06 Março 2020
"O que ninguém duvida é o exercício da ágape: 'Para Paulo, como para Tomás de Aquino, a maior das três é a caridade. Talvez não seja necessário fazer uma longa demonstração sobre o modo como Jesus dá prova de caridade. Durante sua curta vida pública, sua caridade se traduz em duas formas principais, em um envolvimento contínuo em relação a doentes, leprosos, pessoas marginalizadas social e fisicamente e também pelos ensinamentos dados às multidões que vieram ouvi-lo'", escreve Carlo Molari, teólogo italiano, padre e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma, em artigo publicado por Rocca, Nº. 5, 01-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Várias vezes nesta seção propus reflexões e discuti sobre a fé de Jesus, mas nunca refleti sobre a totalidade de sua vida teologal. Oferece-me a oportunidade um artigo breve, mas denso, do jesuíta Marco Rastoin do Centro Sèvres em Paris, publicada na revista dos Jesuítas de Bruxelas Nouvelle Revue Théologique 142 (2020) n.1 (p. 23-1) intitulada: A fé, a esperança e a caridade de Jesus de Nazaré, mais tarde abreviada no título das outras páginas: As virtudes teologais de Jesus. A particularidade do artigo é que o padre Rastoin, na vida histórica de Jesus e em sua pregação, identificou o exercício de cada uma das virtudes teologais em conexão com um termo-chave: "Abbá" para a fé, "Reino" para a esperança e os "pequeninos" para a caridade. O Padre Rastoin observa: "É muito impressionante ver como Jesus se encaixa totalmente em seu universo religioso e cultural nas Escrituras e na tradição de Israel e como é capaz de criatividade e originalidade" (ibid. p. 27). No resumo, repete: "o que impressiona é a maneira pela qual Jesus soube ser fiel às Escrituras de Israel prolongando sua trajetória, mesmo inovando na escolha de seus conceitos-chave, aos quais ninguém está explicitamente conectado nas Escrituras" (ibid. p. 31).
A fé de Jesus. Não há dúvida sobre a opinião do Padre Rastoin sobre a fé de Jesus. Depois de recordar a pergunta de Jacques Guillet "o que seria de Jesus moribundo se for privado da fé?" (La foi de Jesus Cristo, Paris Mame 1980, 20102 p. 153 [tr. it. Jaca Book, Milão 1982], citado por Rastoin na p. 25), encerra o parágrafo relativo à fé com esta clara conclusão “Jesus é um crente exemplar e sua fé são inteiramente orientada para o Pai, que é ao mesmo tempo seu pai e o Pai de todos" (ibid. p. 25). Também na conclusão sumária de todo o artigo, ele repete: "Jesus foi um ser de fé, capaz de doar toda a sua vida por sua fé e de depositar sua fé em toda a sua vida" (ibid. p. 31).
No entanto, é surpreendente que Rastoin não destaque nem relembre da longa tradição teológica relutante em falar da fé de Jesus. Pelo contrário, ele se refere à “tradição” para afirmar "que atribuiu um amplo espaço às três virtudes teologais" a partir da afirmação de Paulo: "agora, portanto, essas três coisas permanecem: fé, esperança e caridade" (1 Cor 13, 13a) .Quando, porém, ele deseja confirmar sua opinião sobre a fé de Jesus, cita apenas teólogos recentes: Hans-Urs von Balthasar (La foi du Christ, Paris Aubier 1968 [tr. it. Fides Christi, em Sponsa Verbi, Morcelliana, Brescia 1969 p. 41-72]), Jacques Guillet (La foi .., o.c.) e Paolo Domenico Dognin (La fede di Gesù. Una lettura della lettera agli Ebrei, Cerf, Paris 2015.) Podemos então nos perguntar por que o silêncio total sobre a tradição milenar que negava a Jesus o exercício da fé em Deus. O argumento de Tomás de Aquino havia se tornado doutrina comum também na catequese e no magistério ordinário da igreja: “O objeto da fé ... é a realidade divina não vista. Ora, o hábito da fé, como qualquer outro, recebe sua especificação do objeto. Se, portanto, se remove a não evidência da realidade divina, a fé se perde. Mas Cristo, no primeiro instante de sua concepção, teve uma visão plena da essência de Deus ... Portanto, não pode ter havido fé nele" (Suma teológica 3ª parte, q. 7, a. 3). O próprio Santo Ofício interveio no início do século passado para reprovar a posição de alguns modernistas que defendiam a opinião contrária (Decreto do Santo Ofício Lamentabili, 3 de julho de 1907, n. 32 Dhü 3432 e 34 DHü 3434).
Paolo Domenico Dognin em um artigo publicado na Revue de Sciences Philosophiques et Théologiques [89 (2005) n. 4 “La fede di Gesù in S. Paolo” p. 713-728], sobre o qual escrevi em Rocca há 14 anos, [69 (2006) La nostra fede in Dio in simbiosi con la fede di Gesù n. 9 pp. 50 f.], recordava que já em 1891, em um estudo sobre a Epístola aos Romanos, o exegeta alemão Johannes Haussleiter (1851-1928) enfatizava a importância da distinção feita por São Paulo entre a fé de Jesus em Deus e nossa fé em Jesus. Ele lembra então que, no início do século passado (1906), outro famoso exegeta alemão, Gerhard Kittel (1888-1948) "deplorava o fato que aquele artigo não tivesse recebido a acolhida que merecia". "No entanto, observa o padre Dognin, trata-se de uma questão que tem um impacto significativo na análise do pensamento de Paulo e na vida do crente cristão". Walter Kasper depois de afirmar que “Hb. 12.2 é o único texto que fala claramente da fé em Jesus, e que não existe outro texto paralelo sobre o argumento no Novo Testamento", acrescenta, corrigindo-se: "Ainda poderíamos encontrar um paralelismo em Mc. 9, 23. Aqui, Jesus, respondendo à invocação do pai de um jovem epilético: ‘se tu podes fazer alguma coisa, tem compaixão de nós, e ajuda-nos!’, Ele diz: "Se tu podes crer, tudo é possível para ao que crê’. Aqui, a fé é, portanto, considerada como participação na onipotência de Deus e, portanto, como uma capacidade de doar saúde. Se tivermos em mente o desenvolvimento dos conceitos da passagem, deveremos convir que somente Jesus, aqui, é aquele que crê, e que somente ele - precisamente em virtude de sua 'fé' - é capaz de curar. Ele nada é por si mesmo, mas tudo de Deus e por Deus. É, portanto, a forma vazia, o espaço aberto ao amor de Deus que se comunica. A doação de Jesus ao Pai naturalmente pressupõe a comunicação do Pai com Jesus. A cristologia sucessiva da filiação nada mais é do que a interpretação e tradução do que está oculto na obediência e doação filial de Jesus. O que Jesus viveu antigamente, antes da Páscoa, passou a se expressar, ontologicamente, no período pós-pascal" (Gesù il Cristo Queriniana, BTC 23, Brescia 1975, p. 149).
Mesmo quem nega a fé de Jesus porque afirma sua visão beatífica, como Tomás de Aquino, admite sua esperança e ainda mais seu amor teologal. Para o padre Restoin, todo o evangelho de Jesus é uma mensagem de esperança: "talvez a expressão mais decisiva de sua mensagem, do começo ao fim, seja a do ‘Reino de Deus’ ou ‘Reino dos Céus’". "É o conceito com o qual Jesus inaugura sua pregação: 'o reino de Deus está próximo' (Mc 1,15). Isso deu origem à criação de numerosas parábolas" (ibid. p. 25). "Enquanto Jesus parece ter dado seus primeiros passos com maior proximidade seguindo Batista, parece que aqui tenha acrescentado sua própria nota" (ibid. p. 25). Mas é impressionante que, apesar disso, Jesus fale tão pouco de Deus rei. “Quem fala reino fala rei. Mas Jesus começa sua oração com Abbá/Pai e não com Rei" (ibid. p.25).
O que ninguém duvida é o exercício da ágape: “Para Paulo, como para Tomás de Aquino, a maior das três é a caridade. Talvez não seja necessário fazer uma longa demonstração sobre o modo como Jesus dá prova de caridade. Durante sua curta vida pública, sua caridade se traduz em duas formas principais, em um envolvimento contínuo em relação a doentes, leprosos, pessoas marginalizadas social e fisicamente e também pelos ensinamentos dados às multidões que vieram ouvi-lo" (ibid. p. 27). “Sua originalidade parece dupla: por um lado, ele se dirige às pessoas. Por outro, ele ensina ... Diferentemente de Batista que as pessoas procuravam no deserto, Jesus se move e aceita os convites. Por quê? Por não se contenta - por assim dizer – em curar, ele ensina ... Sua caridade se orienta inseparavelmente para o Pai e para os homens. Eles também são reais para ele. Ele se levanta de noite para orar, exulta de alegria pela ação do Espírito Santo" (ibid. p. 27.). Quanto à característica específica da caridade de Jesus, Rastoin escolhe o caminho dos "pequeninos". Certamente, o Salmo 8 já fala disso, e Jesus o cita (em Mt 21,16), mas Rastoin observa que "o tema é raro na Bíblia" e que Jesus parece utilizá-lo de maneira original em muitas circunstâncias" (ibid. p. 28). Depois de citar Mateus 18,10 ("seus anjos no céu sempre veem o rosto de meu Pai que está nos céus"), conclui: "Estamos sem dúvida aqui na raiz teologal do olhar de Jesus. Seu olhar de fé, de esperança e de amor vê em cada pessoa que cruza ou atravessa seu caminho, uma criatura de Deus, que também tem seu anjo. Ninguém é desprovido de um anjo e ninguém é invisível" (ibid. p. 29).
“A cada virtude ele vinculou um termo e dessa maneira deu, por assim dizer, um aspecto concreto e não abstrato. Ao vê-lo viver as virtudes teologais, entendemos melhor o que elas significam, como elas estão conectadas entre si e a que elas tendem" (p. 31).
Assim, também temos uma referência concreta para a nossa vida espiritual.
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A vida teologal de Jesus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU