26 Novembro 2019
“Em sua catequese de 2018 sobre o decálogo bíblico, o Papa Francisco convidou para combater o legalismo. Os mandamentos são muito mais do que regras a seguir. Sua força reside no princípio, no sentido, no valor que eles transmitem. Dessa força, o indivíduo se beneficia se não renuncia a sua própria responsabilidade como intérprete”, escreve Marco Ventura, publicado por la Lettura, 24-11-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, “os dez mandamentos funcionam assim há milênios: de tempos em tempos reinterpretados, eles se renovaram nas sociedades e contextos mais diversos. Tal foi a capacidade de adaptação do decálogo, que ainda hoje, diante do surgimento de novos mandamentos tão contrastantes com os tradicionais, não pode deixar de existir a dúvida de que estamos diante de mais uma prova de elasticidade das taboas recebidas por Moisés. Por esse motivo, o Pontífice denuncia o legalismo e desce, tanto quanto possível, até a fonte do decálogo e seu significado último. Para Francisco, aquele significado está na relação entre Deus e o homem, entre o pai e o filho”.
O discurso de Francisco de 15 de novembro é histórico. Falando na associação mundial de advogados criminais, o papa condenou um sistema de sanções a serviço dos poderosos do mundo, cego diante dos grandes crimes e violento com os mais fracos. Ao mesmo tempo, ele pediu nova justiça em defesa do planeta e da humanidade. A denúncia e a proposta surgem um ano após a conclusão da catequese dedicada por Francisco aos mandamentos bíblicos. Há milênios, o decálogo recebido por Moisés guiou judeus, cristãos, em certo sentido, muçulmanos e aqueles que nele se inspiram, mesmo sem considerá-lo de origem divina. A observância não era necessária.
Mesmo violados, os dez preceitos continuavam sendo o ponto de referência. Hoje, os dez mandamentos não são mais simplesmente violados, como têm sido há séculos, sem serem substancialmente postos em discussão. No mundo contemporâneo, eles mudam. Alguns são abandonados; outros adquirem um novo significado; outros ainda, impensáveis no passado, pressionam para se adicionar ao catálogo.
Tudo começou na lenta e progressiva erosão do primeiro mandamento: não terá outro Deus além de mim. No mundo global multirreligioso, a defesa da unicidade de meu Deus é desesperada: o testemunham os cruzados na terra do Islã, os judeus hostis a outras religiões em Israel, os muçulmanos que matam em nome de Alá. Até os politeísmos se imaginam únicos diante da multirreligiosidade global. O Hinduísmo de Narendra Modi é uma igreja ciumenta; o budismo birmanês é frequentemente intolerante. E até tanto ateísmo contemporâneo reivindica o culto devido ao único Deus.
A extrema defesa dos monoteísmos é, no entanto, ilusória. De um jeito ou de outro, capitularão. A mobilização pela liberdade religiosa e pelo diálogo inter-religioso sinaliza a inversão do primeiro mandamento. Como bem compreendem os resistentes mais puros, os católicos intransigentes e as Testemunhas de Jeová, acharemos cada vez mais normal, e cada vez mais justo, ter tantos deuses; nos parecerá cada vez mais ingênua, e inútil, a premissa hoje de rito a cada encontro de líderes religiosos, que o diálogo pressuponha as identidades e as reforce, e que ninguém queira o sincretismo, que é a fusão entre religiões. Teremos o nosso deus e, ao mesmo tempo, compartilharemos o deus dos outros.
Agora legítimos e necessários, os muitos deuses das religiões, por sua vez, terão que coabitar com as infinitas divindades da sociedade secularizada: os ídolos contingentes da inovação científico-tecnológica, as modas políticas e midiáticas, os dados. Tudo, de fato, se sacraliza. Cada vez mais rapidamente e comumente chamamos de divinas as coisas, as pessoas e os sentimentos. Consequentemente, o segundo e o terceiro mandamentos também se invertem: para não citar o nome de Deus em vão; santifica as festas. Eles se reescrevem ao contrário: não hesite, não espere, não pondere, não racione o nome de Deus. Use-o ao máximo que puder, sem medo. Enquanto isso, expanda o tempo da festa para os dias da semana e, claro, passe o domingo evidentemente no shopping.
Modificados os mandamentos sobre as relações com Deus, mudam também os mandamentos sobre as relações entre os homens. O quarto mandamento honra o pai e a mãe, não faz sentido em sociedades que aceitam e promovem as mais diversas formas parentais: mais pais e mais mães, inclusive do mesmo sexo, não são mais, como no passado, uma exceção a ser silenciada ou reprimida. Ao mesmo tempo, honrar os filhos é igualmente importante, e talvez mais ainda: os direitos dos menores competem com os direitos dos pais. Outros mandamentos são reescritos porque a cultura e a tecnologia mudaram o corpo. O quinto mandamento é invertido, não mate. Se eu quero que você me ajude a morrer, o teu ato de matar se torna não apenas lícito, mas um dever. Como se torna um dever impedir o desenvolvimento de fetos com malformações ou o nascimento de novas bocas para serem alimentadas em áreas superpovoadas.
O direito de desejar muda os mandamentos. O nono e o décimo mandamento são descartados: tenho o direito de desejar a esposa e os bens do meu próximo, e até o dever de fazê-lo, se quiser me sentir integrado à sociedade da livre circulação de pessoas, capitais, bens e serviços. O sexto mandamento também é revertido: atos de adultério e impuros tornam-se palavras sem sentido; impõe-se a norma do livre exercício da sexualidade virtual e real.
A crise do modelo econômico, a primazia do desejo e o direito ao bem-estar reescrevem o sétimo mandamento, não roubar. A competição global comanda uma vertiginosa mudança de recursos: tanto para os pobres quanto para os ricos, o roubar nem mesmo existe mais.
O oitavo mandamento é finalmente invertido. Verdadeiro e falso tornam-se tão subjetivos, voláteis, intercambiáveis, que o mandamento de não dar falso testemunho é substituído pelo mandamento da comunicação a todo custo, da conexão sem necessidade de conteúdos, da transformação da realidade em dado, independentemente da substância e do objetivo. Assim invertido, o oitavo mandamento se torna a arquitrave da sociedade da informação.
Os mandamentos virados de ponta-cabeça expressam os princípios de uma nova civilização da qual o Ocidente é o laboratório. No sexo, na autoridade, na medicina, como no tratamento de dados, o consenso conta: um consenso que é ainda mais fundamental quanto mais sentimos a fragilidade do indivíduo contemporâneo. O mesmo vale para a igualdade de gênero e a orientação sexual que derrotam o chauvinismo patriarcal do passado.
Afinal, os novos mandamentos já não têm no centro o homem, mas o planeta: não prejudicar o meio ambiente; não maltratar os animais; respeitar toda vida e todo material; proteger árvores e montanhas sagradas como se protege as igrejas. Os novos mandamentos já se projetam para o cosmos. E se preparam para proteger as máquinas inteligentes que revolucionarão a humanidade: será dedicado a proteger sua dignidade, um dia, o mais novo dos mandamentos.
Em sua catequese de 2018 sobre o decálogo bíblico, o Papa Francisco convidou para combater o legalismo. Os mandamentos são muito mais do que regras a seguir. Sua força reside no princípio, no sentido, no valor que eles transmitem. Dessa força, o indivíduo se beneficia se não renuncia a sua própria responsabilidade como intérprete.
Os dez mandamentos funcionam assim há milênios: de tempos em tempos reinterpretados, eles se renovaram nas sociedades e contextos mais diversos. Tal foi a capacidade de adaptação do decálogo, que ainda hoje, diante do surgimento de novos mandamentos tão contrastantes com os tradicionais, não pode deixar de existir a dúvida de que estamos diante de mais uma prova de elasticidade das taboas recebidas por Moisés. Por esse motivo, o Pontífice denuncia o legalismo e desce, tanto quanto possível, até a fonte do decálogo e seu significado último. Para Francisco, aquele significado está na relação entre Deus e o homem, entre o pai e o filho; com as palavras do Pontífice na audiência geral de 20 de junho de 2018, "o mundo não precisa de legalismo, mas de cuidado. Precisa de cristãos com o coração dos filhos”. A palavra "filho" é a mais recorrente na catequese sobre o decálogo de Francisco. Os mandamentos não estão nas negações, na obediência do súdito, mas nas afirmações e confiança que se instaura entre o pai e o filho. Precisamente essa relação assimétrica de autoridade, embora mitigada por décadas de teologia sobre a bondade do pai, marca a diferença entre o antigo decálogo e os novos mandamentos de ponta-cabeça. Embora suavizado e modernizado, e principalmente, embora transitado pela frieza do comando para o calor da relação, o antigo decálogo permanece fundamentado na autoridade de Deus sobre o homem e do homem sobre o homem.
O velho decálogo é aquele, por a excelência, vertical. Os novos mandamentos são paritários, simétricos, horizontais, não reconhecem a autoridade a priori: não aquela de um Deus agora substituído pelos deuses da sociedade multi-religiosa secularizada; não aquela de homens e mulheres cada vez mais tentados a delegar decisão aos procedimentos, às emergências e aos algoritmos. Então, afinal, aqueles que ainda se identificam com o velho decálogo e aqueles que já seguem os novos mandamentos têm diante de si o mesmo desafio do homem que muda: e as melhores regras com as quais acompanhar a mudança.
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Os anti-mandamentos. “O mundo não precisa de legalismo, mas de cuidado. Precisa de cristãos com o coração de filhos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU