09 Fevereiro 2021
“Elejamos unir o poder dos mercados com a autoridade dos ideais universais. Elejamos reconciliar as forças criativas da empresa privada com as necessidades dos menos favorecidos”. A filósofa Adela Cortina (Valência, 73 anos) se emociona ao recordar estas palavras de Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU. Ele as pronunciou há mais de vinte anos, mas Cortina considera que nunca foram tão atuais.
A professora de Ética e diretora da Fundação Étnor, uma das mentes que mais agudamente reflete sobre as repercussões sociais das decisões das empresas, considera que a pandemia oferece uma oportunidade única: impulsionar uma autêntica governança global que não dependa dos interesses de alguns países e corporações. Isto ajudaria na recuperação econômica e a recuperar a confiança nas instituições democráticas.
A entrevista é de Carlo Manuel Sánchez, publicada por XL Semanal, 06-02-2021. A tradução é do Cepat.
Havíamos visto a luz com as vacinas, mas a terceira onda volta a obscurecer o panorama. Quando acabará este pesadelo?
Saberemos que a pandemia acabou quando os avós voltarem a levar os netos para o colégio.
Então, isso seria um sintoma de normalidade. No momento, é difícil imaginar como será esse novo mundo pós-pandemia...
Haverá um mundo pós-esta pandemia, mas continuará existindo patógenos e precisamos aprender a nos preparar. Todos os países devem ter um mínimo de reservas estratégicas para enfrentar estas situações. Não podemos depender do exterior.
Estamos diante do início do fim da globalização?
Não acredito nisso. É preciso melhor alguns aspectos para gerar mais igualdade e ajudar os mais vulneráveis. Mas a globalização nos permite estar em qualquer lugar do planeta em tempo real graças à conectividade. Isto permitiu que, durante a pandemia, continuassem as aulas, as reuniões de trabalho...
O mundo teria congelado se não fosse global. Fechar fronteiras só se justifica em uma situação de emergência como esta. Mas os inconvenientes da globalização não se solucionam voltando a um nacionalismo pacato. Os problemas da globalização vêm de quem a governa.
E quem a governa?
Agora, são algumas grandes corporações que dirigem a globalização. Empresas poderosas que só buscam o seu próprio ganho. Por isso, é preciso trabalhar para que haja uma governança global.
Aí estão a ONU, a OMS...
A ONU é um bom organismo, mas são poucos países que tomam as decisões e alguns têm direito a veto. É preciso dar um passo além. Refiro-me fazer com que sejam globais de verdade, com todas as consequências. Que não sejam as nações que mandem nelas, mas que tenham autonomia.
É todo um salto mental...
Mas existem pessoas trabalhando nisso. É o futuro. Um mundo global precisa de uma governança global. Não que algumas nações decidam acima de outras.
No entanto, também vemos uma tendência muito forte no sentido oposto, rumo ao que se chamou de ‘nacionalismo estratégico’. O fechamento de fronteiras e até mesmo o ‘brexit’ são dois exemplos. Não avalia que muitos optarão pela independência frente à interdependência?
O nacionalismo estratégico não opta pela independência. Há uma confusão aí. O que aborda é que cada país tenha algumas reservas para não depender de outros. Em especial, da China; ou da Índia, que é o maior fornecedor de medicamentos genéricos do mundo, e que no início da pandemia decidiu restringir as exportações de uma dezena de princípios ativos de medicamentos, entre eles, o paracetamol. Mas isso não é nacionalismo, é necessidade de sobrevivência. E é uma atitude legítima, de prudência.
E o nacionalismo, então?
O que me preocupa é o que subjaz no slogan “América primeiro” (ou “Espanha primeiro”). Isso é um retrocesso.
Dizem que nas crises sempre surgem oportunidades. Enxerga alguma?
Temos uma oportunidade de relançar a Espanha vazia. Alguns, fugindo da peste, como aconteceu no Decameron, de Boccaccio, foram para o interior e decidiram ficar e trabalhar lá. Se a Espanha vazia vai se enchendo de gente, ganhará mais atenção.
Dentro das cidades, são os bairros com menos recursos que estão levando o pior golpe, tanto sanitário como econômico...
Não sei se seremos capazes de construir uma sociedade sem aporofobia, sem fobia ao pobre. O ser humano, quase por instinto, tenta se relacionar somente com quem vai lhe trazer algum benefício e deixa de lado quem vai lhe supor problemas.
Superamos os dois milhões de mortos no mundo. A maioria, idosos. Enquanto isso, no Vale do Silício, pesquisam para ampliar a longevidade para além dos limites biológicos. Algo não se encaixa...
A pandemia deveria ser uma cura de humildade. Mas no Vale do Silício conseguem uma quantidade de dinheiro impressionante vendendo que o envelhecimento é uma doença que é possível tratar e que a imortalidade é a meta. Quando aprenderemos que a fragilidade e a vulnerabilidade são parte substancial do ser humano? Faremos melhor se deixarmos de falar em vencer a morte e cuidarmos melhor da vida.
Considera que a lacuna geracional entre os idosos e muitos jovens aumentou?
Infelizmente, acredito que vimos alguma gerontofobia, fobia a idosos. E começou com a desescalada, realizada por grupos de idade. Os jovens não podiam se misturar com os maiores de 65. Isso vai criando uma certa mentalidade.
A mentalidade de que os idosos são um estorvo?
É o que os fascismos e os comunismos sempre disseram. O apreço ao jovem acima de tudo. Os idosos estão sobrando. Sua obrigação é se afastar e desaparecer... O pior é que muita gente se sentiu muito aliviada quando viu que a maioria dos afetados pelo vírus desenvolve sintomas leves, exceto os idosos e os grupos de risco.
Por outro lado, as relações intergeracionais são muito importantes porque aprendemos uns com os outros. E esquecemos que na Espanha os netos são criados pelos avós, pois a conciliação familiar é difícil. E que na crise de 2008 foi a aposentadoria dos avós que sustentou as famílias.
No dilema entre saúde e economia, o que deve pesar mais?
Na vida não há dilemas, mas problemas. Um dilema significa que é preciso escolher entre duas soluções possíveis: a saúde ou a economia. Não, note, não é preciso escolher entre duas coisas. É preciso buscar ver, entre duas opções, um caminho para conservar o melhor de ambas. É preciso conservar a vida e é preciso desenvolver uma boa economia.
E entre segurança e liberdade?
Outro falso dilema. A segurança e a liberdade são indispensáveis. E compatíveis. Como pode uma população ser livre se não está segura? Por outro lado, uma sociedade que busca somente a segurança, e para isso se entrega ao servilismo, é uma sociedade suicida.
Alguns regimes totalitários se gabam de sua gestão da pandemia.
Dá a impressão de que a China enfrentou melhor o problema. No entanto, é uma ideia falsa. Porque em um sistema totalitário, não há informação confiável. Nos países democráticos, mais ou menos, vamos tendo informação das coisas que acontecem. E as pessoas que se sentem prejudicadas podem protestar. Da China só vemos o que o regime quer ensinar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Os problemas da globalização vêm de quem a governa”. Entrevista com Adela Cortina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU