20 Setembro 2012
"Entre um roubo de veículo e o desvio de dinheiro público, as  estatísticas são sempre devastadoras a demonstrar que apenas o primeiro  caso é alvo de intervenção penal", aponta o professor de Direito.
 
Confira a entrevista. 
 
 O inimigo expresso na teoria do Direito Penal do Inimigo é representado na “perseguição sistemática de indivíduos jovens, negros e pobres na sociedade brasileira”, diz Moysés Pinto Neto (foto) à IHU On-Line. A teoria, aponta, pode ser comprovada empiricamente pelos dados do Departamento de Execução Penal – Depen, do Ministério da Justiça. “Mais de 80% da população carcerária sequer tem o ensino fundamental completo, e não há mais que 2000  presos, em um universo de quase 500.000, com superior completo.  Certamente nisso não ocorre porque bacharéis não cometem delitos, mas  porque não é sobre eles que recai o estigma de inimigo e perigoso”.
 
 Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Moysés Pinto Neto menciona  que, apesar das críticas, a perspectiva criminológica marxista  “permanece com um ponto inabalável: o sistema penal funciona punindo a  classe miserável, e os setores mais ricos da população são praticamente  imunes a ele”. 
 
 Para o pesquisador, o sistema penal é “estruturalmente seletivo” e atua  baseado em “metarregras não escritas”, por isso “entre a programação  normativa e o mundo real existe um verdadeiro abismo pelo qual se  infiltra a exceção”. Autor de O rosto do Inimigo - Um convite à desconstrução do Direito Penal do Inimigo (Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011), Neto aponta a “vida” como  “principal alternativa ao sistema penal”, e a compreende como a “esfera  qualificada das relações cuja riqueza não pode ser esgotada por meio dos  tipos jurídicos”.
 
 Moysés Pinto Neto é graduado em Ciências Jurídicas pela  Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciências  Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul -  PUCRS, e doutorando em Filosofia nessa mesma instituição. Leciona no  curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra Canoas). 
 
 Confira a entrevista.
 
 IHU On-Line – Qual é a teoria do Direito Penal do Inimigo? Quais as  origens deste tratamento “inimigo” por parte do direito penal com  relação a quem comete um crime? 
 
 Moysés Pinto Neto (foto) – A teoria do Direito Penal do Inimigo foi desenvolvida explicitamente pelo
 penalista Günther Jakobs em 1985, em sentido crítico, entendendo o  Direito Penal do Inimigo como algo indesejável, e depois retomada em  1999 de modo legitimador, como espécie de “menor dano” diante das  possíveis confusões com o Direito Penal do cidadão. Em brevíssima  síntese, trata-se de diferenciar as iniciativas repressivas que o  Estado destina aos cidadãos, tratados como portadores de direitos e  garantias fundamentais, de um lado, e aos inimigos, vistos como “perigo à comunidade” e que, portanto, devem ser alvo de medidas que, ignorando limites  jurídicos, chegam até a guerra. Como se percebe, a ideia não é  totalmente nova nem deixa de estar presente tanto no imaginário fascista  do senso comum como na programação real de funcionamento do aparelho  punitivo dos Estados; Jakobs apenas realiza uma tentativa de  elaboração teórico-jurídica dessa estrutura por meio da sua teoria  funcional-sistêmica do direito penal. 
 
 Quanto às origens, é um longo percurso, cuja genealogia foi desenvolvida, entre outros, pelo penalista Eugenio Raúl Zaffaroni no seu trabalho intitulado “O inimigo no Direito Penal”.  O ponto de partida, contudo, é sempre incerto e provavelmente de  impossível explicitação exata. Essa temática não foi propriamente objeto  da minha pesquisa. Em vez disso, procurei explicitar quais eram os  pilares estruturais que fundamentariam a elaboração de Jakobs para  sobre eles fazer intervir a desconstrução. Nesse sentido, as três  ideias às quais remetia a argumentação de Jakobs eram sempre “a ordem, a  representação e a autoconservação”. Primeiro, a exigência de que é  necessário manter a ordem e o Estado é esse fiador contra o inimigo que a  perturba. Segundo, de que nossa capacidade representacional torna  possível diferenciar cidadãos e inimigos. Terceiro, de que as pessoas,  ao fim e ao cabo, estão interessadas apenas em preservar seu próprio  corpo diante do perigo que o inimigo representa. Busquei desenvolver o  contraponto a cada um desses postulados confrontando o que então chamei  da “lógica biopolítica” do inimigo.
 
 IHU On-Line – Qual é o estereótipo do “inimigo” da sociedade em  nossos dias? Quem seriam os “elementos perigosos” que ameaçam sua  segurança?
 
 Moysés Pinto Neto – Desenvolvi a resposta a essa questão no tópico em que trato da “representação”, isto é, na crença de Jakobs de  que é possível, por meio da nossa capacidade representacional,  esgotarmos a totalidade do outro, procedendo então a classificação  inimigo/cidadão. A tradução dessa questão filosófica no âmbito  criminológico se dá a partir da ideia de estigma, que é uma representação social negativa que cai sobre o indivíduo e absorve a totalidade do seu Eu nesse  aspecto particular. Hoje há numerosas provas empíricas – cito algumas  delas – que demonstram existir uma perseguição sistemática de indivíduos  jovens, negros e pobres na sociedade brasileira.
 
 Por exemplo, cito uma pesquisa de Sérgio Adorno que mostra que, embora a  população de São Paulo tivesse uma proporção de 72,1% de brancos e  24,6% de negros, a proporção de réus negros condenados era de 68,8%  contra 54,4% dos brancos pelo mesmo tipo de crime. Da mesma forma a questão da pobreza: se tomarmos os dados fornecidos anualmente pelo Departamento de Execução Penal – Depen,  do Ministério da Justiça, podemos verificar que mais de 80% da  população carcerária sequer tem o ensino fundamental completo, e não há  mais que 2000 presos, em um universo de quase 500.000, com superior  completo. Certamente nisso não ocorre porque bacharéis não cometem  delitos, mas porque não é sobre eles que recai o estigma de inimigo e  perigoso. Sabemos perfeitamente desde a Criminologia Crítica que os  alvos costumeiros da justiça penal não são a totalidade dos delinquentes  brasileiros, mas aqueles sobre os quais o controle seletivo do sistema  penal se dirige por diversas razões.
 
 IHU On-Line – Em que sentido o direito penal do inimigo é um produto da modernidade?
 
 Moysés Pinto Neto – Sobre esse ponto, há uma grande controvérsia,  mas eu diria que as manobras repressivas higienizadoras são parte da  obsessão classificatória e da homogeneização da modernidade. Apesar de a  referência estar indevidamente banalizada, o certo é que, enquanto  experiência-limite de um tempo, a “Shoah” é o evento mais representativo  dessa tendência, pois não teria se realizado como realizou sem que  houvesse por trás toda uma lógica administrativa e técnica capaz de  promover o total extermínio dos seres humanos, alvos da sua intervenção.  As descrições que Hannah Arendt faz de Adolf Eichmann e seus comparsas são exemplares nesse sentido: não se trata de bárbaros  selvagens, mas de indivíduos de certo refino cuja frieza moral combina  perfeitamente com a eficiência burocrática a executar suas operações.  Por outro lado, em um sentido talvez mais radical do que o texto  desenvolve, diria que é no espaço da definição de quem é cidadão que,  por reflexo, se constitui o inimigo. Jakobs utiliza argumentos  contratualistas – citando Kant, Hobbes, Rousseau e Fichte – para  legitimar a ideia de que aqueles que se opõem ao contrato social devem  ser tratados fora das regras reconhecidas no pacto. Portanto, é no  espaço que marca a ficção do contrato social que podem surgir aqueles  que estão dele excluídos, numa relação de “captura fora” pela qual  estes, embora rejeitados pelo pacto, permanecem sujeitos ao poder  soberano em toda sua violência.
 
 IHU On-Line – Dentro da concepção de desconstrução na teoria de Levinas e  Derrida, como é possível propor uma desconstrução do Direito Penal do  Inimigo? O que fundamenta tal desconstrução?
 
 Moysés Pinto Neto – A desconstrução foi tratada como intervenção que  fez uso dos conceitos de Jakobs até “fazê-los transbordar”. Isso  significou, e aqui o papel de Levinas foi também decisivo no texto,  apresentar a alteridade que ultrapassa o conceito, como seu suplemento  irredutível cuja detenção integral é impossível. A alteridade é também a experiência do “outro-concreto” que está sendo alvo da classificação como inimigo, em sua concretude  que interpela eticamente para além da relação teórica entre o jurista e a  realidade. Assim, para além da dimensão teórica da coerência  argumentativa, há um outro que “sofre” exigindo resposta no âmbito  prático. Enquanto fazemos a comparação entre a realidade do Presídio Central de Porto Alegre e as regras da Lei de Execuções Penais, existe uma demanda real, de  pessoas reais, exigindo uma resposta. Por isso a operação que reduz a  alteridade do outro em mera representação do inimigo é, por si mesma,  pura violência: ela elimina a concretude qualitativa e despedaça-a em um  rótulo, tornando o outro concreto apenas uma peça classificada do  tabuleiro do Estado. A exigência de “pura ordem”, por exemplo, pode ser  apenas o repúdio violento da diferença, entendendo como perigoso todo  aquele que perturba o “status quo”. Ora, nada garante que essa ordem que  se impõe seja justa. Sabemos mais uma vez pela experiência-limite do  nazismo que a “ordem pela ordem” – resumida na expressão “apenas cumpro  ordens” – é a lógica da violência mais extrema, uma vez que neutraliza a  própria experiência traumática da violência reduzindo-a a um  encaminhamento burocrático.
 
 IHU On-Line – Que medidas podem ser consideradas alternativas ao sistema  normativo (legalmente e culturalmente) tais como estão dispostos hoje?
 
 Moysés Pinto Neto – A principal alternativa ao sistema penal é  simplesmente a “vida”, isto é, a esfera qualificada das relações cuja  riqueza não pode ser esgotada por meio dos tipos jurídicos. A etiqueta  da criminalização é uma operação que aniquila a complexidade da  experiência humana reduzindo-a a soluções prontas e estáticas, sem tomar  em consideração, a uma só vez, tanto a particularidade do caso como a totalidade das relações sociais.  Existem conhecidas alternativas intra e extrajurídicas ao sistema  punitivo, tomando as últimas como aquelas que, embora próximas ao  Direito, tentam de certa forma escapar à sua lógica (penso, por exemplo,  em alguns discursos e práticas que se produzem acerca da justiça  restaurativa). No entanto, algumas vezes são pouco radicais por não  confrontar a violência estrutural que permeia as relações sociais  brasileiras e funciona como mola propulsora das situações particulares  de violência que apresentam os possíveis candidatos a “inimigo”.
 
 O Direito Penal do Inimigo é um agudíssimo ponto-limite: lugar onde a  experiência das relações se deteriorou a tal ponto que se cogita a  eliminação física do outro em nome de uma autoconservação não reflexiva a  petrificar as relações que deram origem ao conflito. Paradoxalmente,  tudo que ela faz é agravar o mal que quer combater. Se chegamos a esse  ponto, é porque a sociedade está doente, e provavelmente o incremento da  violência pela solução bélica é um mecanismo que nos conduzirá a um  estado terminal ou até a morte.
 
 IHU On-Line – É possível pensar a respeito do direito penal em um  estado de exceção no Brasil? Há alguma influência de Carl Schmitt na  formulação do conceito de inimigo no Direito Penal?
 
 Moysés Pinto Neto – Essa é a tese que tomo como ponto de partida do  livro. Inicialmente, é preciso considerar que o Direito Penal do Inimigo  não pretende o “status” de normalidade institucional; ele pretende  exatamente funcionar como sistema anômalo que opera nos limites da  juridicidade. Portanto, é irrelevante cotejá-lo com normas  constitucionais, à medida que ele não reivindica a conformidade a elas,  mas sim sua suspensão em casos de grande perigo. Todo confronto  estritamente jurídico com o Direito Penal do Inimigo é por isso  ineficaz e não é capaz de tangenciá-lo, à medida que – apesar do  mitologema da norma fundamental que ainda orienta massivamente a  dogmática jurídica – o Direito não é um sistema fechado que nasce de  lugar nenhum, antes depende sempre de decisões políticas que cortam o  tecido da história para instituí-lo. Essa é uma das importantes lições  de Derrida em “Força de Lei” ao descrever as relações imanentes entre  direito e força. 
 
 Por essa razão parti da ideia de que devemos entendê-lo a partir do  fenômeno do estado de exceção, confrontando-o argumentativamente na sua  lógica biopolítica sem poder recorrer a normas jurídicas como parâmetros  de validade. Nesse ponto, Giorgio Agamben foi uma referência que me  permitiu perceber o fenômeno com mais claridade, e não apenas pela  lógica oposicional (estado de direito versus estado de exceção) que  permeia o campo jurídico. Sobre Carl Schmitt, Jakobs negou expressamente  diversas vezes o parentesco, mas é evidente que, quando mais ele  desenvolve a tese, mais próximo vai ficando dessa vizinhança. Sua teoria  nasce como uma duplicidade do Direito Penal e gradualmente vai se  deslocando para as condições de juridicidade. Ora, nesse caso a  proximidade com o estado de exceção é inevitável, diga o que disser.
 
 IHU On-Line – Por que você diz que o sistema penal funciona como um funil?
 
 Moysés Pinto Neto – Como expliquei, o sistema penal é  estruturalmente seletivo, isto é, atua conforme metarregras não escritas  que orientam sua atuação no mundo concreto. Entre a programação  normativa e o mundo real existe um verdadeiro abismo pelo qual se infiltra a exceção, e sou bastante cético em relação à  possibilidade de o aperfeiçoamento sistemático ou a hermenêutica darem  conta desse fenômeno. Esse fato é tão visível que nem é necessário os  criminólogos alertarem para a seletividade desconstruindo a ideia de um  sistema igualitário que funciona segundo a melhor proteção de bens  jurídicos: o mais desinformado dos leigos sabe que o sistema penal  funciona apenas diante daqueles que lhe são vulneráveis, e que há  camadas da população que são simplesmente imunes a ele. Basta acessar o Facebook para  que alguém poste uma charge ou frase raivosa reclamando do tratamento  desigual que a justiça penal dá aos seus “clientes” conforme a  respectiva posição de poder.
 
 IHU On-Line – Em que medida a rotulação de sujeitos como “inimigos”  expressa a dominação de classe e a exploração econômica a que estão  submetidas as sociedades capitalistas ocidentais? É possível pensar em  uma relação entre direito penal e sistemas de classe sociais?
 
 Moysés Pinto Neto – A medida mais necessária e linear possível.  Apesar de sofrer merecidas críticas devido à ossificação teórica, a  perspectiva criminológica marxista permanece com um ponto inabalável: o  sistema penal funciona punindo a classe miserável, e os setores mais  ricos da população são praticamente imunes a ele. Essa proposição sofreu  várias críticas: de que se estaria postulando um determinismo  econômico, forjando uma “esquerda punitiva”  ou até estigmatizando os pobres. O fato, porém, é tão brutalmente  visível que todos esses argumentos parecem minguar diante dele: apenas a  parcela miserável da população é encarcerada. Entre um roubo de veículo  e o desvio de dinheiro público, as estatísticas são sempre devastadoras  a demonstrar que apenas o primeiro caso é alvo de intervenção penal.
 
 Não se trata de dizer que apenas os pobres cometem crimes, mas que  apenas eles são os punidos. Basta observar o perfil da população  prisioneira do Estado para constatar isso. Há um mecanismo de controle  atuando sobre as parcelas insubmissas da população miserável, e os  órgãos encarregados dessa operação – com destaque para as agências  policiais – não têm nenhum problema em admiti-lo. Recentemente um alto  oficial da Brigada Militar do Rio Grande do Sul declarou em alto e bom  tom que sua função era “recolher o lixo social”. Contra o caráter direto  dessa afirmativa, qualquer tipo de relativização ou racionalização  parece mero exercício da boa consciência de classe.
 
 IHU On-Line – Que relação é possível estabelecer entre o direito penal e a ordem constitucional?
 
 Moysés Pinto Neto – Em tese, segundo o discurso jurídico hegemônico,  a mais necessária. Teoricamente, o Direito Penal deve ser um mecanismo  de proteção de “bens jurídicos” tutelados pela Constituição. Essa  questão, porém, não me pareceu a mais interessante, à medida que está  longe de tocar o “modo real” de funcionamento do sistema punitivo. O que  a criminologia demonstra é, ao contrário, que o aparelho penal funciona  de modo quase totalmente alheio à sua programação normativa. O que  permeia esse sistema – da atuação policial, passando pelas decisões  judiciárias até o sistema carcerário – é exatamente a lógica oposta à  Constituição, ou seja, a lógica do inimigo. A atuação se pauta por  critérios que se baseiam nos pilares da manutenção da ordem social, na  representação de quem é perigoso e na exigência de autoconservação dos  indivíduos diante de ameaças. Apesar de todas as racionalizações  tipológicas e sistemáticas típicas da dogmática jurídica, o certo é que  os “agentes concretos” desse sistema atuam seguindo esses três pilares  estruturais, e é isso que conduz o Direito Penal ao papel de máquina  repressiva a serviço da contenção das insubmissões dos miseráveis diante  da injustiça generalizada.
 
 Com isso, não estou dizendo que os criminosos – potenciais “inimigos” –  são revolucionários a serviço do povo. Sua ação é na maioria dos casos  puro “acting out”, ou seja, pura explosão de violência que expressa a  crise social em que estamos inseridos. Diante de uma sociedade cujas  relações éticas estão totalmente devastadas, seria bizarro acreditar que  o exemplo moral viria exatamente de um criminoso. A questão, porém, é  que a lógica do inimigo funciona a partir de estigmas e procura a  manutenção da ordem social como está posta, independentemente da sua  justiça, sob a justificativa de que tudo é legítimo em nome da  autoconservação.
 
 IHU On-Line – Em que sentido o chamado Direito Penal Simbólico se relaciona com o Direito Penal do Inimigo?
 
 Moysés Pinto Neto – A questão do Direito Penal Simbólico é confusa e  dependente de uma matriz teórica deveras problemática. Por exemplo,  para Jakobs todo direito penal tem que ser simbólico, mas isso não  significa uma cisão entre o real e o simbólico, antes sua unidade. É por  meio da sua intervenção que o direito penal vige e, portanto, somente  sua ação simbólica confirma a vigência da norma. Sem ela, ele cairia no  vazio. Chamou-se igualmente de direito penal simbólico a emergência de  novas criminalizações a partir do surgimento de bens jurídicos  transindividuais ou o alargamento do direito penal para dar conta da  proteção de setores vulneráveis; por exemplo, da violência contra a  mulher ou do racismo. Ora, afirmar que isso é “simbólico” porque  inefetivo é algo que poderia se aplicar tranquilamente para “quaisquer”  dos bens jurídico-penais, sendo, portanto, uma decisão política  menosprezar esses conflitos preservando os “clássicos”. Por exemplo, há  quem reduza a questão dos crimes tributários à arrecadação do Estado,  sendo, consequentemente, problema meramente patrimonial de  criminalização discutível, quiçá indesejável. Não vejo a mesma discussão  travada em relação ao furto, que também é um crime patrimonial, embora  saibamos que se trata de autores distintos na maioria dos casos. Por  fim, se “simbólico” é o direito penal que é desproporcional ou ilegítimo  na pena apenas para causar efeitos publicitários, boa parte do direito  penal clássico poderia ser chamada de direito penal simbólico. Por que  então não chamar simplesmente de desproporcional ou ilegítimo?
 
 IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
 
 Moysés Pinto Neto – Um breve resumo do livro: comecei a pesquisa com  o confronto entre a lógica jurídica e a lógica do inimigo. Gradualmente  fui deslocado para fora do espaço do direito, à medida que a lógica do  inimigo funciona na sua suspensão, aproximando-me da ideia de estado de  exceção. Após, investigando cada um dos fundamentos que sustentam a  argumentação de Jakobs, percebi que havia uma coincidência entre a racionalização do penalista e a intervenção “concreta” do sistema punitivo. Assim, a lógica do  inimigo habita algum lugar infiltrada no espaço entre o jurídico e o  político, algo que tentei trazer à luz a partir da criminologia e das  ciências sociais. Finalmente, já que nesse espaço não adiantaria  simplesmente trazer normas constitucionais, busquei confrontar  eticamente, pensando a ética como “decisão vital”, apresentando como  contraponto a não violência em relação àqueles que se mostram como  alteridade diante do nosso aparato conceitual. Continuo acreditando que  apenas nesse nível concreto é possível se contrapor ao extermínio do  outro. Toda parafernália formal pode eventual ou estrategicamente ser  útil, mas desde que “sirva ao concreto da vida”, e não o contrário.