15 Abril 2021
O 17 de abril de 1996 estará para sempre marcado em nossa história e memória como um dia de luto e luta camponesa, relembrado pelos movimentos populares camponeses do mundo. O episódio, que ficou conhecido mundialmente como o Massacre de Eldorado do Carajás, foi uma das ações mais violentas já vistas, praticada por um Estado brasileiro contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais, e até hoje é lembrado em encontros e atividades que discutem a questão agrária e a Reforma Agrária Popular no Brasil durante o “Abril vermelho”.
Enterro dos trabalhadores Sem Terra vítimas do massacre em 1996, na Curva do S, no Pará. Pesquisa de imagens Arquivo e Memória MST. Foto: J.R. Ripper
No Brasil, a luta pela terra resiste à impunidade e às violências históricas, como o Massacre de Eldorado do Carajás, em que 21 trabalhadores Sem Terra foram assassinados pela Polícia Militar do estado do Pará. Desde 1996, o país passou por diferentes governos, mas nenhuma tragédia se compara à barbárie que ganha coro nos discursos de Jair Bolsonaro de incitação à violência.
“O dia 17 de abril se transformou no Dia Internacional da luta dos camponeses e das camponesas. Ao longo dos anos, fomos organizando os trabalhadores para fazer ocupações de latifúndios nesta data e pressionar o governo, através de seus órgãos responsáveis, pela implementação da Reforma Agrária e para avançar nas políticas voltadas ao fortalecimento do campo e da agricultura camponesa” relata Ayala Ferreira, da Direção Nacional do MST, pelo Coletivo Nacional de Direitos Humanos do MST e militante no Pará.
Ayala relembra o Massacre de Eldorado do Carajás, que ganhou as manchetes no mundo, pela brutalidade da ação militar e alerta para o risco da fome atingir o campo, por falta de políticas do governo federal à agricultura camponesa e familiar.
Ayala Ferreira. Foto: Arquivo MST
A entrevista é de Fernanda Alcântara, publicada por Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, 12-04-2021.
Neste mês o MST relembra o “Abril Vermelho”, em memória aos 21 trabalhadores que foram assassinados em Eldorado do Carajás (PA). Quais ensinamentos essa dor que começou a 25 anos nos traz hoje?
O 17 de Abril marca a chacina de 21 trabalhadores rurais Sem Terra, a mutilação de outros 69, que ocorreu numa tentativa do governo do estado da época, Almir Gabriel, em desobstruir uma rodovia no sudeste do Pará que estava sendo ocupada pelos trabalhadores, em busca de avançar no processo de negociação de desapropriação da fazenda Macaxeira, e para avançar na Reforma Agrária Popular aqui da região. A resposta dada pelo governo foi de interromper o processo de negociação e mandar a força da Polícia Militar do estado para desobstruir a rodovia, o que acabou levando lamentavelmente à morte daqueles trabalhadores e trabalhadoras. Desde aquele dia até hoje muitos sentimentos passam pelos trabalhadores(as) Sem Terra e por quem luta pela Reforma Agrária Popular no Brasil. Mas se é possível dizer que houve ensinamentos, eu destacaria três aspectos que marcaram profundamente as nossas vidas;
O primeiro é de que esse massacre foi utilizado no emprego de uma violência extrema, uma violência que foi televisionada, e por essa razão o Brasil e o mundo souberam o que ocorreu naquele final de tarde de 17 de abril. Quando falamos em violência extrema, estamos dizendo que muitas pessoas foram mortas, muitas pessoas ficaram mutiladas, e as circunstâncias em que isso aconteceu revela o caráter perverso e intencional de matar trabalhadores Sem Terra, dado pelo governo do estado do Pará. Pelo menos dez dos mortos no massacre foram executados já rendidos e, inclusive, foram executados com os instrumentos de trabalho que portavam durante a manifestação. Tivemos pessoas que foram dilaceradas com foice, com facão; outros companheiros tinham marcas de balas do tórax para cima, ou seja, indicando execução. Estas circunstâncias revelam que havia uma intenção de matar, custe o que custar, e esse seria um primeiro aspecto que faz a gente refletir.
Outro aspecto diz respeito ao próprio papel do Governo, ou do estado como um todo, em assumir uma postura de não-mediação de não-negociação. O massacre revelou que o Estado está do lado do latifúndio, que não tem interesse em implementar a Reforma Agrária mesmo estando prevista na Constituição Brasileira. É o Estado que alimenta o aprofundamento e a ampliação dos conflitos no campo.
Essa negação concreta das políticas públicas de Reforma Agrária é o terceiro e último aspecto que acho importante tratar: essas violências. Não a violência em si do massacre de Eldorado do Carajás, mas outras violências, que vieram em decorrência, alimentada pela prática da impunidade.
No Abril Vermelho, o MST busca organizar mobilizações massivas. Entretanto, este é o segundo ano que as ações são feitas à distância, por causa da pandemia. Como está sendo a organização desta jornada em tempos tão difíceis?
Ao longo dos anos foram várias as práticas de contestação, reivindicação e implementação da Reforma Agrária. Agora que estamos num contexto de pandemia o MST tomou uma decisão muito importante de defesa da vida, e uma das formas de defender a vida é manter o distanciamento social e incorporar práticas sanitárias, como o uso da máscara e do álcool em gel no processo de higienização e de isolamento social. O movimento assumiu essa postura porque acredita que a vida deve vir em primeiro lugar. Garantindo a vida nós temos possibilidade de garantir a superação de tantos outros problemas que estão impostos nesse contexto da pandemia.
Em função disso, a nossa jornada de 2021 será marcada por formas muito criativas de atuação. É impossível deixar de rememorar o dia 17 de abril por tudo isso que ele representa, então vamos realizar atividades nos territórios, assentamentos e acampamentos espalhados por todo o país, no âmbito da articulação com movimentos populares urbanos e rurais. Vamos realizar ações ocupando o que nós chamamos das redes, até então espaços virtuais, como um espaço de articulação, de fortalecimento da mística e do encontro de pessoas que acreditam em um projeto de Reforma Agrária; que acreditam em um projeto de desenvolvimento do campo, com a democratização da terra e a implementação de outras práticas para além do agronegócio.
A nossa jornada está marcada para ocorrer de 17 a 21 de Abril, e eu chamaria a atenção para três atividades. A primeira tem a ver com a realização do 15º Acampamento Nacional da Juventude Sem Terra Oziel Alves Pereira. Há uma vasta programação direcionada para a juventude, para rememorar o massacre e a resistência dos trabalhadores e reafirmar esse compromisso de continuidade da luta. A outra ação é o ato político virtual, que acontecerá no dia 17 de abril às 10h. Estaremos ocupando as redes em um ato virtual, também de caráter internacional, para cumprir essa tarefa inédita de fazer a memória, reafirmar a vida e denunciar a total paralisação da Reforma Agrária no contexto do governo Bolsonaro. E no dia 21 de abril vamos realizar as nossas ações vinculadas à campanha de plantio de árvores e produção de alimentos saudáveis. A ideia é que a gente realize nos nossos territórios e em outros espaços esse plantio de árvores, tomando evidentemente todos os cuidados necessários para cuidar da vida e evitar a proliferação e o avanço da Covid-19.
Nós vamos, no dia 18 de abril, em todo o país, realizar essas ações de doação de alimentos. Foram essas as ações pensadas na demarcação simbólica, ocupando as redes virtuais, mas também com ações concretas, como a doação de alimentos. Nós vamos marcar esse 17 de abril de 2021.
Você acredita que a pandemia pode mudar, de alguma maneira, como as pessoas enxergam as relações com o campo?
Essas ações buscam fortalecer o que nós acreditamos ser importante em um contexto de crise do capital e num contexto de pandemia. O modelo hegemônico no campo brasileiro, que é o agronegócio, não serve para resolver os problemas concretos do povo brasileiro, e isso passa inclusive pelo acesso a um preço justo aos alimentos. É o esforço que temos feito de que, se a gente quiser pensar num projeto de desenvolvimento nacional em que os trabalhadores e as trabalhadoras estejam incluídos, é necessário se estabelecer um conjunto de reformas no nosso país.
Pensar essas reformas significa pensar um projeto de desenvolvimento para o campo que passe pela democratização do acesso à terra, hoje extremamente concentrada no país. Uma vez estando na mão dos camponeses e das camponesas, é preciso criar condições de apoio para que esses trabalhadores e trabalhadoras possam produzir comida e não mercadoria. No agronegócio, o alimento é mercadoria, é commodity que deve cumprir a tarefa de alimentar o mercado internacional. Eu acredito profundamente que o grande esforço nesse contexto de pandemia é mostrar para a sociedade brasileira que é necessário tê-los como aliados e avançar na implementação de uma Reforma Agrária Popular, produzir alimentos para suprir as necessidades de quem está no campo e de quem está na cidade, trabalhando e tentando reproduzir a sua existência. Acredito no nosso esforço de denunciar esse modelo do agronegócio e reafirmar a Reforma Agrária, a agricultura familiar como um modelo de desenvolvimento, que pode sim contribuir com a sociedade como um todo.
Doar alimentos, além de um gesto de solidariedade com quem está em situação mais vulnerável, é também uma forma de dizer que a Reforma Agrária pode produzir alimentos, pode baratear o custo do preço desses alimentos, e facilitar o acesso daqueles que necessitam se alimentar todos os dias com comida diversa e, sobretudo, saudável, sem o uso de venenos, como a prática implementada pelo agronegócio. Essa é uma possibilidade concreta de expressar para sociedade que o campo tem outras formas de resistência, que vão além da lógica do agronegócio.
O Brasil é um dos países com os maiores índices de concentração de terras do mundo e a desigualdade do campo só tem piorado, desde o golpe de 2016. Hoje, quais são os desafios mais urgentes colocados pela conjuntura na luta pela terra no país?
De 2016 para cá, o nosso país passou por profundas e drásticas transformações ocasionadas por essa reformulação da classe dominante, que impôs o impeachment da presidenta Dilma e retomou com muita força uma agenda neoliberal, agora na figura do atual presidente Jair Bolsonaro. Percebemos que o Estado, que deveria assumir um papel de mediação, assumiu um lado, e o lado do agronegócio. [Bolsonaro] colocou que os camponeses, do MST, o movimento sindical, as comunidades tradicionais como indígenas e quilombolas, são inimigos que representam o atraso. Então, um dos nossos desafios é nos manter vivos e inteiros diante de um governo que assumidamente cumpre os interesses do agronegócio, do latifúndio, e tem feito um conjunto de ações para desconstruir tudo aquilo que nós fomos conquistando. Percebemos que tem ocorrido uma flexibilização total da agenda ambiental e fundiária do país, para favorecer a grilagem o desmatamento e a violência contra os povos do campo.
Temos visto a negação por parte do governo de implementar políticas públicas voltadas para os camponeses e para os povos tradicionais do país. Mesmo no contexto da pandemia, em que nós apresentamos um plano de emergência que foi o PL Assis de Carvalho para impulsionar a produção de alimentos na agricultura familiar, esse governo simplesmente se negou a aprovar e sancionar o projeto. [O PL] ia contribuir decisivamente para a situação de vulnerabilidade dos sujeitos que vivem nas cidades, mas a negação dessa política pública para o desenvolvimento do campo, a partir da Reforma Agrária e do reconhecimento dos territórios tradicionais ampliou os desafios.
25 anos depois, o que mudou no processo de condenação dos responsáveis pelo assassinato dos 21 trabalhadores em Eldorado dos Carajás (PA)?
Os processos que se estabeleceram após o Massacre de Eldorado do Carajás nessa luta jurídica e política duraram exatamente dez anos. Entre os julgamentos, cancelamento de sentenças e retomadas de novos julgamentos. São quase 20 mil páginas do processo que marcou a história do Poder Judiciário brasileiro pelo número de pessoas que vieram ao banco dos réus. Então, 155 policiais militares estiveram envolvidos naquele massacre.
O fato é que os julgamentos sofreram aquilo que chamamos de uma construção deliberada da impunidade. Não foi UM momento, foram vários momentos que contribuíram para se instituir a impunidade e a absolvição de todos os executores e mandantes do Massacre de Eldorado do Carajás, como a desconstrução do cenário de massacre; a retirada dos corpos feito pelos próprios policiais que horas antes tinham matado os trabalhadores e as trabalhadoras; a tentativa de tirar a responsabilidade do governador, do secretário de Segurança Pública, que foram os mandantes dessa ação desastrosa, no dia 17 de abril, entre outros. Essa articulação política com o Poder Judiciário tirou do processo o [Governador do Pará] Almir Gabriel e o secretário de Segurança Pública, Paulo Sette Câmara, e o julgamento também absolveu os 143 policiais envolvidos. Houve também a absolvição por parte da mídia, ao absolver os dois comandantes da operação, o coronel Mário Colares Pantoja e o major José Maria Oliveira.
Somente num segundo julgamento se estabeleceu a condenação dos dois comandantes, o coronel e o major foram condenados à pena máxima, inclusive por terem coordenado a ação, mas se mantiveram a decisão de absolver os policiais militares e de não incluir no processo o então governador Gabriel o secretário de Segurança Pública. Após a condenação, tanto o coronel quanto o major tiveram o direito de recorrer da decisão em liberdade. Ficaram anos nesse processo, até que, em 2004, a decisão do Superior Tribunal foi de manter a condenação dos dois e absolver os policiais. Eles tiveram que ir para a cadeia, ficaram pouco tempo, recorreram novamente e conseguiram uma decisão de ficar em casa, de cumprir prisão domiciliar.
Atualmente o processo está aberto nessas condições. No ano passado, em função da Covid-19 o coronel Mário Colares Pantoja morreu, e em anos anteriores, tanto o secretário de Segurança Pública quanto o ex-governador Almir Gabriel também vieram a falecer.
Nós acabamos denunciando aos organismos internacionais esse comportamento do Poder Judiciário para beneficiar quem ordena e quem assassina trabalhadores no campo. Esperamos que essas injustiças, sobre outras bases, em poder dos organismos internacionais, possam nos ajudar a fazer essa tão sonhada justiça, em memória dos trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra.
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Eldorado do Carajás, 25 anos de impunidade: entrevista com Ayala Ferreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU