01 Março 2021
"O fio de confiança tecido mira as instituições. Que façam os criminosos que atentaram contra a fé pública responderem na Justiça. Que sejam punidos, pois, os brasileiros, vítimas desses atos, estão espalhados em cada cidade, em cada comunidade, nos hospitais, nas portas fechadas ao atendimento e, na última cena, nos cemitérios. Os vivos pedem socorro", escreve Ivânia Vieira, jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em Comunicação, articulista no jornal A Crítica de Manaus, co-fundadora do Fórum de Mulheres Afroameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas).
“O que é que pode justificar, nesse momento, que o Brasil não tenha as vacinas disponíveis para a sua população. Isso é injustificável. (…) A não ser a absoluta incompetência diplomática do Brasil, que não permite que cada um dos senhores, suas famílias e aqueles que vocês amam estejam amanhã ou nos próximos meses, de acordo com o cronograma apresentado, recebendo a única solução que há para uma doença como a Covid-19”
Margareth Dalcomo, pesquisadora da Fiocruz, ganhadora do Prêmio São Sebastião de 2021
A confiança, constituída com enorme carga de subjetividade, é um dos mecanismos de relevância na constituição das relações socioinstitucionais. Carrega em si força extraordinária. A noção de confiança está sendo dissolvida no coração de milhares de brasileiros a partir da série de desinformações oficiais sobre a execução do plano (?) nacional de vacinação contra a Covid-19. Perversamente, a Presidência da República e o órgão responsável pela ação, o Ministério da Saúde, atuam na construção de pontes para ampliar a passagem da incerteza, da decepção e da banalização da angústia da população quanto à adoção de calendário real das etapas de vacinação.
A tática do uso das frases de efeito reproduzidas em elevada escala nas diferentes plataformas de comunicações produz e mantém a polarização das condutas. Os apoiadores do governo fazem a proliferação dos cards que se espalham feito vírus letal nas infovias e nas peças promocionais expostas nas ruas das cidades; os opositores correm para contra-atacar. Enquanto no palco da vida sob ameaça a população, confundida e agredida, quer resposta direta e simples: qual é, de fato, o calendário brasileiro de vacinação? O que vale nesse calendário?
Nos Estados e municípios – estes últimos o lugar concreto onde as pessoas vivem - a estratégia da desinformação está em alto uso. Datas de vacinação, anunciadas pelas autoridades públicas em eventos de intensa visibilidade, são recebidas pelos moradores com dosagem de confiança para, em seguida, serem desfeitos, sem pedido de desculpa pública. Ao mesmo tempo, peças publicitárias dos feitos desses governos permanecem em circulação intensa produzindo uma espécie de ilha de fantasia. É antítese que fere fundo o corpo e tripudia dos milhares de doentes e dos familiares dos milhares de mortos. As entrevistas concedidas por governadores, prefeitos e secretários de saúde são cenas grotescas da impafia político-administrativa. Não oferecem resposta esclarecedora. Confundem e seguem na grande atrapalhada governamental.
A troca de remessas de vacinas do Amazonas para o Amapá, tornada pública pela mídia na quarta-feira (24), é mais um ato inscrito no enredo do descaso oficial. O Amazonas deveria receber, do Ministério da Saúde, 78 mil doses da vacina contra a Covid-19. A carga, por erros do ministério, teve outro destino, o Amapá. O Amazonas recebeu 2 mil lotes do imunizante. O Estado tem aproximadamente 313 mil casos registrados e 10.7 mil mortos pelo novo coronavirus. O erro, admitido em nota pelo MS, foi corrigido na madrugada de quinta-feira (25) e reforça a necessidade vigilância.
Em Manaus, o cadastramento online de pessoas com idade entre 60 e 69 anos para a primeira dose da vacina passou a ser o assunto para minimizar/desviar efeitos do não cumprimento do calendário anunciado (envolvendo faixa etária mais ampla, de 50 a 69 anos) para iniciar em 22 de fevereiro. Na sexta-feira, no sábado e no domingo, filhos, netos, sobrinhos, amigos, ainda se mobilizavam para levar a um posto de vacinação na segunda-feira (22) as pessoas que lhes são importantes e que querem ver vacinadas. Desconheciam o cancelamento e, após tomarem conhecimento, confiavam que, cadastrados, os idosos começariam a ser chamados no dia seguinte (23). É irresponsabilidade.
Não há vacina. É fato. Por que o Brasil está nessa situação? Por que a cada dia uma cidade brasileira interrompe a vacinação? A resposta deve ser transparente.
Estamos diante de um crime contra a fé pública. Um dos mais hediondos crimes dos últimos tempos na história desse país. O fio que tece a confiança corta com corte de navalha a esperança de brasileiros de diferentes idades, implica em criar ambiente favorável a mais adoecimentos e mais mortes por Covid-19 e pela agonia prolongada por ação governamental continua e repleta de escárnio.
A confiança rompida gera consequências que, por vezes, ganham o corpo de enxurrada que se espalha, destrói, leva o que encontra pela frente.
O fio de confiança tecido mira as instituições. Que façam os criminosos que atentaram contra a fé pública responderem na Justiça. Que sejam punidos, pois, os brasileiros, vítimas desses atos, estão espalhados em cada cidade, em cada comunidade, nos hospitais, nas portas fechadas ao atendimento e, na última cena, nos cemitérios. Os vivos pedem socorro.
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A gota d’água e a última dose de confiança. Artigo de Ivânia Vieira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU