19 Agosto 2020
Para toda a tradição judaica, da qual o próprio Jesus é filho e, por isso mesmo, expressão, a relação com as Escrituras se configura deste modo: trata-se de uma relação viva, de um questionamento recíproco e incansável, que vai do texto a quem o escuta e vice-versa.
O comentário é de Alessandro Esposito, teólogo e pastor valdense italiano, em artigo publicado por Riforma, semanário das Igrejas evangélicas batistas, metodistas e valdenses, 21-08-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O texto não é matéria inerte: pelo contrário, é coração pulsante que alimenta uma alegre inquietação, um desejo que se renova a cada nova escuta e não se apaga na explicação, mas se desperta e se reacende, toda vez de novo, no comentário.
Cada texto, de fato, cada relato é um convite a escavar, à busca de sentidos que florescem a cada passo, conservados no próprio coração de palavras que são como indícios que nos colocam nos passos de uma busca que não tem fim e que se chama fé.
De fato, crer significa permanecer viandante, manter o coração e a mente abertos para aquele dom de novidade em que Deus se deixa encontrar, mas nunca identificar de uma vez por todas e, menos ainda, aprisionar.
Fé é frescor que se alimenta de uma leitura sempre renovada e nunca concluída, aquela mesma leitura que faz com que, dia após dia, nos dirijamos a uma fonte que nos dá, ao mesmo tempo, a sede e a água.
Isto é a Bíblia: água de nascente que, enquanto mata a sede, volta a despertá-la. Nós nos aproximamos dessa fonte com as pequenas ânforas dos nossos corações, que se enchem da sua água para depois se esvaziar e voltar a recorrer a ela, incessantemente.
A nossa sede pode ser saciada, mas nunca extinguida: aquela mesma Palavra que a extingue, de fato, também volta a alimentá-la. Mas, para que isso ocorra, as Escrituras devem ser abordadas, interrogadas, interpretadas: de fato, nem sempre a sua compreensão é imediata, como aliás ocorre com todos os encontros significativos que transformam as nossas vidas e os nossos olhares.
É preciso parar perto das Escrituras, enraizar-se nelas como a árvore que lança raízes profundas para dela se alimentar, como narra o início do livro dos Salmos.
E eis que, em uma Jerusalém que ainda está tentando sacudir a poeira dos seus escombros, a escuta se faz pausa que aguça os sentidos.
Narra o livro de Neemias, no versículo 8 do oitavo capítulo: “Liam o livro da Lei de Deus em pequenos trechos, traduzindo-o e dando explicações, para que o povo entendesse a leitura”.
Em pequenos trechos: assim, um povo de coração ferido pela recordação ainda viva de um exílio prolongado e doloroso, recorre à Palavra. Não se trata, por assim dizer, de uma embriaguez que inebria, para depois só deixar o rastro de um atordoamento fugaz e estéril. Não: trata-se de uma escuta atenta e paciente, que contempla pausas, perguntas, reflexões, esclarecimentos.
Nas páginas que exalam sentido não se pode correr distraidamente: caso contrário, elas escapam e não penetram profundamente. Talvez o tempo marcado por interrupções que – por um curto período que pareceu tão longo para muitos – abrandaram a nossa irrefreável corrida, talvez este tempo tenha tentado nos ensinar que uma respiração sem pausas logo se torna curta e fatigante.
Porém, a tão pouca distância de eventos que interromperam bruscamente o ritmo sincopado das nossas vidas aceleradas, tenho a impressão de que a nossa tentativa desajeitada é a de voltar apressadamente àquela loucura que chamamos de “normalidade”, olhando para o passado recente como para um pesadelo do qual despertamos, despertando-nos, juntos, para a mesma indiferença.
Um tempo mais distendido, inicialmente apreciado, acabou perturbando aqueles e aquelas que não sabem o que fazer com ele, inquietados mais do que confortados pela possibilidade de ficar muito tempo na companhia de um desconhecido que, casualmente, leva o mesmo nome que nós.
Assim, o mais rápido possível, voltamos a correr, com o único e insensato objetivo de nos afastar o máximo possível daquele ser que parece ter a nossa aparência e cuja presença indistinta e incômoda nada mais faz do que nos deixar desconfortáveis.
A escuta da Palavra, pelo contrário, representa o espaço do encontro com Deus, assim como do retorno a si mesmo: aspectos distintos, certamente, mas não alheios um ao outro. O texto bíblico, de fato, é ao mesmo tempo sentimento de Deus e experiência de si, aproximação tanto a um quanto a outro. É aventura de autenticidade, perguntar alegre e inesgotável, itinerário que leva a Deus enquanto conduz a si mesmo: na escuta da Palavra, de facto, abraçam-se novamente esses universos íntimos e desconhecidos, diferentes mas entrelaçados.
Buscar incessantemente os infinitos sentidos que o texto bíblico conserva e, se oportunamente acolhido e interrogado, liberta, significa ao mesmo tempo lançar uma luz sobre si mesmo, sobre aquele mistério inesgotável que nós somos para nós mesmos, para nós mesmas.
Lemos e relemos a Bíblia para compreendê-la melhor, sem dúvida, mas também – e muitas vezes nos esquecemos disto – para nos compreender melhor.
Para que essa viagem fascinante e interminável possa começar, devemos readquirir a familiaridade com uma Palavra indomável e viva, livre e provocadora, que se agita dentro e sob as páginas de cada texto que chega até nós e nos interpela.
É sobre isso que narra o belo comentário do biblista judeu francês David Banon, que, no seu livro “La lettura infinita” [A leitura infinita], escreve, também para nós, estas palavras: “As Escrituras não deveriam ser objeto de devoção ou sacralização, práticas geralmente ligadas ao culto aos mortos; não um ‘testamento’, portanto, mas sim um enamoramento: uma experiência de vida, de descobertas, de encontros, de imprevistos, de novidades. Uma aventura do sentido (...) As Escrituras não são um pacote selado que se passa de mão em mão e de geração em geração sem abri-lo, mas sim um tesouro inesgotável, a ser tomado com ambas as mãos” (David Banon, “La lettura infinita”, Milão: Jaca Book, 2009, pp. 70-71).
Em suma, um livro que fala para nós porque fala de nós: páginas para voltar a cada dia de novo, porque a cada dia tem algo a dizer sobre aquela mudança que somos e que a Bíblia nos ajuda a acolher e a compreender, orientando-nos naquele caminho constante em que consiste uma fé a ser aprendida a cada passo, na companhia daquele Deus, como nós, amante dos sendeiros e dos encontros de que todo caminho, também o da fé, está pontilhado.
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A Bíblia, água direto da nascente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU