11 Setembro 2020
Como Éric Sadin segue a tradição dos filósofos franceses do século XX, não escapa do debate político-cultural, mas muito menos das frases provocativas: “Francis Fukuyama se equivocou: o fim da história não teria chegado após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o triunfo planetário do liberalismo político e econômico, mas estaria se consumando hoje em favor da generalização do uso da inteligência artificial”, aponta em seu último livro, “La inteligencia artificial o el desafío del siglo”, publicado recentemente na Argentina por Caja Negra.
A reportagem é de Fernando D’Addario, publicada por Página/12, 09-09-2020. A tradução é do Cepat.
A partir de trabalhos como “La humanidad aumentada” e “La silicolonización del mundo”, Sadin ganhou terreno entre os pensadores distópicos do século XXI, ao mesmo tempo em que colocou em palavras e no tempo presente, em uma perspectiva fenomenológica, o que milhões de telespectadores apreciaram como uma advertência na série Black Mirror: o advento de mudanças radicais no modo de construção do “real”. Estas modificações, destaca o filósofo, são subsidiárias de transformações evidenciadas no estatuto das tecnologias digitais, que passaram de “próteses acumulativas” a se levantar como entidades capazes de “enunciar a verdade” a partir da interpretação automatizada de situações.
A tecnologia se torna, assim, “antropomórfica”, concretizando no século XXI o que Simone Weil, filósofa e ativista do século XX, soube enxergar em “A condição operária”: “as coisas desempenham o papel dos homens e os homens desempenham o papel das coisas. É a raiz do mal”.
Sadin entende o poder de sedução que a inteligência artificial exerce. Analisa seus truques e sua ferramenta coativa mais eficaz: a partir dos novos avanços da tecnologia patenteada no Vale do Silício, a Inteligência Artificial é capaz de estabelecer diagnósticos (sobre as questões mais diversas, da ciência médica à intimidade do indivíduo) mais precisos que a inteligência humana, porque dispõe de um manejo e de uma correlação de dados impossível de igualar, em tempo real, pelo homem de carne e osso.
Nesse sentido, o filósofo francês denuncia “a propagação de um anti-humanismo radical”, todas as vezes em que o tecnoliberalismo, através de uma neolinguagem gerencial, busca “reduzir certos elementos do real a códigos binários, excluindo uma infinidade de dimensões que nossa sensibilidade, sim, pode capturar e que escapam do princípio de uma modelização matemática”.
O autor coloca no papel argumentos que se vinculam ao imaginário sartreano, ainda que obviamente traduzidos para outro contexto: “De agora em diante, esperamos dos processadores que nos governem com maestria, que nos libertem do fardo que suportamos desde o alvorecer dos tempos e que, no entanto, constituía até há pouco o sal da vida e a nossa relação com o mundo: o fato de ter que nos pronunciar a cada instante e gerar um compromisso. Em síntese, o fato de colocar em jogo nossa responsabilidade”. E segue: “O que está em jogo é a negação de nossa vulnerabilidade, essa fragilidade constitutiva de nossa humanidade que faz Aristóteles dizer que uma vida tão vulnerável, no entanto, é a melhor”.
Em sua genealogia da verdade, Sadin cita Nietzsche. Diz que o autor de “A origem da tragédia” já apontava que a vontade de “fazer sentido com tudo” derivava de uma negação da complexidade irredutível que governa a vida. Nietzsche relacionava esta negação com a loucura. A relativização dessa noção de Verdade, que rastreia em Foucault, em Derrida (“A verdade: é em seu nome maldito que nos perdemos”) e em Baudrillard (“a verdade é aquilo do qual é preciso se libertar o mais rápido possível e passar o problema para outro”) encontra hoje uma nova mudança de paradigma, que lhe restitui o poder perdido.
Neste novo regime de verdade, sustenta o filósofo, as categorias pós-modernas impostas nas últimas décadas do século XX já não servem. “Não se trata tanto de controle e coleta abusiva de dados pessoais, mas de uma conformação muito distinta, cujo objetivo não é vigiar, mas influenciar nos comportamentos”, escreve. Este “Leviatã algorítmico” não pode ser enfrentado como os velhos dispositivos de poder institucionais, já que “nunca podemos tê-los diante de nós, para que que, com total lucidez, possamos saber do que se trata, porque nunca nos mostra a totalidade de seu rosto e foge indefinidamente, livre assim para exercer, ao abrigo de qualquer forma de oposição consequente, seus plenos poderes”.
Sadin também alerta contra a iminente instauração de um “Estado plataforma”. Uma instituição política que operaria em retirada, segundo sua visão, “para que tudo funcione como um processador que regularia a atividade pública”. O novo ethos econômico se legitima através de uma falsa ideia de “eficácia” que permeia a administração automatizada das condutas, através dos aplicativos.
Com tudo isto, a política dá um tiro no pé: “O desígnio social-liberal acordado não faz outra coisa a não ser satisfazer a ambição ultraliberal que vê em tal automação a oportunidade histórica de reduzir as prerrogativas do Estado, percebido como um vetor de perturbação da ordem espontânea do mercado”. O Estado mais próximo é o conduzido por Emmanuel Macron, líder que pretende instituir “uma nação que pensa e atua como se fosse uma startup”. A maioria dos funcionários atuais atuam, diz, como “community managers”.
O autor não é otimista, como é possível apreciar nestas linhas, pois inclusive nas manifestações de descontentamento atuais percebe a reprodução dessa matriz filosófica: “todas estas comunidades não sabem enxergar para além da ideia fixa da proteção da vida privada, tão emblemática do egoísmo generalizado da época. Jamais se preocupam com os modos de organização induzidos pelos sistemas, pelo utilitarismo crescente, pelas lógicas de poder que estão sendo implementadas. Não. Estão obnubiladas somente pela preocupação com a preservação dos dados pessoais. A liberdade se restringe a uma dimensão estritamente individual, mas se defende no seio de uma causa comum”.
Ainda que desencantado, Sadin volta a Foucault para exigir das pessoas uma “intolerância ativa” que enfrente, neste caso, a desumanização radical produzida pelo tecnoliberalismo. “Defender o real se converte no novo nome singular da principal luta política de nosso tempo”, conclui, buscando contagiar os leitores com um entusiasmo que evidentemente não possui.
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Éric Sadin alerta contra a “propagação de um anti-humanismo radical” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU