30 Agosto 2012
Anteprojeto de reforma do Código Penal adota, “infelizmente, o critério da máxima punição, respondendo aos anseios de um Direito penal punitivo expansivo”, apontam os advogados.
Confira a entrevista.
“Fez-se mais uma compilação do que uma verdadeira reforma”, dizem os advogados Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho, ao avaliarem as propostas de reforma do Código Penal brasileiro, que tramitam no Senado e no Congresso Nacional. Para eles, a principal justificativa de “objeção” ao anteprojeto desse Código “é justamente a falta dos fundamentos, antes de tudo pelos princípios que sejam condizentes com uma democracia e, especialmente, a falta de obediência ao postulado básico de que o Direito Penal deve limitar e proteger o cidadão”.
Uma das justificativas para alterar o Código vigente, editado em 1940, é adequá-lo à nova realidade da sociedade brasileira, que se transformou gradualmente após a redemocratização. Entretanto, diante desse argumento, os advogados são categóricos: “Veja-se: afirma-se que se está a cumprir a Constituição e adequando o Código Penal - CP à ‘nova realidade’ (qual?), mas, ao mesmo tempo, ignora-se solenemente a importância de os crimes contra a humanidade estarem em primeiro lugar na parte especial”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, eles assinalam que o discurso ideológico que orientou a redação do projeto de reforma do Código Penal não é limitador, “mas ampliativo, punitivo; e isso não é nem um pouco recomendável quando se pretenda a reforma de Códigos passados 20 anos da promulgação da Constituição”. Na avaliação deles, a reforma do Código Penal tem limites, e, se o novo texto for aprovado tal como está, a sociedade pagará “o preço por isso”. “O indicativo, nessas alturas, é a presidente da República chamar para si a responsabilidade e começar tudo novamente”, assinalam.
Na entrevista a seguir, Coutinho e Carvalho analisam alguns pontos da reforma, entre eles, o critério adotado para a penalização. Para eles, “adotou-se o critério da máxima punição, respondendo aos anseios de um direito penal punitivo expansivo”. E reiteram: “Perdeu-se oportunidade ímpar, por exemplo, de se acabar com as penas mínimas, como em vários países europeus, possibilitando a efetivação da cláusula constitucional da individualização da pena, a ser realizada pelo juiz”.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR. É especialista em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, mestre pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, e doutor pela Universidade de Roma La Sapienza. Procurador do Estado do Paraná, também é presidente da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/PR e membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o anteprojeto de reforma global do Código de Processo Penal, hoje Projeto de Lei n. 156/2009-PLS.
Edward Rocha de Carvalho é advogado, mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e membro da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/PR.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os principais apontamentos em relação à reforma penal em face do anteprojeto apresentado? Que aspectos do atual Código os juristas consideram equivocados e por quê?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – O Direito penal tem um caráter de garantia do cidadão, na medida em que ele limita o Poder punitivo do Estado. Explica-se: dependesse do Estado e particularmente dos Governos (mormente os autoritários), não haveria limites às penas e a história de abusos e arbitrariedades demonstra isso. Logo, diante da existência de condutas que precisem ser punidas, é necessário, desde logo, estabelecer quais e em que medida serão punidas. Daí o caráter de limitação do Direito penal e a premissa da qual ele precisa ser pensado. Um Direito penal limitador, enfim, que garanta o cidadão contra abusos. Ele necessita atuar sinteticamente:
(1) só em caso de extrema necessidade, quando as outras instâncias do Direito não funcionem (princípio da subsidiariedade);
(2) de forma a que não seja manipulado de acordo com interesses casuísticos (princípio da legalidade);
(3) só quando exista efetiva lesão a um bem jurídico que diga respeito a pessoas humanas e não a interesses, que podem cambiar por formas escusas (princípio da lesividade);
(4) na medida da concreta responsabilidade das pessoas que tenham causado danos e necessitem ser punidas (princípio da culpabilidade).
É interessante notar que não há, no anteprojeto – e isso seria recomendável – a fixação, desde logo e nos primeiros artigos, dos princípios limitadores do Direito penal, que estão dispersos ao longo dos primeiros artigos. A questão, sabe-se, é simbólica (pois os princípios continuam lá), mas se teria um simbolismo forte com tal colocação em primeiro lugar, demonstrando a que o Código veio. Eles, por evidente, dão conta dos fundamentos; e dos fundamentos dos fundamentos. Ao que consta das próprias explicações, utilizaram critérios pouco recomendáveis como, por exemplo, a necessidade de que a parte geral do Código terminasse de forma a se manter o artigo 121 em seu lugar, deixando-se de lado a questão histórica de que os primeiros artigos da parte especial são aqueles destinados aos preceitos dos crimes de maior lesividade. Isso é relevante quando se tem em consideração os tratados internacionais atuais e, especialmente, a questão colocada pelo Tribunal Penal Internacional no que se refere aos crimes contra a humanidade. Veja-se: afirma-se que se está a cumprir a Constituição e adequando o Código Penal à “nova realidade” (qual?), mas, ao mesmo tempo, ignora-se solenemente a importância dos crimes contra a humanidade estarem em primeiro lugar na parte especial.
Vício de origem
Por outro lado, dedica-se o Código a duas vítimas de crimes violentos, demonstrando-se a priori a ideologia que orientou a redação do Código: não limitador, mas ampliativo, punitivo; e isso não é nem um pouco recomendável quando se pretenda a reforma de Códigos passados 23 anos – quase 24 anos – da promulgação da Constituição. Há, pois, vício de origem, do qual a linguagem não deixou escapar a motivação.
Uma das principais questões que podem ser trazidas como objeção ao anteprojeto de Código Penal é justamente a falta dos fundamentos, antes de tudo pelos princípios que sejam condizentes com uma democracia e, especialmente, a falta de obediência ao postulado básico de que o Direito penal deve limitar e proteger o cidadão. Do que se percebe, fez-se mais uma compilação do que uma verdadeira reforma (os modos da codificação é o título que apresenta o anteprojeto do novo Código), escamoteando-se a deficiência técnica com a ingênua alegação de que o escopo era a realidade e não as altas rodas teóricas e acadêmicas, tudo como se fossem coisas que se pudesse separar impunemente. O cotejo teoria-prática é antigo, tanto quanto obsoleto; e hoje só usado por quem não sabe isso ou imagina que todos os outros são parvos o que, em definitivo, não é o caso. O argumento, por isso, volta-se contra quem o usa. Afinal, a deficiência dele começa por pressupor que um teórico ou acadêmico ou teórico-acadêmico vive em outro mundo e não por aqui, no meio dos alunos, fazendo greves, visitando instituições como penitenciárias, foros, tribunais e outros, enfim, vivendo a vida como poucos.
Teoria X prática
Depois, conceitos como o de vida vivida e presença (entre tantos) só não são conhecidos daqueles que vivem a prática dentro de quatro paredes; e foram eles que ajudaram a colocar em crise as dicotomias, hoje altamente discutíveis, dentre elas aquela que diz respeito a teoria/prática. Mas isso é coisa que se sabia desde Marx e seu conceito de práxis. Assim, o argumento é tão disparatado – quando o assunto é tão sério como fazer um novo CP – que deve ser tomado como ingênuo. Ele, porém, é sintoma da qualidade levada a efeito no anteprojeto. Veja-se.
Sabe-se, com certa tranquilidade, quem sabe Direito penal e seus fundamentos, assim como os fundamentos dos fundamentos; e por isso seria conveniente ouvir – levando-se a sério – as pessoas altamente especializadas das Universidades, assim como aquelas que estudaram Direito penal a vida inteira. Eles não só foram esquecidos (sente-se que propositadamente: e para isso o tal argumento ajuda a concluir) como, agora, são acusados pelo que são, o que é ofensivo.
Com isso não se quer dizer que se não tinha gente (muito) boa na Comissão – e se tem boa consciência das votações envolvidas, inclusive as razões por que alguns dela saíram –, muito menos que ela não poderia ter feito o anteprojeto, mas, verdade seja dita, ela fez o anteprojeto que fez ou podia fazer, o que se não pode negar. Por evidente, seria difícil imaginar que dela saísse outra coisa que não aquilo que saiu. Há, porém, que respeitar o esforço que se fez, embora do lugar do respeito não se possa tirar a qualidade que um novo CP deva ter. Assim, era preciso ter humildade e consciência das próprias limitações de modo a se pensar no objetivo maior que era o esboço de novo CP para a nação brasileira, razão por que os grandes conhecedores da matéria acabaram fora, como sabem todos. A prática, então, imperou (mas qual prática?); e isso demonstra o caráter que regeu a elaboração do anteprojeto de Código. É uma pena porque, desse modo, não se deve aproveitar muito do que foi feito; e se for aproveitado, vai-se pagar o preço por isso. O indicativo, nessas alturas, é a presidente da República chamar para si a responsabilidade e começar tudo novamente.
Por outro lado, demonstrando o caráter pragmático e desvinculado dos estudos sobre os temas básicos foi-se a pontos estruturais como, por exemplo, com a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Ora, ela é trazida como necessária à proteção da sociedade quando, como não poderia deixar de ser, sabe-se que o coletivo nada mais é, para esse efeito, que a reunião do individual e, assim, este é que deve ser protegido daquele. Faz-se, no anteprojeto, nesse ponto, exatamente o contrário do que o Direito penal deve ser: ao invés de se questionar a necessidade e a própria existência de uma responsabilidade da pessoa jurídica, parte-se do pressuposto de que ela existe, é necessária e merece sanção.
IHU On-Line - Que critérios devem ser considerados para descrever as condutas e as penas? Nesse sentido, quais são os acertos e equívocos da proposta de reforma?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – Os princípios descritos na primeira resposta: legalidade, lesividade, culpabilidade, subsidiariedade, dentre outros. O anteprojeto se distanciou deles e da nossa tradição, sempre fundada em países marcados pela luta pela democratização da legislação penal por conta de abusos que padeceram. Para fugir disso é preciso não ter memória ou não conhecer a razão por que se chegou ao ponto que se chegou.
IHU On-Line - Como a questão da penalização está sendo abordada na reforma do Código Penal? Que aspectos são considerados na discussão de aumentar ou diminuir o tempo de uma pena?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – Adotou-se, infelizmente, o critério da máxima punição, respondendo aos anseios de um Direito penal punitivo expansivo. A questão da lesão necessita ser, tecnicamente, levada em consideração e isso, ao que parece (ao menos se diz expressamente em tal sentido), foi feito pela Comissão, que analisou a matéria referente à quantidade das penas. Mas se o fez, não o fez bem, pelo que se pode perceber.
A falta de razoabilidade e a evidente ausência de lesão que justifiquem a privação de liberdade nortearam a elaboração dos tipos. Veja-se, nesse sentido, o questionamento feito à Procuradora de Justiça Luiza Eluf, uma professora respeitada, realizado pela ONG Crueldade Nunca Mais em seu site. Lá, ela afirmou expressamente que “estamos equiparando os animais aos seres humanos, o que é muito positivo e educativo. Nós, que amamos os animais e a natureza, alcançamos um grande progresso na Comissão de Reforma do Código Penal”. Pois bem, é boa a intenção, mas se faz necessário discordar se o assunto é lesividade: que a vida de uma minhoca valha o mesmo que a de uma criança parece ser um absurdo completo. Aqui, veja-se bem, há um denominador comum para os bens em questão e não se trata da opinião que se tem ou possa ter a respeito. Nessas horas é que se percebe a falta de técnica; e se poderia perguntar, com Agostinho Ramalho Marques Neto, “quem nos salva da bondade dos bons?”.
De outra banda, perdeu-se oportunidade ímpar, por exemplo, de se acabar com as penas mínimas, como em vários países europeus, possibilitando a efetivação correta da cláusula constitucional da individualização da pena, a ser realizada pelo juiz, de modo muito diverso daquele que se tem hoje.
IHU On-Line - As reformas do Código Penal consideram a atual situação do sistema carcerário brasileiro? Diante do esgotamento e da ineficiência desse sistema, que aspectos a reforma deveria considerar?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – Ao que parece, tal questão está pressuposta no anteprojeto e, claro, não deveria estar. Levar em consideração a situação do sistema carcerário implicaria montar uma estrutura que diminuísse a quantidade de penas privativas de liberdade, direção para a qual aponta a melhor doutrina, por exemplo a alemã. Com penas menores você tem que trabalhar o apenado desde outro patamar, criando nele expectativas de um progresso voltado para a reinserção na sociedade. Presídio, por sinal, não é depósito de gente que, lá, não deixa de pensar. É preciso, portanto, entender a situação pessoal dos presos e não imaginar que algo de positivo se vai conseguir com a mera “docilização” deles, o que já se mostrou infrutífero. Assim, respeitar o preso como cidadão, com sua singularidade, é um começo, mesmo porque a experiência brasileira já deveria ter ensinado a todos que ele, de um modo geral, volta ao convívio da sociedade e, como está, tende à reincidência, com enorme prejuízo à sociedade que – claro – sofre e até certo ponto com razão se revolta. Mas é um ódio voltado contra o efeito; e não contra a causa. Por isso a questão é, antes de tudo, um problema de inteligência: o que se quer com a pena privativa de liberdade? Tal problemática, verdade seja dita, é mais diretamente ligada à execução penal, como sabem todos. Mas não deveria ser desconsiderada – e nem pressuposta – na elaboração de um anteprojeto de CP, sob pena de se fazer o que se fez.
Falência do sistema
Ao que parece, desconsiderou-se o problema, como se não existisse, embora previsível há muito tempo, por conta de um discurso que se encontra fora do seu devido espaço e tempo, ou seja, aquele de que o discurso da chamada “ressocialização” não tem aplicação para nós justo pela falência do sistema. Tal discurso foi importante há quarenta ou cinquenta anos na Europa; e ainda assim por conta da questão ideológica e em alguns países e regiões. Aqui, porém, seria possível falar em falência de algo que nunca existiu, ou seja, o verdadeiro esforço no sentido da ressocialização? Enfim, decreta-se a falência de uma empresa que sequer teve vida, o que beira o absurdo. Mas quando se acredita em tal discurso – o da falência –, acaba-se por produzir uma legislação penal tão só repressivista, embora visivelmente equivocada, para dizer o mínimo. Para resolver o problema bastaria ler alguns alemães, holandeses e canadenses mais atuais; mas não se pode dizer quantos são os que fazem isso, por vários motivos.
IHU On-Line - Como a discussão acerca da criminalização da pobreza e a relação entre pobreza e criminalidade aparecem nas propostas de reforma do Código Penal?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – As pesquisas criminológicas indicam que uma sociedade desigual e consumista tende a canalizar comportamentos desviantes para a criminalidade. A relação não é imediata e objetiva, mas há uma vinculação evidente, em boa parte dos crimes, entre pobreza e criminalidade, especialmente numa sociedade estamental, polarizada e patrimonialista. É preciso, porém, entender a situação de cada um, até para se poder responder de forma mais coerente. Quando o espírito é repressivista isso fica mais difícil porque a tendência é ignorar as diferenças.
IHU On-Line - Como a questão do terrorismo é abordada na proposta de reforma do Código Penal? O que justifica as novas interpretações nesse aspecto?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – O presidente da Comissão que elaborou o anteprojeto, a quem se deve respeitar, deixou claro que era contrário à criminalização do terrorismo – inexistente no Brasil e, logo, de tipificação comprovadamente desnecessária – até o anúncio da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 no Brasil, cf. entrevista no site Consultor Jurídico, em 6-5-2012: “(...) sempre fui contra a tipificação porque me parecia uma pressão desmedida dos Estados Unidos. Mas nesse momento em que o Brasil terá grandes eventos como Olimpíadas, Copa das Confederações, Copa do Mundo, em que pelo menos três países que sofreram na carne a barbárie do terrorismo estarão presentes, como Estados Unidos, Espanha e Reino Unido, achei razoável discutir a tipificação.” Parece surreal, mas é verdadeiro e assumido: os critérios para a tipificação são eventos esportivos, ou seja, o velho panem et circenses dos romanos. Já que a inspiração é americana deveria ser bread, circus and jail, oras. Só que não é assim que se constrói uma adequada tipificação.
Tipificação
A nova “interpretação”, na realidade, é uma adoção ao que os critérios estadunidenses de punição recomendam, como, por exemplo, da mesma forma que se está fazendo acriticamente em relação à lavagem de dinheiro. O critério, enfim, foi atender a interesses alheios. Sabem todos, porém, que para ter eficiência (como tanto gostam eles, a ponto de a terem como princípio reitor) deveriam acabar com os paraísos fiscais que comandam e servem, por evidente, aos mesmos interesses. Isso não serve, contudo, àqueles interesses, porque seria preciso uma nova Economia mundial, com maior redistribuição de renda para quem produz, e não simplesmente especula.
A tipificação, então, do ponto de vista técnico, é sofrível, pois o preceito primário diz respeito a “causar terror na população” mediante condutas que, em si, são sim lesivas. A questão não está nos parágrafos, que descrevem a lesividade, mas no ato de “causar terror”, o que remonta ao velho conceito de tipos abertos, rejeitados por toda e qualquer doutrina comprometida com a Constituição e a democracia. Veja-se o problema de uma forma concreta: destruir um bem público pode tanto ser terrorismo (art. 239, § 3º, pena de 8 a 15 anos) quanto dano qualificado (art. 163, § 1º, III, pena de 6 meses a 3 anos), tudo a depender do “terror” causado. O que seria isso? Seria preciso um laudo psicológico coletivo para o determinar? Parece evidente a inconstitucionalidade e a desproporcionalidade de tal tipificação, sem desconsiderar a real motivação para o ato.
IHU On-Line - Como temas considerados tabus na sociedade brasileira, tais como aborto, homofobia, bullying e racismo, aparecem na reforma do Código Penal?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – Os crimes de racismo e homofobia vêm no artigo 472, com a previsão de condutas que sejam originadas “por motivo de discriminação ou preconceito de gênero, raça, cor, etnia, identidade ou orientação sexual, religião, procedência regional ou nacional ou por outro motivo assemelhado, indicativo de ódio ou intolerância”. Por incrível que pareça, não há previsão de pena! Isso deixa evidente a falta de critérios técnicos na elaboração de tipos.
O bullying é chamado de intimidação vexatória e vem previsto no art. 148, com pena de 1 a 4 anos. Também não está bem, pelo menos do que se espera de um tipo penal, começando pela clareza. Em um sistema processual adequado democraticamente seria difícil comprovar a duplicidade que se exige do especial fim de agir.
Em relação ao aborto, há uma ampliação do rol permissivo, o que pode ser um avanço notável e deve ser elogiado, embora há quem considere tímida a proposta. Ele é permitido quando (i) houver risco à vida ou à saúde da gestante, (ii) em caso de violação da dignidade sexual ou emprego não consentido de reprodução assistida; (iii) comprovada a anencefalia ou padecer o feto de graves e incuráveis anomalias, que inviabilizem a vida extrauterina; (iv) até a décima segunda semana, desde que um médico ou psicólogo constatem que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade. O problema, nesse último caso, é transferir a responsabilidade aos médicos ou psicólogos sem que se tenha indagado a eles se estão de acordo; ou mesmo se têm condições para tanto, o que se há de duvidar. É previsível, assim, que se acabe na Justiça. Vê-se, então, também aqui que se não andou bem tecnicamente.
IHU On-Line - Como o Código Penal pretende resolver questões de crimes enquadrados como enriquecimento ilícito de servidores e autoridades públicas, desvio de finalidade ou função, punição e responsabilização?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – Aqui se tem um dos pontos mais criticáveis do Anteprojeto da Comissão, e um dos mais elogiados por alguns de seus membros, o que demonstra um descompasso entre teoria e prática. Nas teorias – todas! –, prevalece o princípio constitucional de que o ônus da prova incumbe a quem acusar. Em um dos crimes específicos, de enriquecimento ilícito (artigo 277), prevê-se a hipótese de se punir uma pessoa que não consiga provar as razões da formação de seu patrimônio, o que inverte o ônus da prova e é inadmissível num Estado democrático de Direito. Sobre tal matéria, ademais, já se tem controle, a começar pelo Imposto sobre a Renda e outros. O que resta saber é se dele (o controle) se tem o resultado que se precisa. Como a resposta é negativa (eis um dos problemas do chamado Estado mínimo!) e ao invés de se trabalhar para que isso se altere, vai-se à solução mais fácil, criminalizando e invertendo o ônus da prova. É por isso que se quer, retoricamente, acabar com princípios e regras constitucionais que foram conquistas da civilização e dos quais não se pode abrir mão. Assim, como sabem todos – ou deveriam saber –, não é o problema simples de “abrir a conta bancária” ou “escutar ilegalmente as conversas telefônicas” ou “interceptar ilegalmente os dados telemáticos” ou... O problema sério é violar os princípios que protegem os cidadãos e as regras que lhes garantem os direitos e funcionam como garantias. Por evidente que para quem não tem dinheiro em conta bancária ou mesmo telefone (e assim por diante) para ser violado, parece fácil admitir a violação. Mas para esses, de regra menos afortunados, em geral se violam outros direitos e garantias, a começar pela incolumidade física e os domicílios, não raro situados nas favelas.
Eis uns dos motivos pelos quais não se consegue acabar com a tortura, essa vergonha do gênero humano. Nesses casos, de regra os mais afortunados – movidos pelo mesmo discurso tanto verdadeiro como manipulável de que “o inferno são os outros”, como queria Sartre –, da sua parte, parecem admitir, com facilidade, as violações seja dos domicílios, seja da incolumidade física, pela tortura. Afinal, são eles – os outros – os violados. Assim, seja de um lado, seja do outro, perdem todos como, várias vezes, ensinou a história. E o que se não respeita – não é difícil notar – é a diferença. Em tempos de prevalência da epistemologia (se é que se pode falar de uma epistemologia para isso) neoliberal, a ordem posta, mesmo a constitucional, por não ser uma ordem natural espontânea (como queria Hayek) e sim construída, é injusta. O perigo verdadeiro para a democracia, portanto – mormente a brasileira, ainda muito frágil – é o modo de pensar dessa gente. E o Brasil está repleto dela; muitos, dentre eles, dando as ordens, não raro para serem cumpridas por quem não deveria cumprir, pelo poder que têm. Em uma democracia representativa, os que detêm o poder do povo têm o dever de resistir e não se enganar pelo canto da sereia.
Os neoliberais, porém, sabiam disso e, por tal razão, foram fazer escola para ensinar a cantar... Enfim, se a matéria do enriquecimento ilícito de servidores e autoridades tivesse verdadeiramente dignidade penal já teria – há muito – sido incluída no CP. De qualquer forma, se agora ela tivesse tal dignidade (embora seja de duvidar), não há qualquer espaço para não se pensar que a tipificação haveria de ser precisa, clara e taxativa, por vários motivos que dizem com o que há de mais sagrado no DP mas também porque o cidadão não pode estar exposto à humilhação, ao enxovalhamento para, ao depois, simplesmente se dizer que é inocente. Em uma hipótese assim, o processo – e já a investigação preliminar dele –, se ganhar os meios de comunicação, é uma pena antecipada; e perpétua. Basta que se fale mal nas redes sociais. Está-se invertendo os fundamentos; para alguns se consomem os valores; e perigosamente. É um DP de amostragem: se o cidadão não estiver com sorte arrisca a existência em um detalhe. DP e DPP não se prestam – e não se podem prestar – para tal fim, justo porque se estaria diante do último bastião da democracia. Daí para frente é tão só barbárie; aquela que escolhe, de uma forma ou outra, a todos.
IHU On-Line - Outro tema apresentado na reforma do Código Penal é o da responsabilidade penal da pessoa jurídica. De que forma a reforma pretende tratar a matéria?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – O tema é controvertido. Contra quase todos os estudos técnicos de Direito penal, incluiu-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica no Anteprojeto do C tão só porque serviria à sociedade e à proteção das pessoas, partindo-se do pressuposto de que é um problema “há muito, identificado pelos estudiosos”. Qual? Quais? Sabe-se bem que a Constituição prevê a hipótese – de todo tecnicamente inadequada – de tal responsabilidade, mas isso ainda não é sequer pacificado a ponto de ser incluído em um novo Código. Logo, no Brasil (todo discurso alienígena, na sua necessária extensão, não se amolda adequadamente aqui), a matéria mereceria seguir em discussão, pelo menos até que se tivesse o devido amadurecimento.
IHU On-Line - O projeto de lei do Código Penal deve dialogar com os diversos atores da sociedade civil, como as igrejas, por exemplo, principalmente em relação a temas relacionados a costumes e questões culturais?
Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho – Um projeto de lei de tal envergadura deve, mais que dialogar (por seus atores, por óbvio) com a sociedade civil, ser a expressão dessa mesma sociedade. Isso, porém, é uma tarefa complicada e difícil, para não dizer impossível. Afinal, é a “expressão da sociedade civil” ou do que dizem que ela é? Tal expressão é dela ou ideologicamente imposta a ela pelos detentores do poder, a começar pelos veículos que se dispõe, dentre eles e mais importante os “meios de comunicação”. Logo, quando tal impossibilidade fala mais alto, o padrão que a modernidade legou foi aquele da Constituição da República - CR e, por ela, se não se tem a expressão referida – no caso concreto – não se deixa de ter os postulados mínimos pelos quais cada um deve se pautar, começando pelo Estado e, nele, pelos poderes constituídos, ou seja, Legislativo, Executivo e Judiciário. Assim, não se pode legislar da forma que der na cabeça, ao bel-prazer, ainda que em nome da precitada expressão que, em verdade, vai enquadrada também. Não fosse assim já teriam quebrado as cláusulas pétreas da CR, por exemplo, para incluir a pena de morte. A questão, portanto, é mais sofisticada do que se quer fazer parecer. Por trás de tal discurso há sempre uma ideologia, não raro repleta de moralismos e interesses inconfessáveis.
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Reforma do Código Penal: ''Há vícios de origem''. Entrevista especial com Jacinto Coutinho e Edward Rocha de Carvalho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU