27 Mai 2021
“Tanto a origem da riqueza da elite como o seu comportamento são diferentes da classe capitalista que Marx conhecia”, escreve Branko Milanović, economista sérvio-americano e professor da Universidade da Cidade de Nova York, em artigo publicado por Letras Libres, 26-05-2021. A tradução é do Cepat.
Karl Marx está de volta no Ocidente. Após um tour du monde, em que passou de um filósofo alemão emigrado à cabeça pensante da social-democracia, para depois se tornar um pensador revolucionário global, sua influência retorna em algumas partes do mundo que estudou e onde viveu.
A atual crise do capitalismo, provocada inicialmente pelas manobras do setor financeiro (algo que não surpreenderia Marx) e depois exacerbada pelo aumento da desigualdade, a pandemia e uma crise climática que parece irresolúvel, fez com que as leituras de Marx se tornem mais relevantes do que foram para gerações passadas e suas ideias mais atrativas para os jovens.
Mas há algo de semelhante entre o capitalismo de Marx e o de hoje? Suas ideias podem ser relevantes agora, mais de um século depois de terem sido formuladas e em um período no qual a renda per capita se multiplicou por sete, e no caso dos Estados Unidos por oito?
As principais diferenças entre o mundo capitalista clássico do século XIX e o de hoje não estão apenas no fato de que os salários são mais altos (Marx não ficaria muito surpreso já que disse que os salários refletem as condições “histórico-morais” de cada país) ou de que o Estado de bem-estar é muito mais amplo. As principais diferenças estão na natureza da classe dirigente e no efeito nas classes médias dos países líderes globais.
O topo da distribuição de renda nas economias avançadas é formado por pessoas que têm altos ingressos de seu trabalho, mas também do capital. Isto não acontecia no passado. Os rentistas e capitalistas eram a classe dominante no capitalismo clássico e raramente tinham rendas que não fossem de suas propriedades. Alguns teriam considerado algo impensável ou até mesmo insultante ter que complementar sua renda com salários.
Isto mudou. Atualmente, dos 10% mais ricos dos estadunidenses, um terço deles está entre os mais ricos pela renda do capital e os mais ricos pela renda do trabalho. Há menos de 50 anos, essa porcentagem era inferior a um em cada cinco, antes, provavelmente menor (Berman e Milanović). Isto transforma o conflito de classe. Não existem mais apenas dois grupos, claramente diferenciados por seus níveis de renda e a origem dela, seja pelo trabalho ou a propriedade.
Além disso, em vez de se publicar livros sobre a classe ociosa (Thorstein Veblen, Nikolai Bukharin) e a elite avarenta (“enriquecer-se era uma atividade passiva para os abastados”, escreveu Stefan Zweig sobre os ricos europeus de antes da Primeira Guerra Mundial), hoje, temos algumas classes altas que podem ser reprovadas por trabalharem muito: “os stakhanovitas de hoje são o 1% mais rico”, conforme disse Daniel Markovits em The meritocracy trap.
Estes ricos trabalhadores, que herdam seu capital original ou o constroem através de poupanças ao longo de suas vidas de trabalho, que se casam entre si e que desempenham um papel cada vez mais importante na política, por meio das doações, são uma nova elite. Desejam transmitir seus privilégios a seus filhos, pagando-lhes a melhor educação. Seu sucesso pode ser comprovado com numerosos estudos que demonstram a redução da mobilidade da renda intergeracional. Por isso, tanto a origem da riqueza da elite como o seu comportamento são diferentes da classe capitalista que Marx conhecia.
A segunda grande diferença é internacional e tem a ver com a globalização. Em finais do século XIX, os salários reais no Reino Unido estavam aumentando. A explicação de Marx era que este crescimento era provocado pela globalização da grande hegemonia britânica, o período da Pax Britannica. A elite britânica não se importava em compartilhar com as classes baixas as migalhas de sua espoliação imperial, e usou o aumento dos padrões de vida como uma ferramenta para exigir complacência ou diretamente uma aceitação implícita da ordem existente.
Marx não pensaria que a elite estadunidense, que desempenha um papel semelhante hoje ao da elite britânica daquele momento, defenderia políticas semelhantes? Ficaria surpreso do contrário. A elite estadunidense, no entanto, permaneceu indiferente enquanto sua classe média diminuía por culpa da globalização, e seus salários se estagnavam.
Ao contrário da elite britânica, a estadunidense provavelmente não pensava que seu poder político pudesse ser questionado pela base. É impossível saber se pensava isto porque acreditava que poderia manipular o processo político ou porque pensava que os perdedores da globalização não seriam capazes de se organizar.
Estes elementos, e provavelmente muitos outros, desempenham um papel. O despertar veio dos protestos chamados populistas na França, Espanha, Reino Unido, Alemanha e também nos Estados Unidos, onde Trump conseguiu construir, talvez por acidente, uma coalizão de descontentes. Foi necessário um esforço especial das elites e uma pandemia global para recuperar o controle.
Estes dois desdobramentos mostram como o capitalismo de hoje evoluiu nas economias mais avançadas. São desenvolvimentos ambíguos em uma perspectiva política ou filosófica. Romper a distância de classe explícita e ter uma classe alta que não privilegia seus compatriotas poderiam ser vistos como avanços. Mas uma classe alta cuja posição não se vê afetada pelos movimentos no mercado de trabalho (porque pode se refugiar em seus ativos de capital), nem na bolsa (porque tem qualificações e renda do trabalho) e que está comprometida em transmitir seus privilégios, através das gerações, talvez não seja algo tão positivo.
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Marx na ‘Amerika’. Artigo de Branko Milanović - Instituto Humanitas Unisinos - IHU