26 Setembro 2020
Um grupo de mulheres indígenas está introduzindo novas táticas no combate ao desmatamento em uma das últimas áreas intactas de Floresta Amazônica no Maranhão.
A reportagem é de Rosamaria Loures e Sarah Sax, publicada por Mongabay, 24-09-2020.
Numa manhã de dezembro do ano passado, no Maranhão, meia dúzia de indígenas Guajajara encheu suas sacolas com comida, mapas e um drone para se preparar para uma patrulha. Eles se despediram de seus filhos, sem saber quando, ou se, os veriam de novo. Então, penduraram as sacolas nos ombros e partiram para monitorar uma área dentro dos 173 mil hectares de floresta primária que chamam de casa.
Trata-se da Terra Indígena Caru, situada numa zona de transição entre a Amazônia e o Cerrado, onde resta um dos últimos trechos de floresta intacta e contígua no Maranhão. É também uma região sob ameaça crescente: esta parte do Brasil tem sido devastada por conflitos de terra e por uma das maiores taxas de desmatamento do país na última década.
Patrulhas lideradas por grupos indígenas como os Guajajara, conhecidas pelo nome de “Guardiões da Floresta”, têm crescido nos últimos dez anos. E têm sido fundamentais para reforçar a proteção e impedir que madeireiros entrem nos territórios indígenas. Por isso mesmo, também elas sofrem ameaças, muitas vezes resultando em assassinatos como o de Paulo Paulino Guajajara, morto em 2019 numa terra indígena vizinha.
Mas os membros da patrulha que entraram na floresta em dezembro passado não chamam a si mesmos de guardiões; preferem ser chamados de guerreiros. Ou melhor, guerreiras. Pois diferem em outro aspecto notável: são todas mulheres.
“Por que tomamos a iniciativa? Porque somos mães. Se não agirmos, não restará floresta em pé”, disse Paula Guajajara, uma das Guerreiras da Floresta, num evento público no ano passado.
Guerreiras da Floresta é o nome pelo qual as mulheres chamam a si mesmas. Elas são, sob muitos aspectos, a encarnação do que políticos, formuladores de políticas públicas e acadêmicos de todo o mundo dizem ser uma mudança necessária em direção à igualdade de gênero nos movimentos ambientais. E elas estão contribuindo não só com a presença de mulheres nas patrulhas, como também ajudando a diversificar as táticas e a formar novas parcerias.
Patrulhar ativamente o território em busca de invasores não é nada novo para os Guajajara, povo indígena que tem mais de 500 anos de experiência nisso. Hoje, eles usam tecnologia de satélites e esforços coordenados com agências de fiscalização para atingir seus objetivos. Esta abordagem é relativamente nova, e seu uso tem crescido nos anos recentes.
“Em todo o país, mais grupos como este estão se formando por causa da inação do governo – ou, pior, porque o governo está ativamente tentando explorar suas terras”, diz Sarah Shenker, coordenadora de campanha da equipe de Tribos Isoladas da Survival International. Esses grupos são formados principalmente por homens, embora as mulheres às vezes sejam incluídas nas patrulhas. Mas, segundo Shenker e outros especialistas entrevistados para esta reportagem, a existência de grupos de Guardiões da Floresta formados somente por mulheres é algo único.
As Guerreiras da Floresta se juntaram há seis anos, como resultado de um programa desenvolvido por organizações indígenas e pelo governo federal chamado Projeto Demonstrativo de Povos Indígenas (PDPI), implementado pelo Ministério do Meio Ambiente para melhorar a proteção territorial e cultural desses povos. Na época, os Guardiões da Floresta, predominantemente homens, tentavam coibir a extração ilegal e a venda de madeira retirada de seus territórios – uma tarefa que se mostrou extremamente difícil. Vendo isso, as mulheres entraram no programa e formaram seu próprio grupo, que consistia originalmente de 32 participantes.
“Para impedir que o projeto terminasse, nós, as mulheres Guajajara, entramos e assumimos o projeto”, diz Cícera Guajajara da Silva, uma das guerreiras.
Mas o caminho para serem levadas a sério e tratadas como iguais foi longo.
“Para buscar parcerias, nós andávamos, conversávamos, dormíamos no chão – tudo isso para buscar melhorias para nossa comunidade”, diz Paula Guajajara, lembrando-se da dificuldade inicial de serem ouvidas e levadas a sério dentro e fora das comunidades. A paciência delas foi recompensada, e as mulheres destacam o apoio e a colaboração próxima dos guardiões homens, que as permitiram combater a extração ilegal de madeira. “Hoje temos as guerreiras que trabalham junto com os Guardiões da Floresta”, diz Paula Guajajara. “Já expulsamos muitos madeireiros. Se não tivéssemos agido, não haveria floresta em pé.”
Muitas das mulheres casadas já vinham agindo de forma independente, acompanhando seus maridos em algumas atividades, de acordo com Gilderlan Rodrigues da Silva, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Maranhão. “Mas, a partir do momento em que criaram o grupo de mulheres, elas ganharam força e visibilidade”, diz ele. “Uma vez que se uniram, houve essa mudança muito forte. Tanto no contexto da redução das invasões quanto para despertar a consciência coletiva para a proteção do território.”
Os resultados são claramente visíveis. Em 2018, houve apenas 63 hectares de desmatamento na Terra Indígena Caru, em comparação com 2016, quando o desmatamento atingiu o pico de 2 mil hectares, de acordo com o Global Forest Watch. “A maior conquista que vejo hoje em minha aldeia é a proteção do território. Não há madeireiros dentro da nossa terra, e conseguimos combater a venda de madeira”, conta Cícera Guajajara da Silva.
As Guerreiras da Floresta também foram essenciais para estabelecer a conexão com outros grupos indígenas que buscam igualmente proteger seus territórios, como os Ka’apor, os Awá-Guajá e outras comunidades Guajajara.
“Há 16 terras indígenas no Maranhão – temos que buscar a unidade para seguir adiante com nossa luta”, diz Maisa Guajajara, uma das primeiras guerreiras. Através da coordenação com outros grupos de mulheres, como a Articulação de Mulheres Indígenas do Maranhão (Amima), elas conseguiram reunir 200 mulheres indígenas de todo o estado pela primeira vez em 2017 para falar sobre vários assuntos, inclusive proteção territorial, desmatamento e educação ambiental.
“Todo este movimento é extremamente importante porque mostra essa força, e que as mulheres têm muito a contribuir porque são parte do território e estão preocupadas com ele e com as gerações futuras”, explica Rodrigues da Silva, do Cimi.
Elas não só se articulam com outros grupos indígenas, como também educam as comunidades vizinhas sobre a importância da conservação ambiental. “Nem todas as mulheres fazem trabalho de vigilância porque sabemos que é um trabalho perigoso, mas sempre tem algumas que o fazem”, diz Maisa Guajajara. “As guerreiras geralmente fazem mais atividades fora do território: damos palestras no entorno para falar sobre as invasões e aumentamos a conscientização nos vilarejos falando sobre a importância de manter a floresta em pé.”
As Guerreiras da Floresta, por exemplo, são parceiras do projeto Mãe D’água, que, junto com a ONG Fórum da Amazônia Oriental (Faor), dá apoio a mulheres indígenas para fortalecer suas ações coletivas contra o desmatamento e a poluição das águas. Essas ações incluem visitas a comunidades ribeirinhas vizinhas nas quais as guerreiras explicam seus modos de vida, como a caça e os rituais. Para as guerreiras, quanto mais as comunidades do entorno souberem sobre a cultura Guajajara, mais respeitarão suas ações para defender o território.
No Brasil e em todo o mundo, as mulheres indígenas estão cada vez mais à frente dos movimentos ambientais.
“A luta das mulheres indígenas acontece de diferentes formas, dia a dia. Se estou aqui hoje, sou fruto das mulheres que vieram à minha frente”, disse Taynara Caragiu Guajajara, integrante do coletivo de mulheres indígenas Amima, durante um evento online em abril. “No contexto do mundo em que vivemos hoje, temos conquistado espaço dentro e fora da comunidade. Nós, mulheres indígenas, nem sempre tivemos voz. Mas hoje a luta é liderada pelas mulheres indígenas, somos aquelas que estão encarregadas da luta.”
As mulheres estão cada vez mais à frente da luta em questões como as mudanças climáticas, mas suas vozes são ouvidas bem menos do que as dos homens – o que é prejudicial para todos. Isso é, em parte, subproduto de um viés de gênero no próprio jornalismo.
Em 2015, de cada quatro pessoas entrevistadas, mencionadas ou vistas no noticiário no mundo todo, apenas uma era mulher, segundo um relatório do Global Media Monitoring Project (Projeto de Monitoramento da Mídia Global), que divulga seus resultados a cada quatro anos. Uma análise mais detida dos dados mostra que, mesmo quando mulheres são entrevistadas, é para dar declarações pessoais, e não por sua expertise. É uma situação parece não ter se alterado quase nada nos últimos anos, embora algumas redações estejam começando a mudar isso ativamente.
Estudos mostram que, em geral, as mulheres recebem maior exposição nas seções dos jornais coordenadas por editoras mulheres, bem como em jornais cujos conselhos editoriais têm maior participação feminina. Mas os homens têm uma representatividade desproporcionalmente maior desde os editores até os repórteres, o que significa que questões fundamentais para as mulheres costumam não ser reportadas. Um desses temas é precisamente a conexão entre as soluções de conservação e a igualdade de gênero.
As mulheres são muito mais afetadas pelas mudanças climáticas e pela degradação ambiental do que os homens. Evidências crescentes mostram que as desigualdades entre os gêneros, tais como na posse da terra e no acesso reduzido das mulheres a energia, água e saneamento, impactam negativamente o bem-estar humano e ambiental. A crise climática só agrava as disparidades de gênero.
A violência baseada em gênero contra mulheres que defendem o direito humano ao meio ambiente está especialmente em alta, e cada vez mais normalizada tanto nas esferas pública quanto privada, tornando mais difícil que as mulheres obtenham justiça. Como as comunidades indígenas costumam estar na linha de frente da defesa de seus territórios, recursos e direitos contra grandes projetos de extração e interesses corporativos, as mulheres indígenas em particular enfrentam um monstro de duas cabeças: a violência de gênero e o racismo.
“Lutamos para defender nosso território de invasões e buscamos essa autonomia para lutar por direitos”, diz Taynara Caragiu Guajajara. “Ser mulher é difícil numa sociedade machista, mas ser uma mulher indígena ou negra se torna ainda mais difícil, porque o preconceito é muito grande.”
Ter mais mulheres envolvidas em tudo, das decisões ambientais à política do clima, beneficia a sociedade como um todo. Maior participação feminina na formulação de políticas públicas aumenta a igualdade e a eficácia das intervenções na política climática; evidências mostram que uma maior desigualdade de gênero está relacionada com maiores taxas de desmatamento, poluição do ar e outros índices de degradação ambiental.
Ainda assim, menos de 1% da filantropia internacional vai para iniciativas ambientais lideradas por mulheres, e elas continuam sendo excluídas das decisões sobre terras e recursos ambientais.
“A comunidade global não pode se permitir tratar a conservação da natureza e a luta pela igualdade das mulheres como questões separadas – elas precisam ser abordadas em conjunto”, disse Grethel Aguilar, diretora-geral da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), no Dia Internacional das Mulheres deste ano.
A perda de cobertura florestal do Maranhão nas duas últimas décadas mostra a importância crucial das terras indígenas para proteger áreas intactas de floresta. “Esses territórios indígenas são ilhas de verde num mar de desmatamento em um dos lugares mais desmatados do Brasil”, diz Shenker, da Survival International.
A Terra Indígena Caru, por exemplo, teve 4% de perda florestal desde 2000, ao passo que o estado do Maranhão perdeu quase um quarto de suas florestas no mesmo período, de acordo com dados do Global Forest Watch. Além de outros benefícios decorrentes da preservação, as matas da região também protegem alguns dos últimos Awá isolados. Um vídeo de dois homens Awá feito na vizinha Terra Indígena Arariboia chegou às manchetes internacionais em 2019.
Esses trechos de floresta intacta também são cruciais para a proteção de “soluções climáticas naturais”, que implicam essencialmente frear o desmatamento, melhorar o manejo das florestas e restaurar ecossistemas. Elas podem contribuir com mais de um terço da mitigação climática de baixo custo necessária entre agora e 2030 para estabilizar o aquecimento abaixo de 2° Celsius.
De acordo com um artigo seminal sobre soluções climáticas naturais, a abordagem mais eficaz nos trópicos é proteger ativamente as florestas intactas. A proteção dessas florestas tem um potencial de mitigação de baixo custo duas vezes maior do que o segundo melhor caminho, o reflorestamento. A Amazônia como um todo desempenha um papel vital na atenuação das mudanças climáticas, absorvendo e armazenando dióxido de carbono em sua vegetação. Quando cortadas, queimadas ou degradadas pela extração de madeira, as árvores não só deixam de exercer essa função, como podem se tornar uma fonte de emissões de carbono.
“Proteger e/ou conservar ecossistemas intactos é a prioridade número um”, diz Kate Dooley, pesquisadora do Australian-German Climate & Energy College na Universidade de Melbourne, que escreveu vários artigos sobre o potencial das florestas como uma solução climática natural. “Muito, muito depois está plantar árvores. E mesmo assim, precisa ser o tipo certo de árvores.”
Segundo Dooley, pesquisas mostram que as florestas estão mais preservadas em áreas administradas coletivamente, como é o caso dos Guardiões e das Guerreiras da Floresta no território Guajajara. “Com ou sem a posse garantida, essas terras são mais intactas e menos degradadas.” De acordo com um relatório de 2018 da Rights and Resources Initiative, quase 300 bilhões de toneladas de carbono estão armazenadas em terras de administração coletiva em todos os biomas florestais, e inúmeros estudos revelaram que a melhor maneira de proteger as florestas é empoderar as pessoas que vivem nelas, garantindo-lhes o direito à terra e legitimidade.
Isso vale especialmente para terras indígenas em países como o Brasil. Entre 2000 e 2015, as terras indígenas demarcadas tiveram um décimo da perda florestal dos territórios não-indígenas. O Brasil abriga aproximadamente 900 mil cidadãos indígenas de 305 povos diferentes, a maioria dos quais vive em terras demarcadas. Mesmo assim, mais da metade das áreas reivindicadas pelos grupos indígenas ainda não receberam reconhecimento formal do governo.
“A vigilância e a inspeção feitas pelos povos indígenas é extremamente importante, já que são eles que mais conhecem o território e a região”, diz Rodrigues da Silva, do Cimi.
Nesse sentido, as Guerreiras da Floresta afirmam que estão comprometidas com a continuidade das atividades de monitoramento, vigilância e educação tão logo seja possível voltar à floresta, uma vez que as expedições de vigilância estão paralisadas pela pandemia de covid-19. “Não estamos fazendo monitoramento para cuidar de todos na aldeia”, diz Cícera Guajajara da Silva. “Especialmente para proteger nossa saúde, porque ninguém sabe que tipo de pessoa está dentro da floresta. Eles podem até estar infectados com o vírus, e o invasor pode trazer o vírus para o nosso território.” Mais um item para a lista de ameaças que pairam sobre a Terra Indígena Caru.
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Guerreiras da Amazônia mostram que igualdade de gênero e conservação da floresta andam de mãos dadas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU