17 Setembro 2019
"Casinhas construídas para cachorros sobre calçadas, um espaço sabidamente público, estão sendo defendidas com ardor por gente preocupada com o bem estar desses animais. Enquanto isso, tramita no Judiciário gaúcho uma ação de reintegração de posse movida pelo município de Porto Alegre contra dezenas de famílias na Vila Bom Jesus, dentro de uma fração urbana conhecida como Mato Sampaio", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
O bem estar das pessoas figura em todas as Constituições das nações ditas civilizadas, como uma verdadeira condição de serem reconhecidas, cada uma, como Estados de direito. As decisões tomadas pela autoridade de qualquer dos Poderes desses Estados, assim, ficam encarregadas de garantir as funções por eles assumidas de corresponder ao seu próprio nome, ou seja, o de “estado”, uma situação tranquila de justiça, paz, segurança, liberdade, todos os pressupostos, enfim, do referido bem estar.
Como resultado de muitos e dramáticos conflitos registrados no passado de quase todos os países, o regime legal adotado na maioria deles, como o único suficientemente capaz de legitimar o exercício do Poder público, para “impor” (!) esse “estado”, é o da democracia. Embora as/os brasileiras/os, em raros períodos da sua história, tenham chegado apenas perto de gozarem desse “estado”, na sua plenitude, disso dando prova o número de golpes que o país sofreu desde a sua “independência” (?), os direitos humanos fundamentais de parte do seu povo pobre ou miserável, ainda hoje aqui sobrevivendo, são visível testemunho da anomalia hipócrita e desumana da atual “democracia” aqui instalada.
Mesmo respeitadas algumas exceções, os preconceitos de classe, raça e ideologia, atestam a cada dia, no exercício dos poderes públicos, que a força do seu contágio doentio continua aumentando a violência explícita da opressão e da repressão do seu domínio. Inspirado no desrespeito oficial aos direitos humanos, especialmente os sociais, à dignidade das pessoas, o exercício da autoridade pública, por aqui, está tratando o povo pobre como súdito e não como cidadão.
Dois exemplos claros dessa realidade, estão se verificando em Porto Alegre, lamentavelmente. Ano passado, a doutora Isabel Rodrigues Wexel, do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da Defensoria pública do Rio Grande do Sul, acompanhada de representantes da ONG Acesso Cidadania e Direitos Humanos, foram alertados para um fato comum a quase todas as capitais do país, típico da injustiça social própria da nossa realidade socioeconômica.
Um pequeno grupo de sem tetos estava abrigado no Parque Moinhos de Vento, uma das regiões mais frequentadas, de preferência, por burguesas/es ricas/os, que ali promovem, com frequência, manifestações políticas de direita. A presença daquele grupo, conforme seus integrantes contaram aos representantes da ONG Acesso, estava incomodando algumas senhoras frequentadoras do local, porque seus cachorros e cadelas, que elas levavam para passear e “fazer as suas necessidades”, estavam correndo risco de serem mordidos pelos vira-latas daquela gente miserável ali mal acampada.
O grupo que saísse e levasse os seus animais. Os seus cachorros, quem sabe, cabe deduzir-se, não estavam reconhecendo a nobre linhagem e a “superioridade racial” da elite canina, costumeiramente transitando pelo local com suas donas. A preocupação dessas, então, não era movida pela compaixão com a falta de moradia do grupo pobre, mas sim com a urgente necessidade de garantir segurança e tranquilidade aos seus pets...
Se um motivo como esse pode escandalizar qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade social, a cidade está conhecendo outro, e esse também, vergonhoso. Casinhas construídas para cachorros sobre calçadas, um espaço sabidamente público, estão sendo defendidas com ardor por gente preocupada com o bem estar desses animais. Enquanto isso, tramita no Judiciário gaúcho uma ação de reintegração de posse movida pelo município de Porto Alegre contra dezenas de famílias na Vila Bom Jesus, dentro de uma fração urbana conhecida como Mato Sampaio. Deferida a liminar que acolheu a ação, uma forte mobilização das/os moradoras/es da Vila, seguida por um bom número de vereadores e por advogadas/os defensoras/es do direito humano fundamental social de moradia, conseguiram suspensão da execução do dito despacho liminar e o recuo do Município, agora já se dispondo a negociar acordo com as/os moradoras/es da terra em disputa, do tipo pagamento de aluguel social em outras casas e indenizações.
Conforme notícias publicadas pela mídia local, a Câmara de vereadores já protocolou projeto de lei reconhecendo a área em causa como AEIS (área especial de interesse social). Roberto Robaina, vereador vice-presidente da Comissão de Urbanização, Transportes e Habitação, um dos autores do projeto, considera viável “votar e aprovar” o referido projeto na próxima quarta feira.
Ao que se sabe, há um bom número de famílias, com idade comprovada de posse sobre esse bem, exercida há décadas, disposta a resistir a qualquer acordo que não inclua expressamente a sua permanência definitiva no local.
Entre os acampados do Parcão e as famílias da Vila Bom Jesus há de comum o preconceito, o desprezo e até o nojo que a sua presença causa em grande parte da sociedade chamada “civil” (?) da capital gaúcha. Entre os cachorros das frequentadoras do parcão e os das casinhas das calçadas daqui há de comum toda a compreensão, o respeito, a acolhida e a defesa que essa mesma parte lhes reconhece.
A visível semelhança dessas duas atitudes reflete os valores que presidem os piores desvios morais do chamado poder econômico de classe. Não é de se admirar que a sua indiferença pela pobreza e pela miséria de grande parte do nosso povo, não hesite em preferir moradia para cachorros e despejo para faveladas/os. Basta conferir-se quanto está havendo de alarido favorável aos primeiros e quanto de pouca importância se atribui às/aos segundas/os. Aquela indiferença se transforma em ódio quando, quem defende o direito de moradia do povo pobre como integrando o próprio direito à cidade, denuncia e comprova que a interpretação e a preservação de uma realidade social injusta, não pode ser encoberta sob a iniquidade motivadora do seu pensamento, sentimento e ação.
A coragem das/os moradoras/es da Vila Bom Jesus, pelo visto até aqui, pode ser medida pela forma como superaram a aparente derrota que as/os ameaçava. Somada à confiança em sua organização, e não cedendo a toda a tentativa de divisão que as/os enfraqueça, podem servir de exemplo para as/os moradoras/es de favela do Brasil inteiro.
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Garantia de casa para cachorros e de despejo para faveladas/os - Instituto Humanitas Unisinos - IHU