23 Outubro 2019
Preocupados com ameaças crescentes aos povos originários, mais de 80 pesquisadores publicaram manifesto na The New York Review of Books.
A reportagem é publicada por Greenpeace, 22-10-2019.
Em carta publicada na The New York Review of Books, mais de 80 cientistas brasileiros manifestam sua preocupação com as graves ameaças que atingem os povos indígenas no Brasil no governo de Jair Bolsonaro. No texto, intitulado de Crise na Amazônia, eles apontam para o aumento dos ataques contra os direitos desses povos garantidos pela Constituição. Também citam as ameaças contra quem trabalha ao lado dos indígenas, como o caso do assassinato de Maxciel Pereira dos Santos, agente terceirizado da Fundação Nacional do Índio (Funai) no Vale do Javari, no início de setembro.
Aos editores:
Enquanto o presidente brasileiro Jair Bolsonaro esteve diante das Nações Unidas no final de setembro, aproveitando da sua fala para subestimar relatos na mídia sobre o aumento de incêndios florestais sob sua administração e denunciar líderes indígenas de renome mundial como Raoni Metuktire e Sônia Guajajara como sendo supostamente manipulados por interesses estrangeiros, a Amazônia brasileira continuou queimando. Incêndios enormes queimaram em diferentes partes da Amazônia, levando o desmatamento atingir níveis não vistos por mais de uma década, com uma área de floresta do tamanho de Hong Kong devastada somente no mês de agosto.
Desde que assumiu o cargo em janeiro, o Presidente Bolsonaro vem usando seus poderes para atacar os direitos culturais, territoriais e humanos dos povos indígenas tais como são garantidos na Constituição brasileira. Suas declarações públicas contribuem para um clima de ilegalidade e impunidade, um entendimento tácito de que a legislação que protege os territórios indígenas e outras áreas não será aplicada. No último ano, as terras indígenas no Brasil sofreram uma onda de invasão de madeireiros ilegais, garimpeiros e especuladores de terra, enquanto houve um aumento alarmante de agressões contra os povos indígenas. No início de setembro, Maxciel Pereira dos Santos, um agente tercerizado da FUNAI que tinha mais de uma década de experiência na proteção de povos indígenas isolados no Vale do Javari, foi assassinado em uma rua movimentada da cidade de Tabatinga. Um pouco mais de uma semana depois, homens associados a caçadores e madeireiros ilegais realizaram um ataque armado a um Posto de vigilância da FUNAI na região.
Cientistas como nós vimos documentando como o conhecimento tradicional e as estratégias de manejo dos povos indígenas da Amazônia têm contribuído para salvaguardar a biodiversidade global e a estabilidade climática. Para alguém de fora, esses territórios podem parecer “desabitados” ou “não utilizados”, mas de fato as vastas extensões de florestas intactas que constituem terras indígenas são essenciais para sua sobrevivência. Os povos indígenas ocupam e usam sua terra de tal forma que aproveitam de centenas de espécies de plantas e animais, ao mesmo tempo preservando o funcionamento de outros organismos no ecossistema; em muitos casos, essas paisagens sido enriquecidas pela população tradicional com arvores úteis como a castanha-do-pará e o açaí. Aldeias e comunidades indígenas são cercadas por roças que produzem alimentos básicos, roças antigas em vários estágios de regeneração, além de rios, florestas e montanhas, todos os quais fornecem uma base rica e dispersa de recursos - como peixes, caça, frutas, áreas de coleta e as matérias-primas para adornos, canoas, casas e assim por diante - que sustentaram o modo de vida desses povos por séculos ou milênios, povos que remontam aos tempos pré-coloniais, quando suas populações indígenas eram muito maiores. Essas terras também podem constituir espaços sagrados, locais de origem mítica ou locais da história ancestral.
Desde 1988, a Constituição brasileira reconhece a importância central das terras indígenas para a continuidade da existência desses povos e garante um processo legal para demarcá-los para os povos indígenas habitarem e usarem. Uma vez demarcadas e assinadas, as terras indígenas se tornam bens inalienáveis do Estado brasileiro.
Uma recente decisão unânime da Corte Suprema no Brasil derrubou uma tentativa do governo Bolsonaro de remover a responsabilidade legal pela demarcação de terras indígenas da FUNAI e entregá-la ao Ministério da Agricultura, controlado pelo lobby ruralista. Apesar dessa vitória, outras iniciativas preocupantes vêm enfraquecendo instituições ambientais, indígenas e científicas. Além disso, expressões de ódio e agressão, amplamente divulgadas na mídia, têm incentivado invasões ilegais e ações violentas contra os povos indígenas em diferentes partes de nosso país, incluindo os Wajãpi do estado do Amapá, os Awá-Guajá do Maranhão, os Kayapó, Munduruku e Apyterewa-Parakanã do Pará, os Karipuna e Uru-Eu-Wau-Wau de Rondônia, e os Yanomami de Roraima e Amazonas. As ações atuais da administração em desmantelar e cortar o orçamento da FUNAI aumentam ainda mais o risco de violência contra esses povos.
O lobby dos ruralistas e da mineração vem promovendo uma falsa dicotomia entre os direitos dos povos indígenas e o crescimento econômico do pais. Atualmente, existem grandes áreas de fazendas e pastagens que poderiam ser utilizadas produtivamente sem ter que reduzir um único acre de terras indígenas. Além disso, a destruição da cobertura florestal é míope e, em última análise, autodestrutiva, uma vez que evidências apontam para a necessidade da floresta amazônica na manutenção do “rio aéreo” que fornece chuvas para as ricas terras agrícolas do sul do Brasil. Os cientistas temem que o desmatamento na Amazônia poderá em breve perturbar os padrões de chuva em todo o Brasil e desestabilizar o clima global.
Bolsonaro insiste que o desenvolvimento na Amazônia é uma questão de soberania brasileira, e que interesses estrangeiros não devem intervir. No entanto, representantes indígenas brasileiros e ambientalistas estão pedindo nada mais ou menos do que a aplicação das leis existentes e a proteção dos direitos indígenas consagrados na Constituição e em múltiplos acordos internacionais de que o Brasil é signatário. Tratados internacionais e acordos econômicos devem incluir disposições para garantir esses direitos constitucionais, humanos, culturais e direitos territoriais dos povos indígenas.
A luta pela terra continua sendo uma fonte perene de mobilização política para os povos indígenas, incluindo os pedidos de demarcação sem solução e muitas outras questões relacionados a seus direitos que permanecem não cumpridos. Antropólogos, profissionais do patrimônio cultural e outros pesquisadores têm sido aliados cruciais dos povos indígenas nessas lutas. Além disso, líderes e intelectuais indígenas hoje falam cada vez mais com suas próprias vozes, defendem seus próprios interesses, elegem seus próprios líderes políticos e tomam um papel de protagonismo cada vez maior na proteção de sua herança cultural e territorial. Embora exista uma pluralidade de vozes indígenas em Brasil contemporâneo, incluindo um pequeno número que favorece a abertura de terras indígenas à mineração e outros interesses externos, até o momento, todas as organizações indígenas amplamente representativas e historicamente reconhecidas, que expressaram seus pontos de vista sobre o governo Bolsonaro, têm condenado seus ataques a territórios e direitos indígenas.
Como cientistas que trabalham em universidades e instituições de pesquisa brasileiras, estamos profundamente preocupados com essas graves ameaças ao território, ao patrimônio e ao bem-estar dos povos indígenas, inextricavelmente conectados ao bem-estar da Amazônia, à biodiversidade global e à estabilidade climática.
Adriana Queiroz Testa, antropóloga
Alexandre Clistenes, biólogo
Aline da Cruz, linguista
Ana Rosa Guimarães Bastos Proença, turismóloga
Ana Vilacy Galúcio, linguista
Anderson Saldanha Bueno, biólogo
Angélica Maia Vieira, antropóloga
Bruna Franchetto, linguista
Caio Ferrari de Castro Melo, advogado
Camila Loureiro Dias, historiadora
Carmen Lúcia Reis Rodrigues, linguista
Carlos Fausto, antropólogo
Carlos Zimpel, arqueólogo
Clarissa Rosa, ecóloga
Claude de Paulo Moraes, arqueólogo
Claudia Lopez, antropóloga
Cristiane Barreto, arqueóloga
Cristina Adams, ecóloga humana
Danielle Celentano, engenheira florestal
Décio Guzmán, historiador
Denny Moore, linguista
Domingos de Jesus Rodrigues, ecólogo
Edithe Pereira, arqueóloga
Eduardo S. Brondizio, antropólogo
Eduardo Góes Neves, arqueólogo
Eduardo Nunes, antropólogo
Eduardo Ribeiro, linguista
Eugenia Zandonà, ecóloga
Fabíola Andréa Silva, arqueóloga
Fabrício R. Santos, geneticista
Felipe Milanez, ecólogo político
Filomena Sândalo, linguísta
Gabriel Soares, antropólogo
Gabriela Prestes Carneiro, arqueóloga
Geraldo Andrello, antropólogo
Gessiane Picanço, linguista
Glenn H. Shepard Jr., antropólogo
Guilherme Augusto Gomes Martins, historiador e indigenista
Hein van der Voort, lingu9sta
Helder Lima de Queiroz, bióloga
Helena Godoy Bergallo, ecóloga
Ian Packer, antropólogo
Ima Guimarães Vieira, botânica
Isabela Galarda Varassin, botânica
Jorge Luiz Pereira de Souza, engenheiro-agrônomo
José Eugênio Côrtes Figueira, genetisita
José Julio de Toledo, cientista ambiental
Julia Otero, antropóloga
Juliano Franco Moraes, ecólogo
Kristine Stenzel, linguísta
Leandro Lacerda Giacomin, botânico
Lucila de Jesus Mello Gonçalves, psicóloga
Lucia Hussak van Velthem, antropóloga
Lúcia Sá, professora de estudos brasileiros
Luciana Storto, linguista
Márcio Meira, antropólogo e ex-presidente da FUNAI
Marcos Magalhães, arqueólogo
Marcos Vital, biólogo
Marlucia Bonifacio Martins, bióloga
Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga
Maria Candida Barros, linguista
Maria Carolina Loureiro Fernandes, cientista social
Marília Fernanda Pereira de Freitas, linguista
Marília Xavier Cury, museóloga
Marinus Hoogmoed, zoólogo
Mark Harris, antropólogo
Marta Amoroso, antropóloga
Myrtle Shock, arqueóloga
Nelson Sanjad, historiador
Nicole Soares-Pinto, cientista social
Nilson Gabas Junior, linguista e ex-diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi
Orlando Calheiros, antropólogo e fotógrafo
Philip Fearnside, biólogo
Rafael Magalhães Rabelo, ecólogo
Regina Oliveira, bióloga
Renato Sztutman, antropólogo
Ricardo Ventura Santos, antropólogo
Rita Natalio, artista, antropóloga, membro do Fórum Indigena de Lisboa
Roberto Araujo, antropólogo
Roberto Ventura Santos, geólogo
Ruth Monserrat, linguista
Sidney da Silva Facundes, linguísta
Sylvia Caiuby Novaes, antropóloga
Tatiana Deane de Abreu Sá, engenheira-agrônoma
Teresa Avila Pires, zoóloga
Tiago Gomes dos Santos, zoólogo
Valeria Macedo, antropóloga
William Carvalho, biólogo
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Nos EUA, cientistas brasileiros denunciam ataques aos povos indígenas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU