16 Abril 2021
Uma década depois da assinatura de acordos para banir o desmatamento da cadeia do gado, a pecuária segue sendo a maior responsável pelo desaparecimento da floresta na Amazônia.
A reportagem é de Naira Hofmeister, publicada por Mongabay, 15-04-2021.
Pesquisa revela disparidades entre frigoríficos, produtores e fiscalização que dificultam cumprimento dos acordos e permitem persistência de ilegalidades.
Dos 160 frigoríficos da Amazônia, somente 100 assinaram algum pacto. Auditorias que checam conformidade de compras são feitas apenas em 56 unidades.
Entre criadores, diferença é sócio-econômica: os grandes têm recursos para ampliar produtividade sem abrir novas áreas de pasto e conhecimento de tecnologias disponíveis. Já os pequenos sequer contam com registro formal de terras e são invisíveis para a fiscalização.
De um lado, frigoríficos monitorados e auditados para cumprirem critérios de compras com zero desmatamento; de outro, abatedouros irregulares que não ligam para as regras. Fazendas com área e recursos para ampliar a produtividade sem derrubar árvores convivem com pequenas propriedades que não têm sequer registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – e para as quais a única opção de maximizar lucros é abrir novas áreas de pasto na selva. Do mesmo modo, criadores antenados e com laços sociais que reforçam a decisão de produzir gado sem desmatar concorrem com fazendeiros isolados, sem acesso a estradas e longe de qualquer estímulo para atender ao compromisso ambiental.
A desigualdade, chaga brasileira que está por trás de estatísticas preocupantes do país, também explica o desmatamento na Amazônia – ou, pelo menos, ilustra a dificuldade de se fazer cumprir a política de desmatamento zero imposta a frigoríficos em 2009 pelo Ministério Público Federal por meio de um acordo setorial chamado Compromisso Público da Pecuária (CPP).
“Uma década depois, a implantação dos acordos da cadeia da carne ainda é incompleta e as dúvidas sobre como diminuir o papel da pecuária no desmatamento permanecem”, observam as quatro autoras de um estudo publicado em setembro de 2020 no periódico Tropical Conservation Science.
Não é novidade que parte dos compromissos incluídos nos pactos ficaram pelo caminho nessa década. O Greenpeace abandonou a mesa do CPP em 2017 ao identificar a falta de apetite das empresas em cumprir a meta do desmatamento zero. Em 2019, o procurador federal Daniel Azeredo assegurou que, apesar das auditorias do MPF terem concluído que mais de 90% das compras dos frigoríficos cumpriam parâmetros mínimos exigidos, nenhuma companhia operante na Amazônia poderia “dizer que não tem gado vindo de desmatamento em sua atividade produtiva”.
No ano passado, foi a vez de os maiores processadores de proteína animal do Brasil, JBS e Marfrig, admitirem publicamente que falharam. Eles conseguiram implementar um monitoramento rigoroso sobre seus fornecedores diretos, mas a fiscalização não avançou para os elos anteriores da cadeia – um problema que adquire grandes dimensões em um setor em que um animal pode passar por uma dezena de fazendas antes daquela que finalmente vai mandá-lo para o abate.
Mas o levantamento que originou o artigo, liderado pela engenheira agrônoma brasileira Ritaumaria Pereira, oferece uma novidade nesse panorama já conhecido: o testemunho de 131 criadores de gado e gerentes de sete frigoríficos da região sudeste do Pará, que falaram sem rodeios sobre problemas e demandas do setor. “Pesquiso a cadeia da carne desde 2005, e pela primeira vez consegui entrar em todos frigoríficos; ninguém bateu a porta na minha cara, todos queriam falar. Naquele momento, estavam muito abertos”, comemora Pereira.
O trabalho abrangeu dez municípios do sudeste do Pará, uma região entre São Félix do Xingu e Marabá onde estão concentrados 30% do rebanho bovino do Estado e 10% de todas as cabeças de gado da Amazônia. O Pará é o pioneiro na assinatura de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) entre frigoríficos e o MPF, um instrumento que se expandiu na última década para quase todos os estados da Amazônia Legal – embora com diferenças significativas de efetividade entre eles.
A pesquisa foi realizada entre os anos de 2013 e 2014, mas as autoras assinalam que os dados “descrevem desafios estruturais que continuam a ser enfrentados pelos fazendeiros”, assim como estratégias que eles “continuam a usar para evitar o cumprimento dos acordos”.
Cinco estados possuem TACs firmados por frigoríficos; área pesquisada reúne 10% do rebanho do bioma.
Contando com a colaboração dos entrevistados, as pesquisadoras ouviram depoimentos “francos sobre como é fácil evitar as exigências” dos acordos enganando a fiscalização e promovendo a chamada “lavagem de gado” – troca de animais de uma fazenda irregular para outra legalizada – ou simplesmente vendendo para frigoríficos que não fazem parte dos pactos firmados por MPF e Greenpeace. A prática é tão comum que a promotoria do Mato Grosso precisou enquadrar nos seus TACs plantas de abate no vizinho Tocantins, onde o MPF ainda não atua com o mesmo rigor, segundo Ritaumaria Pereira.
Um criador admitiu à pesquisadora que “muitos animais deixam o Pará sem a Guia de Trânsito Animal para serem lavados em outros estados. Os municípios do sudoeste enviam gado para o Mato Grosso, e os do sul fornecem para Tocantins e Goiás”.
Roraima e Amapá não tem nenhum frigorífico sob monitoramento do MPF, embora o Compromisso Público da Pecuária seja aplicado a todo o território da Amazônia, mas apenas para as três maiores indústrias: JBS, Minerva e Marfrig.
Dados do projeto Boi na Linha – uma parceria da ONG Imaflora com o MPF para facilitar o acompanhamento dos resultados dos TACs – mostram essa disparidade. Em 2016, foram mapeadas 160 plantas frigoríficas na Amazônia, mas até hoje apenas 100 assinaram o compromisso de exigir conformidade ambiental de seus fornecedores.
Pouco mais de 60% das plantas de abate na região são monitoradas pelo Ministério Público Federal
Dessas, somente 56 são alvo regular de auditorias que checam a conformidade dos abates com o firmado nos pactos setoriais. Isso quer dizer que há frigoríficos que são cobrados publicamente em maior grau que outros – e ainda que há uma quantidade significativa de empresas que sequer estão no raio de atenção das autoridades. “Quando colocamos no mapa, vemos que é uma concorrência muito desleal. Dez anos após o lançamento dos acordos, deveríamos ter todos os frigoríficos alinhados”, aponta Pereira.
Apenas 56 dos 100 frigoríficos monitorados pelo MPF se submetem à checagem de conformidade.
As empresas signatárias dos acordos precisam criar sistemas internos de monitoramento de suas compras e podem responder na Justiça se houver problemas. “Mas o frigorífico que não assinou acordo nenhum paga a mesma coisa pelo gado do produtor, o que incentiva esse criador a não buscar se adequar aos parâmetros do desmatamento zero”, lamenta a pesquisadora.
A diversidade de perfis dos produtores é outro entrave para a efetividade dos acordos de desmatamento zero na Amazônia. Na pesquisa de Ritaumaria Pereira, ela encontrou propriedades que variavam de 29 hectares a 57 mil hectares – uma diferença que reflete as oportunidades que esses criadores terão em seus negócios.
Os fornecedores indiretos, que estão fora do radar de monitoramento implementado até agora, possuem fazendas menores e são o elo mais frágil da cadeia. Quase 70% não têm registro oficial no Cadastro Ambiental Rural – uma formalidade autodeclaratória que é, digamos assim, o ponto zero da política agrária do país. “Fornecedores indiretos disseram que não se registraram porque vendem apenas bezerros ou animais para a engorda em fazendas de intermediários, e essas ações não exigiam que eles tivessem CAR”, assinalam as pesquisadoras.
Sem um número de CAR, o fornecedor se torna invisível para as autoridades de fiscalização, mas também perde qualquer oportunidade de estímulo produtivo, como acesso a crédito ou iniciativas de fomento – torna-se quase impossível modificar seu status socioeconômico.
Segundo a pesquisa, fazendas com acesso a tecnologia e a informações sobre as melhores práticas agrícolas tinham produtividade sete vezes superior a outras onde esse conhecimento e acesso não estava disponível. Por isso, 76% dos entrevistados queriam investir na recuperação de pastagens, mas esbarravam no alto custo e no difícil acesso à tecnologia: enquanto investir em técnicas de melhoramento de pastagem de um hectare custava em média US$ 752 em 2009, derrubar essa mesma área de floresta podia ser feito por pouco mais de US$ 400.
Todos os que conseguiram dar esse pasto eram fornecedores diretos na amostra de Pereira. “O pequeno não tem essa condição, até porque ele não tem terra mesmo para fazer lavoura ou melhorar o pasto rotando áreas. E aí ele fica refém da escassez, de um sistema de baixa produtividade”, lamenta Pereira.
O que é, sim, padrão entre grandes e pequenos, diretos e indiretos é a ausência de cobertura florestal original. Mais de 95% dos entrevistados admitiu manter uma área de Reserva Legal menor do que a exigida pela lei. Nas fazendas pesquisadas, a floresta remanescente não chegava a 20% da área – um flagrante desrespeito ao Código Florestal Brasileiro, que determina a preservação de 80% da cobertura vegetal no bioma Amazônia.
Área média das propriedades é de 2.423 ha. Lei brasileira prevê reserva legal na Amazônia com 80% de área de florestas preservadas.
Por isso quando, no ano passado, os grandes frigoríficos anunciaram novas metas para que toda sua cadeia esteja adequada à política de desmatamento zero na Amazônia, houve uma mistura de frustração e reconhecimento. Os planos são adequar gradativamente fornecedores indiretos no período entre 2025 e 2030. “Os grandes frigoríficos têm mostrado que vão fazer investimentos, é uma luz no fim do túnel. O que é difícil de aceitar é que talvez demore ainda muito tempo: mais dez anos, é isso mesmo?”, se insurge Ritaumaria Pereira, cobrando avanços mais velozes e em direções variadas para que o desmatamento zero possa finalmente ser uma realidade.
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Desigualdades da cadeia da carne comprometem política de desmatamento zero na Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU