11 Novembro 2020
“Isto não é uma guerra, nem se deve encorajar a guerra civil. Esse é o sonho dos integristas. Os atentados islamistas, as decapitações e degolas que agitam o país são protagonizados por niilistas islâmicos que a pretendem. O governo não deve cair em sua armadilha com uma reação emocional. É possível lutar contra o jihadismo sem modificar a Constituição e respeitando a identidade dos muçulmanos que vivem na França. Não se pode fazer qualquer amálgama entre terrorismo e Islã, nem entre terroristas e imigrantes”. Estes são os conselhos do prestigioso sociólogo, cientista político e intelectual francês Sami Naïr.
A entrevista é de María Laura Avignolo, publicada por Clarín-Revista Ñ, 06-11-2020. A tradução é do Cepat.
Ex-conselheiro ministerial do governo de Lionel Jospin e ex-deputado europeu, Naïr é especialista em migração e seus efeitos sociais. É autor de “La inmigración explicada a mi hija”, “El Imperio frente a la diversidade del mundo”, “La mirada de los vencedores” e “Entre el miedo y la razón”. Por suas origens argelinas, é um dos intelectuais europeus que melhor conhece o mundo árabe.
No momento em que França volta a viver o horror dos atentados de 2015, com um novo ataque sangrento em Nice e a decapitação de um professor, sob ameaça de “alerta atentado” e com 7.000 militares deslocados em defesa de seu território, o doutor Naïr conversou com a Revista Ñ, em Paris, em pleno confinamento e diante desta exagerada segunda onda de contágios de Covid. Conversamos com ele a respeito do papel das emoções na reação política e da necessidade de se reformular a laicidade para acolher aos muçulmanos que não estavam na França quando surgiu a lei em 1905, marcada pela batalha contra a Igreja Católica.
“A obsessão islamista se transforma rapidamente em uma obsessão anti-islamista. E os muçulmanos, que não tem nada em comum com estes fundamentalistas, não podem escapar dessa obsessão. Sentem-se condenados apenas por ser muçulmanos. É muito difícil explicar que se trata de uma guerra somente contra os integristas, pois o que está em jogo é o islã como religião e a possibilidade de fazer entrar nas pautas da república francesa o Islã como outra das religiões neste país”, adverte.
O que significam os dois atentados consecutivos na França? Podemos falar de uma guerra na França ou que os muçulmanos e o Estado francês têm um choque cultural?
Parece uma guerra, mas não é. Estamos na democracia. O presidente Macron, assim como o ex-presidente François Hollande, se equivocam falando em guerra. Trata-se de alguns grupos, algumas seitas ultraminoritárias, que estão tentando, com uma estratégia muito bem elaborada, dividir os cidadãos franceses entre muçulmanos e não muçulmanos. Frente a eles, o que deve prevalecer é a lei da democracia, o que é totalmente diferente.
É preciso combater estas pessoas com firmeza. É preciso combatê-los sem trégua, mas não a partir de uma ideologia de guerra, mas com o estado de direito. Porque fazer isto a partir de uma perspectiva de guerra, argumentando que estamos em um estado de exceção, em que as leis democráticas de liberdade de expressão e debate desaparecem, seria entrar no jogo dos fundamentalistas.
Estes desejam opor os cidadãos de confissão muçulmana aos cidadãos cristãos, judeus, laicos e ateus. Não se deve cair nessa armadilha. Infelizmente, sob o peso da emoção, Macron caiu na armadilha. É preciso opor a democracia e a cidadania a estas pessoas, que estão utilizando o ódio para dividir os franceses.
O presidente disse que a resposta seria brutal. Você acredita que irão renunciar aos compromissos legais da Constituição francesa e buscar novas leis em nome dos interesses superiores do país?
Desde os atentados de janeiro de 2015 à redação da revista Charlie Hebdo, estão utilizando ferramentas cada vez mais duras para lutar contra estes grupos. Na realidade, o processo se desatou em 2001, nos Estados Unidos, com a destruição das Torres Gêmeas. A partir daí, vimos que o Patriotic Act estadunidense se estendeu para o mundo todo e hoje constitui a base do direito internacional. Esse processo tem uma característica fundamental: significa a redução das liberdades das pessoas, do estado de direito.
Infelizmente, entrar nessa via é dar toda a razão aos islamistas, ao contrário, devemos elaborar ferramentas jurídicas duras dentro do estado de direito. É o mais importante. O que o presidente Macron fará agora? Irá adotar provavelmente emendas mais duras para vigiar os discursos de ódio e o comportamento dos movimentos integristas. Mas isso tem também um preço jurídico que pode ser caro. Não se deve sair do marco da lei: toda a lei, mas só a lei.
Então é possível lutar contra o jihadismo sem mudar a Constituição?
Perfeitamente, porque a Constituição diz que, diante daqueles que tentarem colocar em questão o caráter laico do estado, é preciso se defender, mas por meio da polícia, educação e políticas sociais. Para que os fundamentalistas não tenham a possibilidade de influenciar na vida diária da França. Não se trata de uma guerra, mas da luta de um estado democrático contra grupos niilistas, terroristas, loucos, que tentam dinamitar a democracia. E a melhor maneira de defender a democracia é utilizar a democracia e não, como pretendem alguns governos – e como pretendeu em várias ocasiões o estado norte-americano –, utilizando métodos não democráticos.
Há mais de 6 milhões de muçulmanos aqui que se sentem acuados, responsabilizados, todos os dias, nos meios de comunicação. O islã, o islã, o islã... Outros países terão o mesmo problema: Alemanha, Espanha, Itália. Os alemães estão agindo muito melhor que nós, não possuem a mesma concepção da laicidade. Os italianos também agem muito melhor. Com estes neopopulismos no mundo, a ideia de uma guerra civil está sendo banalizada. Claramente, a equação terrorista chega à conclusão de que o islã é um problema. Mas o islã não é, assim como também não são o cristianismo ou o judaísmo.
O que é a laicidade?
A neutralidade do estado. Não significa impor ateísmo aos crentes. Todos têm o direito de praticar a religião no espaço privado. E, neste sentido, o estado é representante da neutralidade dentro do espaço público. O resto não importa. E a questão agora é que se estabelece muito facilmente esta equiparação com o terrorismo para chegar ao fim da cadeia aos muçulmanos. Na sociedade civil, muitos intelectuais agem assim, jogando gasolina ao fogo. Nesta manhã, li alguns jornalistas que falam de franceses muçulmanos. O que significa franceses muçulmanos? Não existem os franceses muçulmanos. Também não existem os franceses católicos ou judeus. Existem os cidadãos franceses.
Na comunidade muçulmana, todas as pesquisas demonstram que mais de 60%, 65% se sentem totalmente laicos e abrem o caminho para uma secularização de sua própria religião. É preciso saber agir diante desta situação. Não fazer da comunidade muçulmana algo existente, dado que não existe. Muitos muçulmanos não sentem pertença ao mundo islâmico. Nasceram aqui, não falam árabe, nem paquistanês e são perfeitamente franceses. O dever do estado é compreender essa complexidade.
Qual pode ser a contribuição dos muçulmanos em momentos como este na França?
A mesma contribuição que a dos católicos e judeus. Todos devem condenar estes atos e lutar contra eles, ajudar as autoridades públicas na denúncia. Organizar-se para que esta gente não possa atuar nesta sociedade. Por ser muçulmanos, têm um dever de mobilização e tomada de consciência, mas não precisam ir às ruas e dizer: “Nós somos muçulmanos inocentes”.
Não considera que a laicidade é um conceito pouco compreendido por eles? Talvez o Estado francês lhes explica mal.
Sim, a laicidade não está bem explicada porque a identidade francesa está em uma crise profunda, possivelmente a mais profunda de todos os países europeus. A França, que tinha uma concepção do universalismo, agora, neste imenso processo de globalização, indica que sua universalidade é só uma particularidade, é uma pequena identidade... Não é mais a grande França, a grande república, com o universalismo que se dirige ao resto do mundo. Os franceses, desde o século XVIII, desde o Iluminismo francês, nacionalizaram a universalidade. Agora, isso caducou, estamos em uma civilização mundial. Agora, há um encontro mundial de todas as culturas. E o que dizem os argentinos, assim como os norte-americanos e os chineses, os árabes e os russos, tem a mesma importância de valor.
Isso também significa relativizar o conceito de laicidade, elaborado no século XIX para lutar contra a religião. Isso é muito importante. E a concessão que a república francesa fez, ou seja, lutamos contra a religião, ganhamos a batalha contra a religião e para demonstrar que não temos nada contra a religião, iremos implementar, além disso, um sistema neutro. Agora, é necessário retornar a este sistema neutro. Aplicá-lo à situação do século XXI, à existência de uma comunidade muçulmana cada vez mais importante na França. Tentar secularizar, laicizá-los respeitando seus direitos à livre crença no espaço privado.
Você tem origens argelinas. O tema se torna biográfico em você.
É parte da história. A colonização da Argélia, a partir de 1830, que desembocou na guerra da independência de 1962, fez com que os franceses republicanos criassem uma categoria nova, os chamados franceses muçulmanos. Foi para não os chamar de franceses, para não lhes conferir os mesmos direitos que aos cidadãos franceses. E os argelinos muçulmanos tiveram que esperar até 1962, a independência, para que na França, não na Argélia, fossem considerados inteiramente cidadãos. E até hoje há ainda franceses de origem muçulmana argelina que continuam sendo considerados franceses muçulmanos. Na França, devemos lavar a nossa roupa suja. Fazer um trabalho de introspecção. É um enorme problema que está no armário há anos.
Há uma grande resistência em reconceitualizar a laicidade.
É claro. Para muitos franceses, ser laicos implica carregar um nome cristão. Em vez de se chamar Mohamed Bokarruba, é preciso se chamar Pierre du Pont. Com efeito, quando você se chama Pierre du Pont, passa sem problema. Aqui, muitos amigos muçulmanos têm filhos com nomes cristãos. Quando o filho nasce, não o chamam de Mohamed, mas de Pierre. E Pierre tem muito menos problemas na sociedade francesa do que Mohamed.
Questões de assimilação e sobrevivência.
Claro. Para alugar um apartamento, você telefona e diz: “Me chamo Mohamed Bokarruba”. E respondem, “Já o alugamos”. Mas se diz: “Me chamo Pierre du Pont”, a resposta é: “Poderia vir às quatro?”. Disso o Estado sabe, até inventam a ideia de curriculum vitae anônimo para poder conseguir um emprego. Existem pessoas que possuem filhos muçulmanos com uma magnífica formação. Basta que enviem o curriculum com o seu nome e respondem que a vaga já foi ocupada. Mas se enviam o mesmo curriculum com um nome diferente, são convocados.
Você se especializou em migração. Porque a terceira geração de filhos de migrantes muçulmanos, nascidos na França, se radicaliza, sendo que seus pais não se radicalizaram?
Pela mesma razão. A primeira geração não se radicalizou porque se considerava estrangeira. Imigrante. A segunda geração não se considera imigrantes, mas francesa, quer os mesmos direitos que os franceses. E ainda mais com a terceira, porque devido a seus nomes e religião, não se sentem integrados.
Consegue se dar conta que tivemos que esperar os anos 2010 para que dessem autorizações para construir mesquitas adaptadas à sociedade francesa? Sendo que a França tem uma relação com Argélia e o mundo muçulmano desde inícios o século XIX... Ou seja, temos uma cegueira dramática, sobretudo a respeito do que significa ser francês... O que é ser um francês hoje? Ser francês hoje não é somente ser laico cristão, devemos sair disso, nos abrir para outras dimensões.
Na origem dos atentados na França estão as caricaturas do profeta Maomé da revista Charlie Hebdo. Já causaram o massacre de toda uma redação e, este ano, as decapitações. O que estas caricaturas significam para a França?
São questões diferentes. Eu não diria que significam algo para a França, exceto que foram publicadas aqui, onde temos um contrato laico global, que torna sagrada a liberdade de expressão. Ao passo que nos países muçulmanos e na Europa, muitos consideram que a figura do profeta é sagrada. E não gostam que brinquem com Maomé mostrando o traseiro.
Mesmo que reconheçam a liberdade de expressão, rejeitam isto, do mesmo modo que para os católicos ver uma caricatura do Papa nu ou com um homossexual fazendo gestos ambíguos, porque acaba de reconhecer o casamento do mesmo sexo, constitui uma profanação. A republicação das caricaturas tem a ver com os horrorosos atentados de 2015, que mataram quase toda a cúpula dirigente do Charlie Hebdo. No momento em que se julga isso, republicá-las é reafirmar a liberdade de imprensa.
Mas do mesmo modo, reafirma-se a violência.
É que para o mundo muçulmano, a figura do profeta não é uma figura, mas um ser humano. Mas não é alguém que possa ser representado, porque os muçulmanos compartilham com os judeus a mesma concepção de Deus, não se representa. Na Bíblia, o nome de Yahweh nem sequer se escreve. Representar a Deus é um pecado enorme para os judeus. O que é preciso entender é que o caráter sagrado da liberdade de expressão, defendido pelos partidários da laicidade, corresponde mecanicamente ao caráter sagrado do nome de Maomé para os muçulmanos.
Evidentemente, é muito fácil mobilizar as pessoas dizendo: “Na Europa, não nos querem. Estão insultando o nosso profeta outra vez”. Esse lema mobiliza e nossos governantes têm a obrigação de acompanhar isto, porque não se trata de algo terreno, mas de algo sagrado, espiritual.
Um momento, isso é o que vincula diretamente a religião com a política. Quando se toca na identidade...
Conto-lhe algo revelador. Durante a guerra da Argélia, os argelinos que combatiam na França diziam: “Podem nos roubar nossas terras e riquezas, nossos filhos, mas nunca vão poder nos roubar a religião, pois está em nosso cérebro”. E a religião teve um papel essencial na oposição ao colonialismo. O islã teve um papel de ideologia: refúgio para lutar contra os processos de despersonalização e alienação próprias da colonização e a cultura colonial. E isso explica também a razão pela qual o islã tem uma importância tão grande hoje na Europa.
Considera que descolonização continua sendo um tabu na França?
É um trabalho que ainda não foi feito. Descolonizou-se os países, mas as mentalidades continuam sendo majoritariamente muito colonizadoras. Fala-se agora de algo mais sutil, do pós-colonialismo. Ou seja, que muitos – por exemplo, os que falam dos franceses muçulmanos – são pós-colonialistas. Querem impor a ordem existente às colônias muçulmanas francesas, na França de hoje. Essa visão pós-colonial desenvolve o estigma.
Ou seja, você vê o capítulo da guerra da Argélia ainda atuando como uma espécie de nostalgia imperial.
A guerra da Argélia começou em 1954, terminou em 1962, com mais de 500.000 mortos. Tivemos que esperar até 2002, para poder falar de guerra da Argélia aqui na França. Estava legalmente proibido pronunciar “a guerra” para falar dela, era mencionada como um acontecimento violento. A França é um país que evolui muito lentamente. A Alemanha evoluiu muito mais rápido com o seu passado histórico. Os alemães começaram a fazer esse trabalho em 1945. E até hoje estão trabalhando sobre suas memórias e sua identidade. Na França não, estamos muito orgulhosos do que somos...
Considera que os atentados islamistas podem desestabilizar a França e influenciar na ultradireita?
A extrema direita irá se aproveitar, já pedem para questionar as leis de imigração e asilo, com políticas muito mais duras aos estrangeiros. Frente a isso, é preciso se acalmar e elaborar uma política baseada na razão e na firmeza. A justiça deve fazer o seu trabalho, mas sem entrar nesta lógica de guerra civil.
Como se desradicaliza estes jovens fundamentalistas?
Nunca acreditei muito nessa desradicalização, pois significa que é possível, por meio do trabalho psicológico e intelectual, consegui-la. A radicalização tem muitas causas, e sabemos que a situação internacional tem um papel fundamental. O conflito palestino, a invasão ao Iraque, a destruição do Iraque. O movimento islamista se desenvolveu a partir da destruição do Iraque, antes quase não existia. Foi a guerra no Iraque que potencializou esse movimento, sobretudo a partir de 2001, com a destruição do Iraque. E daí saíram os grandes movimentos integristas, que chegaram a destroçar uma região da Síria. A situação internacional e a situação interior. A situação interior é que a política de integração social na França é um fracasso.
Como impactará na psique dos franceses este combo: a ameaça terrorista, 7.000 soldados na rua e o confinamento pela pandemia?
Após os atentados de 2015, foi feito o mesmo. E ficaram na rua. Trata-se de uma mensagem para proteger os lugares sensíveis, porque estes criminosos estão em guerra. Infelizmente, parece-me necessário lhes opor militares e policiais, que protejam a sociedade. É normal.
E qual será o efeito desse boicote dos países muçulmanos à França?
Não sabemos, mas não será forte. Caso a situação se acalme, em cerca de três meses, os interesses irão prevalecer novamente. A opinião pública terá uma ideia particular de Macron, mas as relações comerciais e políticas não irão mudar. O importante é preservar a paz civil na França.
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França. “Devemos resistir à lógica da guerra”. Entrevista com Sami Naïr - Instituto Humanitas Unisinos - IHU