19 Fevereiro 2021
“Não restam dúvidas. Jesus suporta o erro. O que Ele não suporta é o sofrimento. E é o que vai decidir nossa sorte no juízo final: o que fizemos ou deixamos de fazer com os que sofrem (Mt 25, 31-46). Para Jesus é mais importante a ‘humanidade’ do que a ‘religiosidade’. E isso é o que não entra na teologia e na cabeça dos teólogos”, escreve o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado por Religión Digital, 16-02-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Uma das coisas que a pandemia deixou mais explícita é que uma notável maioria da sociedade se interessa mais com a “diversão” do que com a “crença”. Quando o povo diz que, devido ao vírus, ficamos sem Natal, sem Festa de Reis, sem Quaresma, sem Semana Santa etc. o que menos importa à maioria do povo é recordar como Jesus nasceu, como morreu em sua Paixão e sua Cruz, etc. O que importa à maioria dos cidadãos é que ficamos sem viagem, sem praia, sem festa. Ou seja, o que interessa é a “diversão”, não precisamente a “devoção”. O que é perfeitamente compreensível. Porque são milhares e milhares de cidadãos que vivem do turismo, hotéis, agências de viagens... em um país, como é o caso da Espanha, a economia se destrói. E com a economia, nos destruímos todos.
O que quero dizer com isto? Que deformamos a fé. De fato, para a grande maioria do povo, a fé é autêntica quando se vive como a correta relação com Deus. A que se traduz na submissão ortodoxa dos crentes aos que ensina e manda a autoridade hierárquica da Igreja. Isto é o que ensinam os livros de teologia e o que explicam os catecismos. Algo que se levou tão a sério, que por isto os hereges foram condenados, torturados e até queimados vivos em praça pública. Para isso se criou a Inquisição.
Porém, neste assunto, há que se andar com cuidado. Porque, se nos atentarmos ao que relatam os Evangelhos, a fé não é sempre a correta relação com o Deus verdadeiro, mas a correta relação com a saúde humana.
O maior elogio, que fez Jesus, da fé, não foi o de um crente no Deus verdadeiro, mas o de um militar romano, que tinha suas crenças, porém sofria porque um servidor seu estava morrendo (Mt 8, 5-13; Lc 7, 1-10). E a “grandeza da fé” não foi atribuída a um discípulo seu, mas a uma mulher cananeia, que era pagã, porém queria muito uma filha sua que sofria (Mt 15, 21-28; Mc 7, 24-30). Como também resulta estranho que o único leproso curado, que mereceu o elogio de sua fé, não foi nenhum dos ortodoxos judeus, que se foram ao templo, mas sim um herege samaritano, que teve a atenção de agradecer sua cura (Lc 17, 11-19).
Porém, mais eloquente que os evangelhos sinópticos é o evangelho de João. Sobretudo quando afirma que Jesus apropriou-se do nome de Deus que, quando o mesmo Deus disse a Moisés na sarça ardente: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel” (Ex 3, 7-8). E quando Moisés perguntou a Deus: “Qual é o teu nome?” (Ex 3, 13), Deus lhe respondeu “Eu sou” (Ex 3, 14). Uma resposta desconcertante. Porque é uma definição que tem sujeito e verbo, mas não tem predicado. O nome de Deus não se pode “objetivar” em um conceito. Porque isso é reduzir o Deus transcendente a um mero objeto imanente. Ou seja, isso seria converter o “Absolutamente-outro” em uma “coisa”, o conceito que eu tenho em minha cabeça.
Agora, este misterioso nome, “eu sou”, é o que se apropria Jesus em seus enfrentamentos com os líderes do judaísmo: “Se não crês que eu sou, morrereis em vossos pecados” (Jo 8, 24). Com ligeiras variantes, Jesus se apropriou do “eu sou” constantemente. Até chegar a dizer: “O Pai e eu somos um” (Jo 10, 30). Jesus se identifica com Deus. Com o Deus que viu o sofrimento dos oprimidos. E veio a este mundo nos libertar.
Não restam dúvidas. Jesus suporta o erro. O que Ele não suporta é o sofrimento. E é o que vai decidir nossa sorte no juízo final: o que fizemos ou deixamos de fazer com os que sofrem (Mt 25, 31-46). Para Jesus é mais importante a “humanidade” que a “religiosidade”. E isso é o que não entra na teologia e na cabeça dos teólogos.
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“Jesus suporta o erro. O que Ele não suporta é o sofrimento”. Artigo de José M. Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU