22 Mai 2020
"Você, amigo, tem direitos. Mas muitos, que se encontram na mesma situação, não têm consciência desses direitos nem se mobilizam para reivindicá-los. Saia da inércia! Assuma a sua cidadania! E, na próxima eleição, vote melhor", escreve Frei Betto, escritor, autor de “O marxismo ainda é útil?” (Cortez), entre outros livros.
Você, como a maioria da população mundial, sobrevive graças ao fato de trabalhar muito e ganhar pouco. Por não ter tido acesso a direitos básicos, como educação gratuita de qualidade, você trabalha mais com o corpo que com a mente. Exerce uma atividade quase mecânica ameaçada de, em breve, ser ocupada por computadores e robôs.
Você não tem casa própria, plano de saúde e reservas bancárias. Se não trabalhar, não come. Por isso, é obrigado a viver para trabalhar, quando deveria ter o direito de trabalhar para viver.
De repente, irrompe a peste. E contra ela não há defesas do organismo nem vacinas. Surgida na China, em dezembro de 2019, em menos de seis meses se globalizou. O único recurso para não ser infectado é o isolamento social. Ficar em casa. Evitar sair à rua. Abrir o computador e trabalhar online. Tirar da estante o livro de culinária e preparar a própria refeição. Usar o telefone para solicitar entregas em domicílio.
Ocorre que você não pode se dar a esses luxos. Não dispõe de computador e precisa poupar os créditos do celular. Você é um dos 50 mil comerciários desempregados em São Paulo. A loja em que trabalhava está de portas fechadas. Não há data para reabrir. O proprietário despediu todos os funcionários. A partir do próximo mês você não receberá salário.
Você não pode ficar em casa. A exemplo de lobos e águias, é obrigado a agir como todos os animais diante da necessidade de alimentar seus filhotes – sair da toca ou do ninho. Se ficar em casa, os filhos terão fome. Você precisa ir à rua: para fazer biscate, ingressar na fila do auxílio emergencial do governo, comprar comida e remédios. Forçado por sua condição social, é obrigado a se expor ao risco de contaminação pela Covid-19 ao entrar no ônibus, no metrô e em filas. E se isso acontecer, infectar sua família.
A espada de Dâmocles paira sobre a sua cabeça. Se ficar em casa, morre de fome. Se sair, de infecção. Não lhe resta alternativa?
Sim, há alternativa. Chama-se governo. Você não tem consciência disso, mas ele é seu empregado. Porque quem o administra foi colocado lá também pelo seu voto. E todo o dinheiro que ele tem vem dos impostos que você e outros milhões de brasileiros pagam. Sim, sei que você é isento de declarar imposto de renda. Ano passado não ganhou mais de R$ 2.379,97 por mês. Ganhou R$ 1.497. Mas em cada compra que fez, no mercado, na padaria ou na farmácia, os impostos estavam embutidos nos preços das mercadorias.
O governo tem a obrigação de garantir a sua vida e a de sua família. Em um momento de pandemia como este, você poderia ficar em casa e se proteger se o governo lhe garantisse uma renda básica. Sei que você tenta ter acesso ao auxílio emergencial de R$ 600, mas lida com duas dificuldades, não ter computador e enfrentar as longas filas à porta da agência da Caixa Econômica Federal.
E por que o governo não cuida da sua proteção e de sua família? Porque não tem vontade política. Como o do Brasil, vários outros governos não assumem a responsabilidade de proteger sua população. Nos EUA, o presidente Trump havia declarado que a infecção “não passa de uma gripe comum”. Até que em 11 de março ele se deu conta de que a Covid-19 já tinha se disseminado por 45 estados e causado 40 mortes. E as ações das Bolsas de Valores despencaram. Então ele mudou de tom. Um pouco. Não muito.
Como Bolsonaro adora imitá-lo, disse aqui no Brasil que a enfermidade era apenas uma “gripezinha”. Quando subiu o número de mortes e ele foi perguntado o que achava, reagiu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” Não fosse tão omisso e desdenhoso, ele poderia fazer muito para evitar um genocídio no Brasil.
Não fosse misógino, ele poderia fazer aqui o que mulheres chefes de Estado fizeram em seus países. A primeira-ministra da Islândia, Katrin Jakobsdóttir, submeteu todos os 365 mil habitantes do país a testes gratuitos. Apenas 10 mortes no país. A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, obrigou os quase 5 milhões de habitantes do país a ficarem um mês trancados em casa. E fechou as fronteiras do país. Teve apenas 21 mortes. E em nenhum dos dois países o confinamento significou perda de renda das famílias.
Já os governantes autoritários minimizaram o vírus, como Bolsonaro no Brasil, Orban na Hungria, Duterte nas Filipinas, Modi na Índia e Áñez na Bolívia. E as mortes se multiplicam dia a dia.
Surgido na China em dezembro de 2019, o vírus se globalizou e fez o mundo parar. A Terra não é plana, mas parou de girar. A peste provoca uma crise sistêmica. Toda a economia entrou em colapso. Em muitos países funciona, pela primeira vez, o toque de recolher em tempos de paz. As casas se tornaram prisões, com a diferença de que as chaves ficam do lado de dentro das portas. A vida se movimenta online. A burca, o véu islâmico que cobre o rosto das muçulmanas, visto com tanto preconceito, é agora obrigatória para todos nós.
Você, amigo, tem direitos. Mas muitos, que se encontram na mesma situação, não têm consciência desses direitos nem se mobilizam para reivindicá-los. Saia da inércia! Assuma a sua cidadania! E, na próxima eleição, vote melhor. E guarde esta bela frase impressa nos containers chineses desembarcados na Itália em solidariedade às vítimas: “Somos ondas de um mesmo mar, folhas de uma mesma árvore, flores de um mesmo jardim”.
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Você e o governo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU