28 Abril 2021
Se a sinodalidade deve ser um aspecto-chave do ser Igreja no futuro do catolicismo, isso significa que precisamos ter em mente que, em algum momento, nos próximos anos, haverá outro papa.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador da Igreja italiano e professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado em La Croix International, 27-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Há um caminho curto que é longo, e um caminho longo que é curto.”
Na terceira temporada da série "Shtisel", da Netflix, um eminente rabino ultraortodoxo que dirige uma yeshiva em Jerusalém oferece esse sábio conselho a um estudante famoso que está lidando com uma decisão de vida ou morte.
Os caminhos curtos tendem a se tornar atalhos que não levam a lugar nenhum, enquanto a sabedoria sugere que você reserve um tempo para tomar uma decisão.
“Um longo caminho que é curto”, de fato, é uma boa forma de explicar a virtude da sinodalidade, a maior aposta que o Papa Francisco fez pela Igreja Católica hoje.
Cinco anos e meio depois de ele ter proferido aquela que pode ser chamada de sua “carta magna” sobre a sinodalidade, no discurso à assembleia do Sínodo dos Bispos de 2015, o impulso persistente do papa em favor de uma Igreja sinodal está surtindo efeito.
Em diferentes áreas do mundo católico, eventos eclesiais de natureza sinodal estão se desenrolando ou sendo preparados.
Há o histórico Concílio Plenário da Austrália, que realizará seu primeiro encontro em outubro. E há o Caminho Sinodal já em andamento na Alemanha.
Estão sendo feitos preparativos para um sínodo nacional na Irlanda, e, depois de muita insistência do papa, a Igreja na Itália está finalmente começando os planos para o seu próprio sínodo.
Os editores da revista America, dirigida pelos jesuítas, acabam de advogar por um concílio plenário da Igreja Católica nos Estados Unidos.
No nível supranacional, os bispos latino-americanos lançaram a sua própria assembleia eclesial, a inédita “Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe”.
Esse movimento sinodal está se desenvolvendo em um momento de grande incerteza devido à pandemia do coronavírus. A sinodalidade, que significa que o povo da Igreja “caminha junto”, exige que as pessoas se reúnam em assembleias.
Algumas dessas assembleias (por exemplo, na Alemanha e na Austrália) foram adiadas ou postergadas, e é provável que o mesmo ocorra novamente em outros lugares.
E é possível que a próxima assembleia ordinária do Sínodo dos Bispos – prevista para outubro de 2022 e baseada no tema “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão” – também seja adiada.
Não é certo que os participantes de países pobres, onde o ritmo da vacinação é muito mais lento, poderão se reunir localmente para a fase de preparação ou que os seus representantes poderão viajar para Roma.
Pandemia à parte, adiar a assembleia sobre a sinodalidade poderia ser uma coisa boa. Significaria mais tempo para a preparação.
Até agora, a maior parte das discussões em torno da sinodalidade se concentrou em seus aspectos pastorais.
Mas um dossiê de dois artigos publicado pelos teólogos Serena Noceti, Rafael Luciani e Hervé Legrand na última edição da revista italiana Il Regno aponta que há dimensões teológicas e institucionais da sinodalidade que requerem atenção.
Um aspecto particular que terá de ser abordado é o papel do primado papal na sinodalidade – tanto em nível universal quanto em nível nacional/local.
Essa é uma questão-chave que terá consequências práticas importantes.
Em um de seus primeiros e mais importantes discursos sobre o modelo de liderança episcopal, em setembro de 2013, Francisco falou sobre o bispo nestes termos:
“Presença pastoral significa caminhar com o Povo de Deus: caminhar à frente, indicando o caminho, indicando a via; caminhar no meio, para fortalecê-los na unidade; caminhar atrás, para que ninguém fique para trás, mas, principalmente, para seguir o faro que o Povo de Deus tem para encontrar novas estradas.”
Qual é o papel da liderança episcopal no caminho sinodal junto ao Povo de Deus? Caminhar na frente, caminhar no meio ou caminhar atrás?
A partir do que vimos na assembleia do Sínodo dos Bispos para a região amazônica (outubro de 2019) e nas suas consequências (a exortação apostólica Querida Amazônia, de fevereiro de 2020), Francisco parece entender seu papel como o de árbitro da presença ou da ausência de discernimento genuíno em um evento sinodal.
Foi assim que ele expressou isso em uma nota publicada em setembro de 2020 pelo editor da revista La Civiltà Cattolica, Antonio Spadaro, SJ:
“Houve uma discussão [no Sínodo de 2019] (...) uma discussão rica (...) uma discussão bem fundamentada, mas nenhum discernimento, que é algo diferente de chegar a um bom e justificado consenso ou a maiorias relativas. [...] Devemos entender que o Sínodo é mais do que um Parlamento; e, neste caso específico, não podia fugir dessa dinâmica. Sobre esse assunto, ele foi um Parlamento rico, produtivo e até necessário; mas não mais do que isso. Para mim, isso foi decisivo no discernimento final, quando pensei em como fazer a Exortação [Querida Amazônia].”
Essa forma de avaliar a sinodalidade é mais típica do superior de uma comunidade religiosa que empreendeu um processo de discernimento do que a de um bispo.
Mas a Igreja Católica não é a Companhia de Jesus. O discernimento funciona, se é que funciona, em grupos espirituais muito rarefeitos. A maioria dos bispos não tem nenhuma experiência ou treinamento para isso.
O mesmo pode ser dito sobre o Povo de Deus, que supostamente deveria estar envolvido na sinodalidade.
É especialmente desde o fim dos anos 1990, graças também à encíclica Ut Unum Sint, de João Paulo II (1995), que começamos a falar sobre um novo papel para o papado na eclesiologia ecumênica articulada no Concílio Vaticano II (1962-1965).
Em um longo artigo publicado em 2000 na revista Cristianesimo nella Storia, Peter Hünermann, professor emérito de Teologia na Universidade de Tübingen, formulou o conceito de papado como um “notarius publicus”.
A função constitutiva do primado, nesse sentido, seria a tarefa de facilitar e manter a unidade da fé católica e da comunhão da Igreja.
O artigo de Hünermann era um comentário sobre o motu proprio Ad tuendam fidem, de João Paulo II (1998). O teólogo alemão oferecia uma perspectiva histórica sobre o desenvolvimento do primado papal, tentando entender as profundas mudanças na função do primado para a Igreja na modernidade.
Ele observava que o paradigma do Vaticano I do primado papal – como um paradigma de jurisdição, em termos legais rígidos – havia sido superado não apenas pela perspectiva ecumênica do catolicismo, mas também pela autocompreensão do papado como “ação comunicativa”.
Especialmente depois de Vaticano II, o primado papal realmente não diz respeito (ou não mais) à definição da fé. Pelo contrário, trata-se de testemunhar e confirmar a fé do povo, expressada no consenso dos seus representantes e à luz da Escritura e da Tradição.
Hünermann escreveu o artigo bem antes de o papado abraçar a sinodalidade, mas ainda é relevante para o debate atual.
É claro que as abordagens à questão do papel do primado dependem do tipo de sinodalidade que temos em mente.
A sinodalidade é uma forma de renovar o estilo pastoral da Igreja no sistema institucional e teológico existente?
Ou é um momento para abordar questões, como o papel da mulher na Igreja e no ministério, e abrir a Igreja à possibilidade de desenvolvimentos institucionais e teológicos ?
Essa é uma questão essencial que terá de ser esclarecida em algum momento, mais cedo ou mais tarde.
O primado surgiu nos últimos anos como uma questão ecumênica, especialmente quando se olha para o papel que ele desempenha nas rixas intraortodoxas entre Constantinopla e Moscou. Lembremos as tensões que vieram à tona em janeiro de 2019, quando o Patriarca Ecumênico Bartolomeu concedeu a autocefalia à Igreja Ortodoxa na Ucrânia.
O fantasma de um papel universal semelhante ao do papa para o patriarca de Constantinopla assombra algumas Igrejas ortodoxas orientais, mas a natureza complicada do primado papal não deveria ser ignorada tão rapidamente pelos católicos.
Agora ela tende a ser rejeitada como irrelevante por causa do estilo amistoso e gentil do Papa Francisco.
Mas, se a sinodalidade deve ser um aspecto-chave do ser Igreja no futuro do catolicismo, isso significa que precisamos ter em mente que, em algum momento, nos próximos anos, haverá outro papa.
E ele poderia ter uma forma e um estilo de interpretar a sinodalidade muito diferentes dos do atual bispo de Roma.
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Sinodalidade e primado papal: questões sobre a Igreja hoje e o próximo papa. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU