26 Junho 2019
Mais de quarenta representantes de oito povos indígenas discutiram como suas vidas já são drasticamente impactadas pelo superaquecimento do clima
A reportagem é de Patricia Bonilha, publicada por Greenpeace, 21-06-2019.
O aumento da “quentura”, o desaparecimento de animais e de diversas frutas nativas, a perda de roças inteiras, a eclosão de doenças não-comuns, a alta incidência de incêndios e as mudanças no seus modos de vida tradicional são algumas das alterações que 44 mulheres indígenas de cinco povos do Maranhão (Krikati, Awá, Gavião, Ka´apor e Guajajara), um do Pará (Tembé), um do Tocantins (Krahô) e um de Roraima (Macuxi) afirmam já impactar severamente o dia-a-dia de suas comunidades.
Reunidas em Carolina (MA), entre os dias 12 e 14 de junho, para a realização da oficina intitulada “Mulheres indígenas e o impacto das Mudanças Climáticas”, elas se debruçaram sobre temas ainda não muito conhecidos, como desenvolvimento econômico, globalização e economia verde. Jovens ou anciãs, muitas delas participavam pela primeira vez de um evento como aquele e a timidez de falar em público ou para driblar as dificuldades de falar na língua do “caraí” (não indígena) eram explícitas.
Com a presença de muitas crianças e bebês – o que, certamente, não ocorreria em uma reunião de lideranças masculinas –, o encontro foi marcado pela diversidade também em relação ao tempo de contato com a sociedade não indígena. O povo Awá, por exemplo, é de recente contato, de cerca de 40 anos; enquanto o povo Guajajara já está em contato com a nossa sociedade há mais de 400 anos.
Elas compartilharam diversas vivências, como o trabalho de sensibilização realizado no entorno de alguns territórios para que a vida da floresta seja respeitada e o apoio aos maridos no monitoramento dos territórios – os Guardiões da Floresta. Também demonstraram suas preocupações com a finitude dos bens naturais e a necessidade de valorização da cultura (língua, danças, rituais, modo de vida) e, especialmente, das anciãs e anciãos.
Para além dos problemas e desafios, as participantes focaram bastante energia em soluções (que muitas vezes já empregam em seus territórios), como o reflorestamento, a manutenção de viveiros com sementes nativas e plantas medicinais, a criação de abelhas, a produção de mel, a agroecologia, as trocas de sementes, a revitalização de rios e nascentes, as brigadas contra incêndio, o cuidado com a espiritualidade e os seus Encantados e, claro, a contínua e permanente proteção da Mãe-Terra, suas águas e matas.
Abaixo, seguem os incríveis testemunhos de sete destas “guerreiras”:
Acari Awá-Guajá | Foto: Greenpeace
“É importante a gente repassar os conhecimentos que a gente aprende para as nossas parentes, porque nem sempre nós, mulheres, temos esta oportunidade, esta autonomia de sair da aldeia e participar de discussões como essa. As mulheres têm seu próprio conhecimento e elas também nasceram pra lutar. Então, é preciso que a gente esteja junto com os homens, defendendo nossa cultura, que está ameaçada. O jabuti, por exemplo, tá em extinção. O mutum também. Raramente a gente vê estes bichos. E isso é muito triste. No ano passado, fizemos uma roça de mandioca. Mas foi um ano perdido porque o inverno foi muito longo e perdemos a colheita toda. Por isso é importante respeitar os territórios indígenas, porque a gente preserva a terra e a água”.
Edilena Krikati
“Nós, mulheres, somos as primeiras a sentir e observar os impactos e as mudanças relacionadas ao clima no nosso cotidiano porque temos uma relação especial com a natureza e o território. Somos nós também que guardamos as sementes e passamos estes e outros conhecimentos para as novas gerações. Inclusive os diferentes modos de fazer a proteção territorial. A gente precisa se adaptar mais à natureza e não intervir tanto, fazendo grandes desmatamentos, mudando as paisagens, construindo barragens, estradas. E não percebemos o quanto isso é ruim pra nossa própria existência. Nós, indígenas, tiramos da natureza tudo o que precisamos pra comer, pra viver e pra estar lá. Se isso faltar, a gente passa a não existir mais porque a nossa relação é um todo, não é em partes. Nós somos só um, que estamos lá naquele conjunto maior. Não estamos fora da natureza”.
Maria Betânia Macuxi
“São muitos os impactos que a gente sente nas aldeias devido ao avanço das mudanças climáticas. Hoje, não tem mais peixe suficiente nos rios pro consumo do povo indígena. A gente não sabe mais quando começa e nem quando termina o inverno. As enchentes que acontecem agora não eram tão comuns antes. As nossas plantações não são mais abundantes como eram. O garimpo ilegal nos Yanomami, por exemplo, já contaminou muitos indígenas com mercúrio… E tudo isso nos deixa muito tristes porque nós cuidamos e protegemos nossos territórios. Não só pra nós, mas pra todos os brasileiros. Estamos estudando e cada vez mais entendendo as causas das mudanças climáticas, como os combustíveis fósseis, a pecuária, o desmatamento, a mineração, as hidrelétricas. Todas as graves alterações no clima são causadas pelas ações humanas. Todo este desequilíbrio. Seria importante que estas pessoas que estão destruindo a natureza, se sensibilizassem, de verdade, porque não podemos viver sem a natureza”.
Maria Helena Gavião
“As mulheres sentem muito mais as mudanças climáticas, na aldeia, na roça. E tudo tem mudado muito rapidamente. Antes, em abril, já tinha passado a chuva. Hoje, chove até julho. Não sabemos mais quando vai começar nem quando vai parar de chover. A gente fica perdido. Não sabe quando deve começar a fazer a roça. E quando a gente fala de clima, a gente fala de proteção do território, a gente fala de Bem Viver. Tá tudo interligado. Quando a gente tá no mato, a gente sente a energia da mata, da floresta. É muito forte e muito bom. Por isso que a gente tem que preservar. Sem esse conhecimento a gente não vive. E isso é passado de geração pra geração. Sem floresta, a gente não tem vida. É nossa casa, nossa história, nossa origem… Tudo depende da floresta. Os não indígenas não têm esta ligação com a natureza. Acham que o capitalismo, os empreendimentos, o dinheiro é vida. Mas não é! Sem água, como vamos viver? E o que é mais vital, tá tudo sendo ameaçado, destruído, todo dia”.
Sônia Guajajara
“As mudanças climáticas são como um anúncio de um período ainda mais drástico, com secas e enchentes, alterações severas que exigem conversas e cuidados de nós, mulheres, pra lidar com estes danos. E as mudanças climáticas são causadas pela ação das pessoas e por este plano de progresso, que dizem que é um progresso econômico, mas é um grande regresso em relação aos direitos humanos, à proteção ambiental e, principalmente, à nossa própria existência e modo de vida. É claro que as políticas públicas que não protegem e não respeitam o meio ambiente, que só priorizam o viés econômico e o lucro, vão aumentar cada vez mais as mudanças climáticas, e causar mais destruição e desmatamento. O atual governo Bolsonaro é totalmente alinhado com o que aumenta as mudanças climáticas, como as mineradoras, a indústria madeireira, as monoculturas, o agronegócio. Por isso lutamos contra este modelo de destruição, que se baseia na exploração dos recursos naturais. No Brasil, a maior causa das mudanças climáticas é o desmatamento e a degradação ambiental, que inclui os incêndios. Precisamos pressionar o governo para fazer políticas que protegem o meio ambiente, o que não acontece hoje. Por isso temos uma guerra, uma briga grande aí, e estamos na mira dos assassinatos, das ameaças, da criminalização, porque estamos lutando com forças poderosas econômicas e políticas”.
Suluene Guajajara
“Estamos mostrando o nosso olhar sobre como as mudanças climáticas impactam diretamente nossa aldeia, na saúde, na cultura e na produção. Isso reflete também em mudanças no nosso modo de vida. Tivemos um incêndio muito grande na TI Arariboia, que destruiu mais de 60% da floresta, em 2015. De lá pra cá todo ano acontece incêndio. Isso leva nossas caças, nossos pássaros, e quando vamos fazer a Festa da Menina Moça, já não encontramos mais as caças que precisamos pra realizar a festa. E por que o incêndio entrou? Porque houve desmatamento, teve exploração de madeira. Isso impacta nossa cultura. Nossas roças também não produzem como antes porque a terra tá queimada, o solo não produz. E o calor… a gente sente que o sol tá muito mais próximo de nós que antes. Nossos rios estão secando. O não indígena fez carvoaria na nascente do Rio Buruticupu e ele tá muito fraco agora. E, pra nós, o rio é sagrado. Não é só pra beber que a gente pega água, não é só pra pescar. Ali vive outro povo, Encantado, que depende de nós. O nosso contato com o povo Encantado depende da água. E não queremos perder o que a gente tem de sagrado. Com a diminuição da produção na roça, a comunidade tem que comprar alimentos industrializados na cidade. Hoje temos muito mais hipertensos, temos problemas cardíacos, muitos casos de diabete. São doenças não tratadas por nós, causadas pelos alimentos industrializados e pelo contato direto com o mundo externo. Tem doenças que o pajé cura, mas câncer o pajé não cura”.
Valdilene Ka´apor
“Esta é a primeira vez que participo de um debate como este, que é importante pra toda a nossa comunidade. A gente tem até vergonha de falar na frente de todo mundo, mas é assim que começa. Porque acredito que nós, mulheres, temos que participar da luta pelo território, porque ele está em perigo com o desmatamento, que tem avançado muito. A gente, lá na aldeia, não tem mais bacuri nas nossas terras, e nem outros frutos. Os brancos destruíram tudo pra fazer estrada. Mas não vamos mais deixar acontecer isso”.
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Mulheres indígenas debatem mudanças climáticas para garantir proteção territorial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU