovens. Não entendo por que ele renunciou e espero que o Papa não aceite sua renúncia. Talvez ele espere que sua oferta de demissão desperte a Igreja para o que ainda precisa ser feito? Não sei até que ponto a Igreja tenha respondido à crise dos abusos, mas suspeito que ainda não compartilhamos totalmente o sofrimento das vítimas. Precisamos sentir sua dor como nossa. Eles deveriam estar no centro de nossa Igreja. Mas ainda existe a tentação de proteger a reputação da Igreja como prioridade. Isso vale para todas as instituições, os governos, as escolas, os times de futebol, os escoteiros. Se tentarmos proteger nossa reputação às custas das vítimas, vamos perdê-la.
Em seu livro, você menciona muitos escritores, diretores, livros e séries de televisão, artistas de vários gêneros. Se fosse nomear as obras e os artistas que o marcaram, quais indicaria?
Quando eu era criança, aos oito anos, me deparei pela primeira vez os romances de Charles Dickens, e eles me abriram uma porta. Pela primeira vez, pude imaginar outro mundo, ver e amar pessoas que faziam coisas ruins e entender que eu também poderia fazê-las. No mundo da pintura, Rembrandt me influenciou muito. Ele viu a beleza das pessoas idosas, uma habilidade que admiro cada vez mais! Isso nos ajuda a ver que todos os rostos têm sua beleza. Um pintor contemporâneo que adoro é o dominicano coreano Kim En Joong, que faz pinturas abstratas maravilhosas, cheias de cor, embora minha mãe pensasse que se pareciam com minhas roupas depois de um café da manhã bagunçado!
O que você imagina para o amanhã?
Um mundo onde se redescobre o prazer de discutir com pessoas de quem discordamos!
Sonho com debates inteligentes em que se discute para aprender uns com os outros e não apenas para vencer!
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição