27 Novembro 2020
"O dia da “Consciência Negra” é um convite à reflexão para estendê-lo para um amplo debate em casa, nos grupos, na mídia e na escola. Buscar fôlego para continuar os enfrentamentos – avançando, questionando, abrindo caminhos de humanização", escreve Mauro Passos, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Ciências da Educação pela Università Pontificia Salesiana de Roma (UPS), pós-doutorado em Antropologia da Religião pela UFMG, Presidente do CEHILA (Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina/ Cehila-Brasil).
Eu não posso compreender esse tom divino
com que os senhores falam da autoridade.
Não se governa mais em nome de Deus,
por que então esse respeito,
essa veneração de que querem cercar os governantes?
(Lima Barreto)
Pessoas, livros, mapas e guias existem para nos ajudar a percorrer os caminhos. Muitas questões, conceitos e preconceitos estão presentes na história dos povos. Na história e nos becos do Brasil. O som da cor acompanha as versões e interpretações da nossa cultura. No trilho de vozes, nas mãos calejadas pelo trabalho duro e no brilho de rostos que canta e encanta, a raça negra construiu o Brasil. Forçados a migrarem para o Novo Mundo, várias nações e tribos africanas, após séculos no cativeiro, fizeram o Brasil. As gerações que se seguiram colheram os frutos dessa gente sofrida. Entre tantos guias e líderes, permanece viva e sensível a figura de Zumbi. Encarna, engrandece e lembra muitas figuras que “fizeram o brasil, Brasil”.
No final do século XVII, o padre Antônio Vieira afirmou uma verdade sobre a identidade nacional brasileira: “O Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África” (apud Azevedo, 1992, I, p, 351). É relevante perguntar o que foi acontecendo, ao longo dos séculos, com nossa brasilidade e maneira de construir e perceber a história? Na diáspora social vivida no período da colônia e, ainda hoje, a afirmação da “consciência negra” foi-se sedimentando com luta, dor, coragem e conquistas. Não se pode esquecer que o racismo, como ideologia elaborada, é fruto da cultura moderna a serviço da dominação. O combate ao racismo acontece no interior da luta social, pois aí está sua origem, através de um processo de “descolonização cultural”. Segundo a filósofa Angela Davis: “Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”.
Neste caminho, convém lembrar a questão da etnicidade no campo religioso. Como se articulam essas duas dimensões – etnia racial e religião? Na década de 1980, no seio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom José Maria Pires começou a organizar grupos de reflexão dos Agentes de Pastoral Negros (APNs) e o Instituto Mariama (IMA) que reúne bispos, padres e diáconos negros. Trata-se de uma renovada consciência de identidade negra e de um reconhecimento dessa identidade no conjunto da sociedade brasileira, especialmente no seio da Igreja Católica. O que se procura não é apenas recuperar traços perdidos e omissões históricas, mas afirmar uma identidade presente na cultura e na religião. Assim, nasceram e floresceram essas iniciativas efervescentes nas comunidades “afro”, sem negar as diferenças, mas assumindo-as e verificando que as diferenças culturais e religiosas, como outras, são reais e históricas.
Em comunhão com a história sofrida pelos escravos e pelos negros no Brasil, em 1981, foi celebrada a “Missa dos Quilombos”, em Recife. Na homilia, Dom José Maria Pires afirmou: “Mais longa que a servidão do Egito, mais dura que o cativeiro da Babilônia, foi a escravidão do negro no Brasil. O negro como negro continua marginalizado” (Pires, 2011, p. 114;117). Isso pode ser reconhecido e lembrado no espancamento e assassinato de um cidadão brasileiro, trabalhador, negro, no Carrefour de Porto Alegre, dia 20 de novembro de 2020 – “Dia Nacional da Consciência Negra”. Mais uma vítima de um processo histórico perverso, por ser, sobretudo “negro e pobre”. Não houve tempo para despedidas, como lembra Mia Couto em seu poema “Ignorância”: “A minha morte/ foi tão breve/ que nem dei conta da lágrima”. (Couto, 2016, p. 34). Onde estamos? O passado vive pesadamente nas consciências, no entanto, com um grau maior de complexidade.
Como sempre, a inspiração para a luta vem das bases com os movimentos sociais, a articulação de grupos e comissões que visam ao compromisso pela justiça e pelos direitos humanos, políticos e sociais, apesar dos limites que fazem parte da história. Neste tempo em que se perde tanto amor e respeito, como visualizar um horizonte de esperança? Diante da “ordem burguesa”, abrir propostas solidárias e éticas. Suscitar não apenas emoções, mas inquietações para estimular outras/novas ações e colocar a solidariedade a serviço de uma causa humana, social e cultural justa.
No presente momento, a luta antirracista continua sofrendo exclusão. A celebração da “Consciência Negra”, no dia 20 de novembro desse ano, foi proibida na Arquidiocese de Rio de Janeiro (Ausência da mística evangélica!). Tal situação não tem explicação, pois há 16 anos, na Glória, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus acontece essa liturgia. A pastoral da omissão prevaleceu e não compartilhou a riqueza das crenças “afro”, com suas relevâncias rituais. Que valor pode ter uma religião que esconde o Deus Libertador em lugar de mostrá-Lo? Infelizmente estamos assistindo a uma avalanche de religião burguesa. Uma fé que não se expressa na cultura não foi plenamente recebida, lembrava o Papa João Paulo II. (Carta ao Cardeal Secretário de Estado, 20/05/1982). “A Igreja Católica será fiel ao Evangelho quando for além da opção pelos pobres”.
No Brasil, atualmente, tem-se falado muito o nome de Deus. Os governantes proclamam: “O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Qual Deus? O personagem Policarpo Quaresma questionava, no romance de Lima Barreto, “o tom divino”, usado pelas autoridades no ano de 1911. O problema não é novo. É de todos os tempos. A história guarda cenários para interpretar o tempo presente. Usam um discurso que suprime o mal e o negam facilmente. Jesus de Nazaré mostrou que é na comunhão (comum – união) que o ser humano se humaniza. Quem mais proclama o nome de Deus é quem tem menos direito de falar dele, pois: “Deus é amor”, como lembra São João em sua primeira carta (1 João 4, 8).
Comunhão e solidariedade não são apenas respostas a problemas individuais, mas a problemas sociais. O compromisso solidário – união dos seres humanos – é o cimento da moral. Diante do panorama nacional e internacional, há, ainda, alguns guias/líderes que apresentam caminhos de aproximação; respeitam as diferenças e sinalizam marcos relevantes para serem cultivados. Intolerância não é um problema somente político. É também o resultado das culturas e das religiões, quando deixam o amor e a solidariedade para depois. Assim, ficam longe de comunhão!
A tolerância, diante da diversidade, guarda valores e vai lavando a marca de Caim, tinta de sangue de tantos excluídos, explorados, violentados e marginalizados que a sociedade brasileira procura, inutilmente, esconder. Nossa brasilidade é construída com muitas cores e dores. O dia da “Consciência Negra” é um convite à reflexão para estendê-lo para um amplo debate em casa, nos grupos, na mídia e na escola. Buscar fôlego para continuar os enfrentamentos – avançando, questionando, abrindo caminhos de humanização. Não importa quão duro seja o presente, precisamos reinventar o futuro com sementes de diálogo e a capacidade de questionar! Deve ser um círculo contínuo e sempre pontuado para a construção de outros cenários na “casa, na rua e no trabalho”.
AZEVEDO, João Lúcio. História de António Vieira. Lisboa: Clássica, 1992, v. I.
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 17. ed. São Paulo: Ática, [s.d.], p. 87.
COUTO, Mia. Poemas escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
PIRES, José Maria. Homilia para a Missa dos Quilombos. In: PASSOS, Mauro. Um profeta em movimento. Belo Horizonte: O Lutador, 2011.
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O som da cor e as sementes da coragem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU