03 Outubro 2020
"Pior é notar que o Brasil não fez a menor falta, que os tempos mudam e nós estamos ficando para trás. Além disso, perdemos oportunidades importantes de debater as necessidades atuais, que são outras, e seguimos sem saber como lidar com os instrumentos monetários mais lenientes por parte dos bancos centrais. Eles aprenderam como injetar liquidez no sistema financeiro usando 'quantitative easing' para manter a enorme máquina abstrata de multiplicação de capital ativa desde seu derretimento de 2007-2008. Este processo vem aumentando a desigualdade em todo o mundo", escreve Claudio Fernandes, economista da Gestos e do GT Agenda 2030, e membro do Conselho Consultivo do C20, em artigo publicado por Outras Palavras, 01-10-2020.
Avança, na ONU, construção de saídas que superem “austeridade”. Em pandemia, fala-se em suspender as dívidas e emitir dinheiro para o Comum. Até o FMI vai, agora, além da ortodoxia. Diplomacia brasileira omite-se. Mídia acoberta-o.
Convocada pelos primeiros-ministros do Canadá, Justin Trudeau, e da Jamaica, Andrew Holness e pelo Secretário Geral das Nações Unidas (ONU), Antonio Guterres, desde maio vem acontecendo uma sequência de reuniões de alto nível para debater propostas visando a recuperação econômica global, tão afetada pela pandemia Covid-19. Envolvem ministros de Fazenda, Finanças e chefes de Estado). Nesta terça-feira (29/9), aconteceu a segunda reunião entre chefes de Estado para discutir financiamento para o desenvolvimento sustentável na era da Covid-19. Mais uma vez, contrário a sua trajetória histórica e importância regional, o Brasil esteve ausente do evento, deixando evidente a opção do atual governo pelo isolamento físico e intelectual na busca de soluções no campo da economia que estão sendo desenhadas pela cooperação internacional.
É estranho, irônico, decepcionante e curioso que, enquanto os governos e instituições multilaterais buscam avançar no entendimento e uso de instrumentos financeiros disponíveis para responder à situação criada pela pandemia, o debate nacional sobre a economia siga focando em questões técnico-contábeis, desconectado do contexto internacional e da realidade econômica nacional. A insistência em manter e aprofundar políticas de austeridade fiscal pelo Estado, o empenho em desconsiderar a importância estratégica do financiamento público, a ausência de compreensão de que a dívida pública também é um ativo privado e, importante, a falta de noção sobre o real significado da “soberania de Estado” como princípio de institucionalidade e credibilidade junto aos mercados de capitais – tudo isso deixa o país à margem nos debates relevantes sobre macroeconomia e desenvolvimento. Enquanto aqui ainda se pensa a economia da escassez, o desafio contemporâneo é administrar a economia de abundância gerada nos países e melhor alocar os recursos de maneira sustentável. Como disse na reunião de chefes de Estado o Secretário Executivo da OCDE, Angel Guria, “os bancos centrais jogaram fora os livros de regras e dez trilhões surgiram como num piscar de olhos”.
Enquanto se buscam soluções que dialoguem com a realidade, o governo federal brasileiro, uma maioria barulhenta no Congresso Nacional, e parte da imprensa, continuam, de forma monotônica, defendendo uma política que mina os direitos garantidos pela Constituição Federal (1988) e os deveres do Estado, sob o falacioso argumento de desalinhamento das contas públicas. Essa narrativa é o ápice da hipocrisia em um país onde subsídios industriais são quase dez vezes maiores que a soma do orçamento de todos os programas de redução da pobreza e assistência social; ou representam o dobro de todo orçamento para Saúde[1].
O acúmulo de pessoas despreparadas e sem instrumentos teóricos atualizados tomando decisões econômicas no país, em diversos casos também ancoradas em má-fé – como pode ser comprovado no vídeo da reunião ministerial de abril –, acarreta em maior isolamento nacional. Tal isolamento já traz consequências materiais e imateriais ao Brasil, com perda de valor e credibilidade, com a diplomacia nacional se tornando um terreno árido de evidente retrocesso em sua política externa com a submissão bilateral aos Estados Unidos. O ataque brasileiro às instituições multilaterais é o típico feitiço que já começa a se voltar contra o feiticeiro, criando problemas adicionais a um país já solapado por imensas e múltiplas crises internas.
Como concluiu Amina Mohammed, sub-secretária Geral da ONU, no encerramento da reunião de chefes de Estado, “a pandemia e seus efeitos não vão passar rapidamente. Vontade e coragem política são necessárias para transformar esta urgência em ação imediata. Todos sofreremos mais se não trabalharmos em conjunto”.
Breve história da iniciativa – Para encontrar soluções duradouras, e de fato eficazes, para a recuperação e reconstrução da economia no contexto da Covid-19, que continua infectando e matando milhares de pessoas no mundo todos os dias, há três meses Canadá, Jamaica e Secretariado Geral da ONU convocaram a primeira reunião de alto nível com chefes de Estado em 28 de maio. O propósito era reconhecer as vulnerabilidades amplificadas pelo vírus à economia global e os novos desafios para implementar a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável.
O resultado da reunião foi a criação de seis Grupos de Diálogo, com a presença de diferentes partes interessadas, incluindo governos, setor privado e a sociedade civil organizada, para elaborarem um “cardápio de opções” para diversos cenários, a partir dos temas:
1. Financiamento externo, emprego e crescimento;
2. Endividamento e vulnerabilidade;
3. Recuperando melhor com sustentabilidade;
4. Engajando credores privados;
5. Liquidez global e estabilidade financeira; e
6. Fluxos ilícitos de capital. Esses grupos reuniram-se buscando maneiras de encurtar o caminho de recuperação econômica ao mesmo tempo tornando as economias mais resilientes para enfrentarem futuras crises.
As propostas elaboradas pelos grupos foram expostas em uma reunião entre ministros de Fazenda e Finanças de diversos países, em 8 de setembro. Mais uma vez o Brasil levou falta. O evento nem sequer constava na agenda do ministro Paulo Guedes para a data. Não é de surpreender, no entanto essa ausência, já que o Brasil, neste momento, nada tinha a contribuir pois aqui se insiste em teses de “austeridade” que mundo afora, cada vez mais, vão sendo descartadas, inclusive por instituições que antes as defendiam insistentemente, como o Fundo Monetário Internacional.
Pior é notar que o Brasil não fez a menor falta, que os tempos mudam e nós estamos ficando para trás. Além disso, perdemos oportunidades importantes de debater as necessidades atuais, que são outras, e seguimos sem saber como lidar com os instrumentos monetários mais lenientes por parte dos bancos centrais. Eles aprenderam como injetar liquidez no sistema financeiro usando “quantitative easing” para manter a enorme máquina abstrata de multiplicação de capital ativa desde seu derretimento de 2007-2008. Este processo vem aumentando a desigualdade em todo o mundo.
Mais do que nunca, encorajados pela prolongada baixa inflação da última década – que desmentiu o senso comum de que expansão monetária seria nexo causal suficiente para o aumento de preços – e com o crescimento vertiginoso dos rendimentos nos mercados de capitais (bolsas), os bancos centrais agiram rápido para garantir a disponibilidade de capital de curto prazo para conter a espiral descendente no sistema financeiro no pânico gerado pelo início da pandemia. Além disso, houve uma redução geral dos juros básicos dos títulos de dívidas públicas dos países, com Alemanha e Estados Unidos baixando para zero, enquanto o Japão, sem espaço de manobra pelo longo período de estagnação, manteve o seu em –0,25%. O Brasil, aproveitando a situação, pôde reduzir os juros para o menor patamar de sua história recente, até os atuais 2%. Porém, no nosso caso, no início da pandemia, também houve forte reação contrária à moeda, que sofrera um ataque especulativo com a enorme fuga de capital nos primeiros quatros meses de 2020, correspondente a toda saída de capital do ano anterior. Este foi um fenômeno global que está estimado em 1.4 trilhões de dólares.
Contudo a pandemia forçou os governos a se mostrarem o que realmente são para a economia geral: garantidores e emprestadores de última instância. A defesa neoliberal do Estado mínimo ruiu mundo afora enquanto tese confiável, perdendo sua força como narrativa, tendo como maior evidência o péssimo desempenho dos Estados Unidos na resposta à covid-19 – um país sem um sistema de saúde pública. No Brasil, mesmo com o Sistema Único de Saúde (SUS), o desempenho foi ruim por problemas de liderança política e desinvestimento do sistema acentuado pela Emenda Constitucional 95/2016, o conhecido teto de gastos para áreas essenciais, liberando a maior parte do recurso para cumprir serviço de dívida pública. Uma medida de austeridade extrema em um país sem crise de dívida soberana, apenas para satisfazer agências de avaliação de crédito para o mercado de capital e transferir recursos públicos de baixo para cima.
Se o financiamento para o desenvolvimento sustentável já estava com dificuldade para ser efetivado nos países, com a chegada da covid-19 todos os esforços foram desviados para a “sobrevivência a qualquer custo”, colocando mais tensão no espaço fiscal dos governos, principalmente naqueles altamente endividados. Por isso – e resultado também de pressão da sociedade civil organizada – a primeira reação do G20 foi criar a Iniciativa de Suspensão dos Serviços de Dívida (DSSI, em inglês), que colocou uma moratória nos pagamentos dos contratos durante o ano de 2020.
Na reunião de 8 de setembro, diversos países e o FMI solicitaram a expansão do prazo da moratória dos pagamentos dos serviços de dívida por mais um ano, entrando por 2021. Além disso, com apoio da Secretária Executiva da CEPAL, Alícia Bárcenas, solicitou-se a ampliação do benefício do DSSI também para países de renda média, a maioria da América Latina – no momento, a região mais afetada e vulnerável pelas consequências da Covid-19. Ela, inclusive, foi mais adiante e propôs a criação de um Fundo Global para Resiliência, que financiaria a Renda Básica Universal, e de uma agência pública de avaliação de risco (ou classificação de crédito). A iniciativa daria um parâmetro independente aos países, protegendo-os do oligopólio de três empresas privadas – Standard & Poors, Moody’s e Fitch. Finalmente, ela também pediu uma atenção especial ao Caribe e aos países-ilhados, cada vez mais vulneráveis à intensidade crescente dos fenômenos climáticos.
Se os desafios são muitos e se a geopolítica anda cada vez mais conturbada, as soluções são evidentes. Como disse o sub-Secretário Geral da UNOHCHR (Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU), Mark Lowcock, “todo mundo já sabe o que deve ser feito. E o que é necessário custa muito pouco para os países desenvolvidos”.
Já se sabe, por exemplo, que para enfrentar seriamente o fluxo ilícito de capitais é necessário encarar a discussão sobre “paraísos fiscais” e sobre controle de capital através de tributos sobre operações financeiras. Da mesma forma, para mitigar as mudanças climáticas é necessário debater os incentivos à produção e reprodução da cadeia de valor dos combustíveis fósseis, que envolve desde as empresas e países que produzem e comercializam o petróleo e seus derivados até toda cadeia global de produção de automóveis, a rede de logística, transporte e distribuição nos territórios. Tamanha complexidade, com tantas interações, demandam novos paradigmas de interação e interpretação econômicas.
O resultado prático da reunião de ministros e ministras de Fazenda e Finanças foi chamar a reunião de Chefes de Estado de 29/9, para aprofundar as propostas dos seis grupos de trabalho, complementadas pelas observações feitas durante o debate com ministros e ministras de Fazenda. A expectativa é assegurar um consenso para criar possibilidades de reformar a arquitetura financeira internacional, algo a que os Estados Unidos opõem-se abertamente, mas que pode avançar se Europa, Japão e o G77 se unirem. Diversas alternativas do “cardápio de opções” podem ser facilmente implementadas; outras exigem mais debates. Por isso o Grupo da Sociedade Civil que segue o FfD propõe a convocação de uma Conferência Internacional de Reconstrução, sob os auspícios da ONU, além da criação de uma Comissão Permanente sobre Tributação para monitorar os fluxos de capital no mundo.
Da economia estagnada à Reforma Tributária – Antes da covid-19 o mundo vivia uma situação peculiar de excesso de liquidez financeira, apesar de esta condição conviver com uma crescente vulnerabilidade fiscal em 75% dos países do mundo. Com as reduzidas taxas de juros básicos nas economias desenvolvidas desde a Grande Recessão mundial (2008-2013), durante a Assembleia Geral da ONU no ano passado foi estimado que havia 11 trilhões de dólares estacionados em investimentos com retorno zero ou negativo. Na semana entre 21 e 25/9, o título de dívida da Alemanha baixou para taxa negativa (–0,531%).
Com a reação imediata dos bancos centrais, que passaram a comprar títulos de dívida de seus próprios países para aquecer os mercados que entravam em queda a partir de março, o sistema financeiro logo se distanciou da realidade econômica de reduções drásticas de produtividade, com quedas recorde de PIB e aumento substancial de desemprego. Até o momento, 10 trilhões de dólares em recursos públicos foram injetados para manter a economia em funcionamento. Angel Guria, mais uma vez contextualizou, “o total de Ajuda Oficial para o Desenvolvimento está em 154 bilhões de dólares. Jogamos dez trilhões para resolver uma emergência. Portanto, um pouco de humildade seria bom” para quem não vê saída financeira. Vale lembrar que a situação anterior à Covid-19 já era de estagnação consistente, principalmente nos países desenvolvidos, com redução da demanda agregada pela saturação do consumo das classes abastadas e aumento da desigualdade e pobreza das classes trabalhadoras. Qual a saída?
Em 29/9, chefes de Estado do mundo se reuniram em sistema digital, como parte da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas (UNGA), para debater o “cardápio de opções” de políticas econômicas e reconhecer os desafios a ser enfrentados. Diversas medidas requerem coragem e uma nova interpretação da economia, principalmente reduzindo a importância de teses que reforçam o aumento das desigualdades, como a “austeridade” na alocação de recursos públicos para áreas essenciais do desenvolvimento humano, como saúde, educação, assistência social e programas especiais de redução de pobreza e confronto de desigualdades raciais e de gênero.
Em síntese a demanda dos diversos Estados, agências e instituições financeiras internacionais reconhece que:
1. Os contratos de dívida pública precisam ser renegociados para criar espaço fiscal para os investimentos necessários que possam alavancar o país durante e após a pandemia, inclusive através da criação de instrumentos de troca de títulos de dívida por investimento em resiliência climática;
2. Os incentivos tributários para setores econômicos com externalidades negativas, tanto para o clima como para a saúde pública, precisam ser eliminados – poluidores industriais, combustíveis fósseis, bebidas adoçadas entre outros;
3. Recursos públicos devem ser alocados para estimular projetos de economia circular, alinhados com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, com externalidades positivas em sua cadeia de valor, eliminando o descarte de resíduos sólidos, que devem ser reintegrados em alguma cadeia de valor complementar. Entre outros.
O caminho de recuperação deve ser incentivado por inovação, criatividade e preservação. E o mundo inteiro reconhece isso; mas o governo brasileiro segue insistindo em fórmulas erradas. É preciso reverter o impulso destrutivo atual e concentrar investimento na formação e desenvolvimento humano para diversificarmos a matriz produtiva e aumentar o valor agregado do esforço concentrado do produto social. Como falta capacidade técnica e responsabilidade política para tal, como mostra o IV Relatório Luz do GT da sociedade civil para a Agenda 2030 no Brasil, a trajetória dos últimos cinco anos tem sido de redução nessas áreas tão estratégicas ao país.
Independente de fé ou crenças sem base material, não haverá milagre de recuperação econômica no curto prazo, pois o país já estava mal preparado antes da Covid-19, com crescimento da fome, da pobreza extrema, piora na Saúde e em vários outros indicadores. Este ano o Relatório Luz 2020 analisou 145 das 169 metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e apenas quatro delas apresentava avanço satisfatório: 60 apresentavam retrocesso, 26 ameaçadas, 32 estagnadas e outras 23 com desempenho insuficiente.
Tantas evidências indicam que não haverá milagres tampouco a longo prazo, com a destruição das políticas afirmativas de desenvolvimento, inclusive as de proteção e uso sustentável do meio-ambiente, se o país não mudar o curso atual. O possível aumento da produção primária para exportação, com tanta devastação nas áreas de floresta, é temporário e concentrador, pois soja e pecuária extensiva empregam pouco. Além disso não se investe, como necessário, na atual e nas próximas gerações – a recente luta da sociedade civil pelo Fundeb é exemplo disso. Seguimos perdendo oportunidades de desenvolver o potencial criativo e inovador, capaz de gerar as soluções de que precisamos. Soluções que passam tanto pelo fim da Emenda Constitucional 95, quanto por uma Reforma Tributária que prepare o país para a transição necessária para uma economia multicolorida (que considere a sustentabilidade do meio ambiente e elimine as desigualdade entre gêneros) e circular. Infelizmente as propostas com proeminência no debate da Comissão Mista pela Reforma Tributária do Congresso Nacional limitam-se a forcar em ajustes contábeis, simplificando impostos sobre o consumo, mas sem tocar nos aspectos estruturais que ajudem o país a reduzir suas desigualdades e a corrigir distorções.
Num momento como este, de imensa crise de lideranças, quando o ministério da Economia carece de compreensão política e até de qualidade técnica sobre as necessidades para colocar o país no caminho do desenvolvimento sustentável, é preciso amplificar as vozes do bom senso e evitar que o Congresso Nacional perca a oportunidade de alinhar o sistema tributário do país às demandas do presente. Inclusive considerando a economia digital e implementando mecanismos de reparação, ancorados nos princípios de equidade, da justiça social e ambiental. Sem isso, continuaremos afogados, irresponsavelmente, num mar de erros.
[1] GT AGENDA 2030. IV Relatório Luz sobre o desenvolvimento sustentável no Brasil. Artigo 19, Gestos. Recife e São Paulo: 2020.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Como o Brasil recusa-se a debater alternativas à crise - Instituto Humanitas Unisinos - IHU